sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Desconstrução europeia


Agora que está na ordem do dia falar da dívida grega, do terrorismo islâmico e do ressurgir de movimentos extremistas, quer de direita, quer de esquerda no espaço europeu, urge levantar esta questão: em que estado se encontra a tão badalada "construção europeia"? O sonho da unificação da Europa idealizado por Schumann e Monnet e passado ao papel em Março de 1957 com entrada em vigor no primeiro dia do ano seguinte foi esbarrar na ditadura dos mercados, e nem era parte do plano dos arquitectos do europeísmo almejar a que nações como Portugal, Espanha ou Grécia se elevassem ao patamar de uma potência económica e industrial como a Alemanha - e nem constavam do mapa do primeiro esboço da então Comunidade Económica Europeia, estes países, que tinham ficado à margem do Plano Marshall da reconstrução da Europa do pós-guerra. No fundo a CEE, mais tarde denominada União Europeia com o tratado de Maastricht, que visava concretizar através da abolição das taxas aduaneiras o plano do "mercado comum", foi produto de um cenário de divisão que se instalou após a assinatura do tratado militar conhecido por Pacto de Varsóvia, apenas dois anos antes da convenção de Roma, génese da CEE. Ainda mais importante do que a cooperação económica era o aspecto da defesa, daí que se tenha na mesma altura assinado o Tratado Constitutivo da Comunidade Europeia da Energia Atómica (Euratom). A Europa não se podia dar o luxo de ser um mero espaço geográfico entre duas potências com capacidade de se destruír mutuamente, e sentiu a necessidade de criar um espaço político autónomo além da NATO, que tinha (e tem) os Estados Unidos a ditar as regras. Findo o bloqueio a leste e com a emergência de mercados como a China, bem como a gradual independência dos territórios africanos colonizados pelas potências europeias, a UE que deu em 1992 lugar a antiga CEE foi deixando de fazer sentido, e tornaram-se notórias as diferenças que existem num espaço geográfico e demográfico mais reduzido que o Brasil, mas que mesmo assim não foi capaz de chegar ao último objectivo proposto pelo tratado de Roma: a união política.

Entre as muitas razões que se podem apontar para o fracasso da Europa a uma só voz podemos colocar à cabeça o distanciamento do Reino Unido, que é "apenas" a par da França e da Alemanha uma das três potências económicas do velho continente. Não que os britânicos levassem isso muito em conta, pois eles próprios demarcam-se do espaço geográfico da União, remetendo mesmo os seus parceiros para a designação de "continentais", e adoptando medidas proteccionistas nada abonatórias para o ideal de uma Europa unificada num modelo federalista, àa imagem dos Estados Unidos da América, por exemplo. A arrogância britânica, mais evidente durante a quase década e meia de governo da ultra-conservadora Margaret Thatcher fez escola, e à semelhança do vizinho inglês, também os países membros que compõem a Peninsula da Escandinávia se recusaram a aderir ao tratado de Nice e aderir à moeda única. A Noruega foi ainda mais longe, ao vetar a própria adesão a UE - tendo em consideração a sua riquíssima zona exclusiva de pesca, e a auto-suficiência proporcionada pelo petróleo e outros recursos naturais, os noruegueses acharam que teriam muito mais a perder do que a ganhar com a adesão. É possível que ainda hoje não se tenham arrependido desta decisão. Com o mercado actualmente composto por 28 membros, 19 destes adoptaram o Euro como denominação comum, abdicando das suas antigas moedas. Com a autêntica que foram os critérios de convergência, são sobretudo países como a França e a Alemanha que vão mantendo esta economia com 323 milhões de consumidores como a segunda maior do mundo - muito contra a vontade dos seus cidadãos, entenda-se. O caso grego, que constitui um insólito em termos de ciência económia e inaugura um conceito a que já denominei de "calotecracia", é a imagem do efeito dominó que poderá levar à falência da união económica: uns pedem, outros dão, os primeiros não podem pagar, os segundos ficam "a arder", metaforicamente falando.

E no fundo o que pensam os mais de 500 milhões de habitantes dos 28 países que compõem a UE desta convivência que dura há quase 60 anos, quiçá o período mais longo desde que a Europa vive sem guerra? Nada, pois para a maioria trata-se de uma realidade difusa, obscura e distante. Ninguém sabe ao certo que competências têm as instituições da UE, o que faz o Parlamento Europeu, ou de que forma as decisões que emana o Conselho Europeu tem directamente sobre o seu dia-a-dia, ou que poderes tem o Tribunal de Justiça da União Europeia - poderá o cidadão comum recorrer a esta instância judiciária, e em que termos? Daí que se verifique uma elevada abstenção cada vez que se realizam as eleições para o Parlamento Europeu, e o facto desta ser mais elevada em membros que aderiram recentemente (mais de 70% na Eslováquia) diz muito da indeferença dos europeus em relação ao centralismo que lhes propõem. Desta forma, essa ideia de centralismo é encarada com desconfiança, e para isso contribuem as normativas comuns, as cotas de produção e outras imposições de Bruxelas, que por vezes chocam com as especificidades de cada membro da União, e no plano económico, vistas as coisas, não se encaixa no conceito de mercado livre, pois leva à produção excendentária e levanta limites quanto às trocas comerciais. Estes problemas têm sido fértil para o recrudescimento de forças populistas, entre elas algumas que estavam "adormecidas" desde o pós-guerra, que demonizam Bruxelas e em alguns casos defendem a saída da União Europeia. Chegámos a um paradoxo de sentar no Parlamento Europeu grupos políticos que apesar do eufemismo do nome com que se designam - os "euro cépticos" - basicamente querem um lugar num local que preferiam que não existisse.

E uma das bandeiras dos opositores à construção europeia, uma realidade que há muito que optou por um atalho onde se perdeu e cada vez avança na direcção oposta do destino inicial é o da imigração, razão principal pela qual a Alemanha se opõe à adesão da Turquia. Com ou sem a UE, a verdade é que a Turquia vem exportando mão-de-obra não só para a Alemanha, mas também para os Países Baixos, citando apenas os exemplos mais visíveis de uma tendência que há muito tem sido um obstáculo à realização da Europa de todos: o individualismo e a acomodação que levou a massa humana dentro do espaço europeu a não preparar a sua sucessão. Não será com taxas de natalidade tão baixas e crescimento da população entre os 0,5 e os 1 pontos percentuais que a Europa vai realizar o estado social - quem vai pagar daqui a 20 anos as reformas de quem hoje com os seus impostos as pensões dos actuais reformados? A autêntica paranóia que tem sido o espectro do Islão, a tal "islamofobia" não tem ajudado a que se dêm passos no sentido de uma integração de novas realidades que garantam a liquidez
do projecto comum europeu. Se actualmente temos o ratio de 1 muçulmano para 12 não-muçulmanos, e está tudo a levar as mãos à cabeça com o medo das burqas, das "sharias" e afins, o que vai acontecer quando tivermos 1 para 11? Novas cruzadas? Outro cerco de Viena? A Europa não é a mesma de há 100, 200, 500 ou de há 1000 anos, tanto no que toca às suas fronteiras, quer no aspecto da distribuição demográfica, e vai sofrendo sempre novas mutações. É bem possível que daqui a um ou dois séculos a maioria dos europeus tenham apelidos argelinos, marroquinos ou turcos, quem sabe? Ou não, pois nunca se deve aplicar a lógica dos números às ciências humanas, mas se acontecer, temos actualmente uma realidade que daria para explicar esse fenómeno. E mesmo sem a imigração, o que se pode esperar de um território onde se denota cada vez mais desprendimento, apesar da exiguidade territorial? Temos os casos da Catalunha, das "duas Bélgicas", do norte e sul de Itália, e isto para não falar das questões não resolvidas da Irlanda e do País Basco. Há muito mais do que apenas os factores económicos ou a imigração para explicar a desconstrução europeia.

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