sábado, 7 de fevereiro de 2015

Operático, patriótico, hipócrito

Um blogue sempre em bolandas.

Ele há certos fretes que por muitos anos que eu viva, nunca os vou conseguir entender na sua plenitude, e a pergunta que me fica presa na boca é sempre a mesma: "porquê?". O Jornal Tribuna de Macau (JTM) publicou esta semana uma notícia que dava conta de uma entrada no blogue pessoal de Susana Chou onde a ex-presidente da Assembleia Legislativa tecia considerações sobre um episódio da História de Macau que envolveu um controverso personagem: o Governador Ferreira do Amaral. Penso que toda a gente com ligações a Macau tem noção, por mais básica que seja, do que significa o Gov. Ferreira do Amaral; elevado a símbolo da hegemonia colonialista portuguesa pelo Estado Novo, e demonizado pelos chineses de índole patriótica, é hoje para uns uma curiosidade histórica, e para os outros apenas "mais um pirata" - e olhem para o epíteto que os chineses nos deram até nem temos tanta razão de queixa, bem vistas as coisas. Segundo o JTM, Susana Chou considera a ópera chinesa, "A Alma do Mar de Espelho", dedicada a esse episódio da centenária história do território e exibida o mês passado no Centro Cultural, "uma uma lição sobre patriotismo, nacionalismo e amor por Macau". Só pelo tom já dava para entender que aqui havia gato, especialmente se tivermos em conta que no "fim" de qualquer das muitas versões que se contam, Ferreira do Amaral acaba por ser morto por um ou mais cidadãos chineses, que ainda por cima lhe subtraem a cabeça. É incerto quem foi o autor da façanha, se o fez por ordem de outro ou outros e porque motivo concreto, mas não é nenhum mistério que o 49º governador da província de Macau era detestado pela população chinesa, e pode ser que haja quem entenda esta deambulação de Susana Chou como "uma provocação". A notícia do JTM merece em geral credibilidade, mas eu próprio quis saber mais, e fui ao blogue procurar o tal artigo, que se pode encontrar aqui, escrito em língua chinesa, mas que fiz questão de ler na totalidade com recurso a um tradutor "online". Conclusões? Já lá vamos, pois temos aqui muito pano para mangas, para vestidos, cabaias, e muito, muito mais.

Então tivemos visitantes ilustres, e ninguém nos disse nada???

Primeiro falemos dessa tal ópera, que de nunca tinha ouvido falar. E mais algum dos leitores tinha conhecimento de que tal obra esteve em exibição no palco do Centro Cultural nos dias 13 e 14 do último mês? Foram convidados? Leram alguma crítica ou ouviram algum comentário? Conhecem alguém que tenha visto, e se gostou? Fui à página do Instituto Cultural que fala do espectáculo, que se refere à ópera com o título "A Alma de Keng-Hoi", e não do "Mar do Espelho", como vem na notícia do JTM. Tanto faz, e esta discrepância explica-se de forma muito simples: o título em chinês é "鏡海魂", sendo que os dois primeiros caracteres, "keng hoi", significam "espelho do lago", no sentido em que olhando para a água do lago é possível a nossa imagem, como que reflectida por um espelho - e este é um dos antigos nomes chineses de Macau, antes de "Ou Mun" ficar formalizado como o único oficial. O último caracter significa "espírito", daí que se interprete o título da ópera como "O Espírito de Macau". Talvez isto ajude a entender a verve patriótica patente no blogue de Susana Chou, pois voltando à sinopse que encontrei na página do ICM, a Ópera de Pequim (ena!), apresenta-nos uma história "muito triste e com personagens heróicas", e que "divulga o espírito da responsabilidade e do patriotismo". Acrescenta ainda que "esta é a primeira Ópera de Pequim com produção de Macau, que fala sobre a História de Macau e trata um tema que raramente é tocada (sic) num palco da Ópera de Pequim hoje em dia". Epá, que honra! Fez-se história no palco do IACM e nem demos por nada. Alguém se recorda se nesse fim-de-semana houve fogo de artifício? Era razão para isso, na minha humilde opinião.

Maneta...zarolho...pinta de Napoleão Bonaparte...só pode ser o velhaco do tuga, esse pirata de um raio.

Pronto, vou evitar abusar do sarcasmo, pois por muito pitoresca que esta situação me pareça, tudo se explica sem ser necessário recorrer a teorias da conspiração que sugerem que estes não gostam daqueles, ou que os outros são uns mauzões, ou que está tentar humilhar alguém. Nada disso. Estamos na China, a população de Macau gosta de ópera chinesa, e estamos aqui a falar da Ópera de Pequim, que diabo. Não me cheira que este tipo de temática de pendor patriótico seja tão bem recebida aqui como é no continente, mas tenho a certeza que os orgulhosos "patriotas" daqui do burgo ocorreram à chamada - e ficava-lhes mal se não fossem! É possível que tenha sido apenas o senso comum a determinar o "apartheid" cultural que levou a que não se divulgasse o evento entre a comunidade estrangeira residente na RAEM em geral, ou da portuguesa em particular. E foi gentileza, no fim de contas, pois atendendo a este enredo, era possível que algum compatriota nosso de veia nacionalista mais carregada se sentisse mal, ou se revelasse indignado, sabe-se lá? Nem eu nem muitos dos leitores entendemos a ópera chinesa - e nem com legendas vamos lá, acho. Mas se tivesse que apostar, diria que esta peça particular não tece considerações muito favoráveis sobre os portugueses, e que no limite existiria o risco de se fazer uma comparação mais extensa, aplicando a dramatização de acontecimentos históricos passíveis de interpretação diversa à realidade actual. Mas pronto, somos todos civilizados, e este é um receio infundado. Que parvoíce, a minha.

Já agora deixem que vos complete o boneco...

Sobre Ferreira do Amaral, ao contrário do que Susana Chou pensava (ou pensa, tanto faz) não é um grande herói português como D. Afonso Henriques, um notável navegador como Vasco da Gama, ou um mito como D. Sebastião - foi governador de Macau, como tantos outros que tivemos, que se reveste do significado que lhe viriam a atribuír mais tarde. Duvido que muita gente em Portugal saiba quem foi este personagem, que não consta dos manuais escolares, e eu próprio só fiquei a conhecê-lo quando fui obrigado a debruçar-me sobre o tema em 1994, com vista a um exame sobre História de Macau. Desconheço em detalhe a versão oficial dos factos em língua chinesa, e que se ensina nas escolas locais, mas é ponto assente que não deixam o ex-governador debaixo de uma boa luz; e mesmo em português a descrição do destemido general "maneta" - facto a que a própria Susana Chou fez referência no seu artigo - e o seu papel na História de Macau carece de bases que possam fazer de si uma espécie de "herói". É verdade que a diplomacia não era o seu forte, e que a força foi o meio empregado para impôr o domínio português sobre Macau, além do consensual "insulto" à cultura local, com as obras que levaram ao levantamento de sepulturas chinesas e tudo mais, mas terá sido tudo assim tão mau? Em retrospectiva não teríamos a cidade que temos hoje caso Ferreira do Amaral não tivesse uma postura de rotura com os Qing, em vésperas da Guerra do Ópio e de uma sucessão de acontecimentos trágicos para o povo chinês, que nem com a unificação debaixo do Partido Comunista lhes colocaram um ponto final. Pode ser que o tribunal da História lhe seja brando, e que repreende apenas um certo abuso de uma firmeza que acabou por ser determinante pela positiva.

Olha para mim aqui, carregadinho de simbolismo.

As voltas que Susana Chou dá naquela entrada do seu blogue para chegar ao ponto que deseja é encantadora - conta praticamente a história toda da sua vida, que morre de amores por Macau, como acabou por aqui ficar, enfim, tudo para nos dizer que nos anos 60 estava em frente ao Hotel Lisboa uma estátua de bronze de que os chineses não gostavam nada, representando o tal senhor maneta, montado a cavalo: era a estátua de Ferreira do Amaral, que o governo provincial em meados do século XX fez revestir de um certo simbolismo, numa perspectiva imperialista muito própria do Estado Novo. Disseram-me que na estátua se vê uma cobra perto de uma das patas do cavalo, e Ferreira do Amaral a lutar contra o réptil, que alguns interpretam como uma representação do povo chinês. Não sei a que ponto isso é verdade ou não, mas a estátua em si era representativa, isso sim, do domínio português sobre Macau, e a sua remoção em 1992 foi entendida como o fim do nosso Império ultramarino. A certo ponto Susana Chou fala deste acontecimento como uma espécie de tratado de paz, como se tirar a estátua da praça que ainda mantém o nome de Ferreira do Amaral fosse como que enterrar um machado de guerra. A verdade é que a relação entre colonizadores e colonizados nunca foi pacífica, tendo-se dado uma visível deterioração depois do martírio de Amaral, apenas atenuada durante a II Guerra Mundial, que graças ao estatuto de país neutro de que Portugal usufruía, tornou Macau num porto de abrigo de uma região que vivia sobre o terror do imperialismo belicista nipónico. Os acontecimentos do "1,2,3" foram o culminar das tensões que levaram mais tarde à entrega de Macau à China, que apenas se tornou possível porque o país do meio adquiriu a estabilidade que durante os cento e muitos antes disso não existiu.

Depois de acabar este frete vocês vão ver como eu sou mázinha...

E o que se pode concluir desta dissertação de Susana Chou, que não dá para entender muito bem o sentido? Nada. Ora essa, ainda não se habituaram à falta de coerência da senhora? Nascida em Xangai, veio para Macau, adquiriu a cidadania através do casamento com um português, pelo meio criou laços com a França, que mantém, sendo uma das três personalidades da RAEM que recebeu a medalha da Legião de Honra Francesa, foi deputada, e como presidente da AL cúmplice dos primeiros executivos do pós-transição, que na reforma passou a falar mal através deste mesmo blogue, assumiu participações na Reolian, que negou quando a empresa começou a ter problemas, e ainda há pouco tempo afirmou que "sabia que Ao Man Long era corrupto". Mas em matéria de lições de patriotismo de arenque não só não é a única, como também está longe de ser a pior. Muitos dos bate-pala que se comovem até às lágrimas com cantilenas, operetas e outros disparates estão aí a fazer pela vidinha, adquirindo património no exterior, documentos de viagem de outros países que não a China e mandando para lá alguns familiares, o que diz muito desse sentimento de amor pátrio incondicional. É outra cultura, a juntar a um passado que carrega consigo mais bagagem do que se pode imaginar. Não fosse por isso e chamava-lhe de "hipocrisia", imaginem só. Sendo assim, então força, ó compatriotas. Olhem-se no espelho do lago e digam lá o que vêem.

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