domingo, 8 de fevereiro de 2015

As sobras do dia


Numa entrevista que deu à Rádio Macau e transmitida ontem de manhã, o presidente da APOMAC proferiu declarações que podem ser interpretadas de formas diferentes. Francisco Manhão afirmou que "sonha com uma cidade satélite destinada à comunidade sénior" nos novos aterros que o Governo da RAEM pretende reclamar ao mar. Esta frase pode ser entendida como uma forma de desprezo aos cidadãos idosos, como se fosse necessário isolar os velhos para que não atrapalhem a população activa, e não se tornem um empecilho na realização das tarefas do dia-a-dia. Se aos nossos olhos nos parece reprovável abandonar os velhos, que são os nossos pais e os nossos avós, que um dia seremos nós e não desejamos tal sorte, não me resta senão perguntar: porque é que existem cada vez lares de idosos, e porque estão cada vez mais cheios? Hoje foi visitar um desses locais onde se deixam aos cuidados de estranhos os que sendo sangue do nosso sangue necessitam de cuidados que não podemos, ou não queremos dispensar. O local em questão foi o Lar de Idosos Ieng Hong, situado em Hac-Sá, Coloane, junto dos Hellene Gardens. A instalação do local nesta área privilegiada, junto à praia, foi notícia há alguns anos por outras razões, e que hoje dificilmente teriam a mesma razão de ser. E vamos já ver porquê.


Este é o actual aspecto do complexo habitacional Hellene Gardens, construído em finais do século passado, e até há alguns anos classificado como "habitação de luxo". Entretanto parece ter existido um visível desinvestimento no aspecto da preservação do local (reparem como falta um dos "l" na placa do nome), e está bem à vista o desleixo do condomínio. Contudo a construção do lar de idosos fez correr muita tinta na imprensa há algum tempo, com os moradores do Hellene Garden a manifestar a sua oposição ao uso que se ia dar a um dos espaços comerciais anexos ao complexo. Uma preocupação que não sendo de todo legítima - cada um tem a liberdade de abrir o negócio que bem entender - dá par entender, uma vez que um lar de idosos não é aquilo que se pode chamar de "convidativo", e estas são pessoas que fizeram um investimento considerável na sua habitação, enfim, é mais o dilema pessoal do que propriamente um assunto de interesse público. É um pouco assim em toda a parte, e tanto os centros de tratamento de toxicodependentes como os lares sofrem de um estigma inerente à sua natureza; os primeiros atraem má vizinhança, enquanto os segundos acarretam consigo o espectro da morte. Ter um lar de idosos à porta implica que muitos deles, senão mesmo quase todos, apenas saiam de lá para a moradia final, transportados já permanentemente inconscientes e na posição horizontal. Uma vez que o lar abriu mesmo, e a julgar pelo estado lastimável em que o Holland Garden se encontra, não me resta senão concluir que aqueles indignados cidadãos que na defesa dos seus interesses chegaram mesmo a formar uma associação, devem ter arrumado a viola no saco e ido tocar para outras paragens.


Uma vez dentro do lar, o que se pode ver é provavelmente melhor do que aquilo que se vê na maioria dos lares de idosos convencionais, mas não deixa de ser deprimente. Claro que o serviço é esmerado, os residentes têm acesso aos cuidados ambulatórios de que necessitam, e certamente que nenhum se queixará de maus tratos, ou de não ver as suas necessidades atendidas, ou até de desconforto, assim como os seus familiares terão poucas ou nenhumas razões de queixa - é o que se tem quando se paga 8 (oito) mil patacas mensais. Menos sorte terão aqueles que não podem pagar esse preço, e têm que se (des)contentar com outro lar qualquer com menos condições, a juntar ao que representa efectivamente um lugar como este, que pague o preço que se pagar, não deixa de ser desagradável. Do alto da minha mobilidade, autonomia a sanidade, este local pareceu-me nada mais que uma antecâmara da morte; é onde mora gente frágil e dependente, que nada mais faz senão acordar, comer e voltar outra vez a dormir, mais nada, e nem sabe bem para que é que precisa de acordar outra vez. Apesar de ficar junto da praia, toda a luz parece artificial, o ar é insalúbre, e paira um cheiro que se pode descrever como qualquer coisa entre bafio e comida cozida a vapor. Os quartos assemelham-se aos do hospital, e vistos de fora dá a entender que dormem dois idosos em cada quarto, pelo menos. As malas no chão sugerem que alguns dos residentes terão levado como eles tudo o que têm, e quem sabe se tal como noutras paragens os filhos dependem da casa que foi dos pais para lá habitar com as suas famílias. Cada idoso que ali estava deve ter a sua história para contar, e ninguém para escutá-la. Para mim pareciam todos iguais, agasalhados ao extremo - faz sentido no Inverno, mas no entanto fico a pensar que é a mesma coisa todo o ano. O que importa em que estação estamos quando se espera apenas pela última paragem?


Esta é uma imagem que me diz muito, pois no momento em que a captei, fi-lo com a anuência dos idosos, que tinham saído para o pátio apanhar a meia-hora de sol a que têm direito por dia - os que têm direito. Devem ter gostado desta atenção, que deve ser pouco habitual para quem os dias correm sempre iguais, sem nada que valha mencionar. Pedir-lhes para sorrir para o retrato seria fazer deboche duma realidade triste, de alguém cujo sorriso se encontra adormecido ali algures no fundo daquele olhar vazio, do deserto de esperança que encerram aqueles rostos vincados com a idade, e que um dia foram lindos como os nossos. Se o sonho de Francisco Manhão é o de dar asas para voar a estes velhos, e aos que se vão tornando velhos e um dia ocuparão o lugar destes, não posso estar mais de acordo. Com as condições económicas que Macau (ainda) se orgulha de ter, não é todo irrazoável pensar em proporcionar à terceira idade condições como as que os reformados norte-americanos têm na Florida, para onde muitos vão residir na recta final das suas vidas. É que se for para fazer o sacrifício de abdicar da disponibilidade, paciência e harmonia familiar para manter os idosos em casa, enquanto mesmo assim é necessário contratar alguém para auxiliar com as tarefas mais sensíveis, e tudo para ficar bem no retrato, vale mais vale pensar em dar aos velhos melhores condições dentro de uma realidade que não podemos evitar, do que dividir o mundo entre os que dizem respeitar os velhos, e os outros que são condenados pelos primeiros. Isto é muito mais que uma fogueira de vaidades.

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