No seu filme "Midnight in Paris", Woody Allen fala-nos através de um dos seus personagens de uma espécie de nostalgia a que dá o nome de "mentalidade dos anos de ouro" - a noção errada de que um período de tempo no passado foi melhor do que aquele em que hoje vivemos. O autor associa este sentimento ao imaginário romântico próprio de pessoas que não se consciencializam do presente, e de que por muito evoluída, progressista ou tecnologicamente avançada que seja a era em que vivemos, falta sempre algo, qualquer coisa, que para eles se poderia resumir a um egocêntrico "ser feliz". Em Portugal temos um sentimento equivalente a quem demos o nome de "saudosismo", que é mais visível em pessoas que têm uma percepção mais conservadora de certos valores, que se incluem numa elite que foi entretanto diluída, que se reformulou ou ficou simplesmente extinta. Desmontando estes conceitos, tudo se resume basicamente a um traço da natureza humana mais vincado em algumas pessoas do que em outras: o melhor dos tempos foi o tempo que era melhor para mim. Sinto que pertenço a essa grande maioria - deixa-me mais tranquilo pensar que ainda é uma maioria - das pessoas que sentem que os seus melhores dias já lá vão, mas que lá no fundo do ser têm uma secreta esperança que como que num outro fôlego, nos vai ser dada outra oportunidade para ser outra vez feliz. Deixa-me apreensivo que cada vez mais gente deixe de sonhar para dentro, e exteriorize não o que quer para si, mas o que não quer para ninguém ou acha que toda a gente devia querer. É triste o que estamos a fazer com as ideais no século que se determinou chamar "das ideias".
Vivemos em tempos de macedónia ideológica, de uma massa disforme de preconceitos, ideias feitas, números, equilíbrios entre a paz e o apocalipse que são frágeis porque queremos que sejam frágeis. Olhamos para um passado recente, tanto assim que ainda nos recordamos dele como se tivesse sido ontem, e vemos mal, tanto mal que acreditamos ingenuamente que nos ensinou uma lição e que não o queremos repetir - "não ousar repetir", bradamos em uníssono - "para bem dos nossos filhos e dos filhos destes", acrescentamos convictos de que só queremos o melhor para todos. Em menos de 20 anos, estes últimos, conseguimos o milagre de ficarmos todos à distância de um clique, de poder fazer compras sem sair de casa, pagar as nossas contas, contactar familiares e amigos, conhecer gente nova, ter acesso à informação em tempo real - já não há "ventos de revolução": as revoluções, ou o que restou delas, passam no YouTube ao vivo de uma praça qualquer no norte de África ou do centro financeiro de Hong Kong. Não é preciso mais consultar uma enciclopédia para saber o área exacta da crosta terrestre, ou passar uma tarde na biblioteca a pesquisar para uma biografia, para um trabalho de grupo. E o que retiramos de tudo isto? O mal. Não foi preciso que todo este bem, toda esta riqueza que num piscar de olhos ficou ao alcance de todos fosse pervertida para fins maléficos, e daí a nos avisarem para estes perigos foi um pequeno passo. Ninguém mais sorri quando se fala de internet, de "chatrooms", de redes sociais. Ouve-se "olha lá, tem cuidado...", no mesmo tom paternalista de quem escuta um adolescente entusiasmado depois ter fumado o seu primeiro "pintor". Os governos tapam o sol com uma peneira. Os governos dizem que nos querem "proteger", tratam-nos como crianças de mama, sabem o que é melhor para nós. Os governos sabem que perderam o controlo e isso aborrece-os. Pedem-nos para não acreditar em tudo - em nada, mesmo no que é por demais evidente. O Governo é feito de pessoas. As pessoas têm sempre um fundo mau.
Cada vez há mais pessoas mal informadas, mal intencionadas, ou simplesmente más, que se dizem "conscientes", e que sabem o que é melhor para todos. Temos cada vez mais pequenos ditadores em potência em cada casa, cada apartamento de cada bloco de cada cidade de cada país. Ensinamos os nossos filhos a serem como nós para se poderem defender de pessoas iguais a nós, que vão sendo muitas, e amanhã serão mais que hoje. Queremos que eles sejam como nós, enfim, como essas pessoas, como as que não queríamos que eles fossem. Que não queríamos nós ter sido, mas "calhou". Preferimos culpar o acaso, em vez de nos culparmos a nós mesmos por nos termos deixado levar onde estamos hoje. Damo-lhes o presente que achamos que é o melhor presente, não o deles, mas o nosso. Fazemos o possível para lhes dar "o melhor". O que é o melhor, senão o que entendemos por "melhor" em comparação com o "pior"? Os políticos, ai os políticos. Como é fácil falar mal dos políticos, que afinal somos nós - um político é aquilo que provavelmente nós seríamos no seu lugar. E porque falamos nós mal dos políticos, no fundo? Porque sentimos que podíamos fazer melhor? Não. Porque podíamos ser piores, mais "políticos" que eles. Os políticos falam de paz, e fazem guerra para chegar à paz - faz sentido, as duas complementam-se, e sem uma nunca existiria a outra. Não se entende portanto o porquê de estarmos mais perto de uma guerra como nunca antes vista. É preciso fazer uma guerra grande para atingir a paz maior. Quem sabe o silêncio.
Não se trata aqui de pintar um quadro negro da humanidade, do presente ou do futuro. Qual futuro, se cada cabeça tem para si o que vai ser o futuro, e ai de quem dele discordar? Aderimos a causas, queremos fazer a diferença, que só se vive uma vez e é preciso dizer "presente". Pomo-nos em bicos de pés, damos um murro na mesa quando ninguém dá pela nossa presença. As causas passam a ser tudo, e o que não é uma causa é uma não-causa, é a antítese de tudo o que acreditamos. A religião, ou as religiões, outrora em desuso quando ainda se acreditava que o Homem caminharia um dia no bom sentido, voltam agora em força. As religiões refizeram-se para o século que se queria das pessoas, e voltaram mais agressivas, mais radicais, mais como nós, em suma. Que teoria do consumo imediato, que niilismo ou que qualquer outra tese explica que há quem aceite ser mártir em nome do abstacto, deixando-se seduzir pela promessa de 40 virgens? Para que devo eu "respeitar a fé". se a fé é pessoa, e cada um tem a sua própria numa medida maior ou menor que a dos restantes? Seria como se me pedissem para respeitar o seu intestino delgado, ou as suas impressões digitais. As religiões hoje são o espelho do egoísmo, do orgulho e da vaidade que deixámos soltos e que tomou conta dos homens no século que se queria dos homens. Rejeitar o princípio de eternidade passou quase a ser um insulto para nós, que tanta coisa sabemos. Como é possível que depois desta vida não exista mais nada? Vai tudo ser assim, deitado fora, sem mais nem menos? Ah ah, não me faça rir, e faz favor respeite a minha fé. O homem não é o centro do mundo, mas cada homem é o centro de todos os homens que se julgam o centro do mundo.
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