domingo, 6 de abril de 2014

Heavy Mental


Na tentativa de arrumar a casa, que é como quem diz, colocar o blogue em dia, gostava agora de vos deixar com o artigo publicado no Hoje Macau de quinta-feira, dia 27 de Março. Um exclusivo Bairro do Oriente, uma vez que este texto não se encontra disponível na edição electrónica daquele jornal. Espero que gostem, e mais uma vez peço desculpa pela demora na actualização de algumas rubricas a que os leitores já estavam habituados. Boa semana de trabalho, para quem regressa amanhã às lides profissionais, e um bom descanso para quem goza da tolerância de ponto.

O que é “heavy mental”? O cantor, actor, poeta, filósofo, agitador de massas e santo Manuel João Vieira definiu “heavy mental” como sendo “igual ao ‘heavy-metal’, só que mental”. Sendo “heavy” (pesado), e mental, causa uma sensação de peso na cabeça, impede ainda que as ideias fluam com a devida ligeireza, provoca um congestionamento no espírito que nos impede de cumprir por completo os exigentes parâmetros da modernidade, de olhar para a frente, de aceitar o outro. As notas que se tocam neste género que é o “heavy mental” são sempre as mesmas; é a banda que vai ao Domingo tocar no coreto da vila aquela música que já todos sabem de cor, e se ousam seguir uma pauta diferente, causam uma grande estranheza entre a sua audiência, que fica a perguntar: “o que é aquilo que eles estão a tocar?”. Se insistem arriscam-se a ver metade do seu público a ir embora. Se voltam ao mesmo tom de sempre, cessa de imediato o burburinho, e ficam todos a “abanar o capacete” ao som da mesma melodia de sempre. Em Macau a grande maioria dos seus residentes é fã deste “heavy mental” – uns por opção, outros por ignorância, e outros ainda por adesão. É tão monótono que já nem dá...adiante.
Aceitar certos tipos de comportamento, que em muitos casos são não mais do que uma conquista da modernidade sobre os rígidos constragimentos do conservadorismo e dos cânones religiosos, é sempre um parto difícil. Por exemplo, e já que falamos de partos, a maternidade ou a paternidade fora do casamento são ainda consideradas tabu. A legislação de Macau protege os recém-nascidos – felizmente, diga-se de passagem – e obriga a que cada criança tenha um pai e uma mãe, independente de quem são ou de qual o seu estado civil. Apesar de não existir há várias décadas a condição de “bastardo”, é ainda com grande admiração que se fica a saber que fulano ou fulana foram pais, “sem terem casado”. Assisti pessoalmente a casos de pessoas que anunciaram terem sido pais, apesar de terem optado por ficar solteiras, e a reacção mais comum que encontraram foi: “então casaram e não disseram nada?”. É como se o casamento fosse uma espécie de licença para procriar. Uma vez assinado o papel no registo civil, ficam desbloqueados os orgãos de reprodução, e tudo lhes é permitido. É pena que existam tantas relações amorosas felizes que no fim se estragam com o casamento.
E ainda falando de casamentos e derivados, no outro dia tive um conversa com um colega, em que me lamentava pelo facto de muitas vezes certas demonstrações de afeição por colegas ou amigas do sexo oposto, mesmo que apenas completamente amigáveis, fossem mal interpretadas. Aí ele respondeu-me que “é assim mesmo, são as regras”, e quando retorqui que não existia nada de errado na amizade entre um homem e uma mulher, ele insistiu que “não, não, aqui é diferente”, com um ar muito sério. “Mesmo que ambos sejam casados com outras pessoas?” – rebati. “Sim, porque pode acontecer qualquer coisa”. Com que então “qualquer coisa”. Isto só me leva a entender que duas pessoas do sexo oposto, cada um deles comprometido com outras duas pessoas, que tenham uma conversa de dez minutos em que um deles ou ambos sorriam ou em que os olhares se eventualmente se cruzem, estão em pensar em adultério, fornicação, bacanais, rituais satânicos ou de adoração a Cali, deusa hindu da morte e da sexualidade. Quer dizer, e o burro sou eu? Mesmo assim é melhor anotar esta no meu bloco de notas e manual de sobrevivência: “mulheres e homens não podem ser amigos”. Isto já nem é “heavy mental” – é “trash mental”.
Outras manifestações de modernidade, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo, são impensáveis nesta meca do “heavy mental”. Mesmo que as mentalidades fossem abertas, a política nunca nos deixaria dar esse passo sem a China o permitir, ou fazê-lo primeiro. Enquanto isso, vamos lá a ter juízo. Se Macau é, como alguns afirmam, a “Las Vegas da Ásia”, e se os americanos têm por hábito dizer “what happens in Vegas, stay in Vegas” – o que acontece em Las Vegas fica em Las Vegas, em Macau temos uma variante desta máxima: “o que acontece em Macau...não aconteceu de todo”. Fecha-se os olhos e faz de conta que não está lá. Eles fizeram o quê? Eram casados? Então tudo bem. Ele era casado mas ela não? Mas ele pagou? Não faz mal; é tudo permitido. Menos o resto, que é mau. Tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é “heavy-mental”.

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