quarta-feira, 9 de abril de 2014

Uma mão cheia de nada


Uma moradia tipo vivenda (V5, 3 pisos com garagem e logradouro) no Montijo, a dez minutos a pé do centro e a meia hora de Lisboa. Ano de construção: 1994. Área bruta: 346 m2. Área útil: 285 m2. Preço: 288,000 euros (menos de 3 milhões de patacas.


Um apartamento com mais de 20 anos no Patane, em Macau. Área: 50,46 m2 (área útil: 35,37 m2), 2 quartos, uma casa-de-banho e uma sala. Preço: 3,5 milhões de HKD.

Via hoje à hora de almoço no Telejornal da RTPi uma reportagem de uma série consagrada à comemoração dos 40 anos do 25 de Abril, e desta vez o canal público de televisão levou-nos à Ilha das Antas, um antigo bairro degradado da cidade do Porto, onde nos anos 70 e 80 chegavam a viver várias famílias debaixo do mesmo tecto, na ordem das 10, 12 ou mais pessoas por fracção. Passadas algumas décadas, a situação não é muito melhor, mas é menos dramática, e não existe mais aquele cinzentismo daquela época de indecisão num país atrasado e pobre, a que a imagem a preto e branco também dava uma ajuda. Um dos objectivos da Revolução dos Cravos, uma das suas ambições, era dotar todos os portugueses com habitação condigna, um ensejo que está longe de se realizar na sua plenitude. Se em Portugal, onde ainda é possível adquirir uma moradia habitável e não necessariamente periférica pela módica quantia de 50 mil euros, ou 500 mil patacas, o que dizer de Macau, onde um simples rectângulo desenhado no chão a que chamam "lugar de estacionamento" chega a atingir os dois milhões de dólares de Hong Kong, ou seja, 200 mil euros? Olhando para este presente, que futuro tem o direito à habitação, um dos mais básicos entre os consagrados à população da RAEM?

Tomemos então por exemplo dois casais: dois recém-casados portugueses, e dois seus antípodas macaenses, todos com idades compreendidas entre os 25 e os 30 anos. Ambos os casais auferem em conjunto um rendimento líquido de 30 mil patacas - considerado "médio", portanto. O casal português compra um apartamento relativamente recente, um T3 usado, até, nos arredores de Lisboa ou Margem Sul por 500 mil patacas, pede a totalidade dessa quantia a uma instituição de crédito, e amortiza em prestações de 10 mil patacas mensais num total de 55 meses, atendendo aos juros e a respectiva variação das taxas, ou seja, cerca quatro anos e meio. Atendendo à crise e à natureza despesista do povo lusitano, podem optar por uma modalidade de crédito flexível, pagar em 10, 15 e 20 anos, e assim reduzir o peso da hipoteca no orcamento familiar mensal. O casal de Macau compra um T2 muito mais reduzido, de pior qualidade em todos os aspectos e com mais de 20 anos desde a construção por dez vezes mais este preço, o banco concede-lhe apenas um terço desse crédito. Caso "desencantem" os três milhões necessários para dar de entrada, ficam a pagar o restante durante mais de 10 anos, dispensando para o efeito 50% dos rendimentos auferidos mensalmente. Portanto durante dez anos, nada de luxos, pensar bem antes de ir jantar fora, viagens só ano sim, ano não e a destinos próximos de Macau, e pensar muito, mas mesmo muito bem antes de ponderar hipótese de vir a ter filhos, e consequentemente mais despesas.

Esta é a diferença entre Portugal, um país endividado, asfixiado por impostos, cortes e austeridade, desemprego galopante, e Macau, um território com um dos maiores PIBs per capita do mundo, reservas financeiras que deixam os cofres do erário público a abarrotar de cheios, e uma empregabilidade quase plena. A diferença é esta: no oásis que é Macau, os seus residentes estão reféns da especulação imobiliária. Passa-se uma meia vida a fazer sacrifícios para pagar não um investimento, mas uma comodiade exigida para que se viva, não com conforto ou qualidade, mas apenas para que se viva. Paga-se por uma espelunca escura e decadente atirada para um bairro onde pululam as espeluncas escuras e decadentes o dobro ou o triplo que se paga em Portugal por uma vivenda de dois andares com garagem e jardim. Os bancos não vão na conversa, e não há um deles que empreste metade do valor da aquisição - porque sabem que não valem isso, e prestam contas não às empresas de fomento imobiliário nem ao governo de Macau, mas sim aos mercados internacionais, que como se sabem não dormem no ponto, e não toleram "loucuras" desta natureza. Há dez anos, durante a crise da SRAS, e alguns anos antes, durante o "crash" das bolsas asiáticas, as instituições bancárias não só concediam crédito até à totalidade do valor da compra do imóvel, como ainda ampliavam esse crédito "para a realização de obras".

Quando cheguei a Macau, em 1993, era possível adquirir uma fracção para habitação completamente nova com a area de 70 m2 ou mais por valores entre as 350 e as 500 mil patacas. Durante a tal crise da SRAS, em 2003, o valor das fracções era cinco, dez ou mais vezes inferior ao actual. Em alguns casos apartamentos semi-condenados localizados em blocos daqueles que vemos nos bairros problemáticos das series policiais americanas custavam 200 mil patacas, ou menos, e ninguém os comprava. Hoje custam na ordem dos 3 ou 4 milhões. São os mesmos apartamentos, só que mais velhos. Um T2 completamente novo chega ao mercado com um preço na ordem das sete ou dos oito milhões de patacas. São novos, sim, mas cuidado para não tropeçar numa das esquinas da sala, ou soltam-se os tacos, tal é a deficiente qualidade dos acabamentos. Uma fracção no controverso edifício Sin Fong, no centro de uma polémica que se arrasta há quase dois anos e obrigou os seus moradores a abandonar as casas e arrendar outras, custava mais de cinco milhões de patacas na altura em que foi anunciado que o prédio corria o risco de ruir. Um dos tais lugares de estacionamento atirado para uma cave qualquer onde mal se consegue respirar, custa o dobro ou o triplo de um T4 no centro do Barreiro. Uma fracção da tal habitação económica, que foi um parto difícil para os dois primeiros executivos e onde mal se pode cair morto - não há espaço suficiente para que um cadáver possa jazer esticado da cabeça aos pés - custa tanto ou mais que um T3 de 154 m2 no Montijo, perto do centro e a menos de meia hora de carro do centro financeiro de Lisboa.

O actual Chefe do Executivo deixou claro desde o início que esse mesmo Executivo, de quem é o responsável máximo, não ia interferir no mercado imobiliário, pois este "é livre". Ao dizer isto, Chui Sai On passou um cheque em branco à forma mais desumana e materialista de capitalismo selvagem, ignorando por completo a qualidade de vida da população, estrangulando-lhe o acesso à habitação. Isto porque tanto do lado direito, como do lado esquerdo do Chefe do Executivo sentam-se agentes com fortes interesses no inflacionamento absurdo do preço do metro quadrado. Nos últimos tempos temos assistido a um verdadeiro "circo de feras", ao ponto de vermos associações que ostentam na sua designação epítetos como "beneficência" e "caridade" a comportarem-se como verdadeiros "tubarões" saídos de alguma Wall Street ou qualquer outro ponto onde o lucro fácil substitui qualquer sentimento humanista. Estas tais associações de alegada beneficência e putativa caridade estão fortemente representadas nos círculos do poder, e não pestanejam na hora de escorraçar um louceiro, um sapateiro ou uma costureira do seu ganha-pão, aumentando a renda do seu espaço comercial de cinco ou dez mil patacas para cem ou duzentas mil, de modo a poder ter margem de manobra para negociar um negócio milionário com alguma cadeia de lojas que se dedique à venda de joalheria, roupa de marca ou outros bens de luxo. Fosse o preço do arrendamento para a habitação acompanhar esta insanidade que se verifica nos espaços comerciais, e tinhamos uma situação ainda mais precária que a da Ilha das Antas na era da TV a preto e branco.

Finalmente esta autêntica febre do betão armado "armado" em ouro transbordou dos limites do território, e chegou à atenção da imprensa internacional. Se já devem ter pensado que somos loucos ao permitir que o preço das casas tenha disparado na ordem dos 1000% e mais, pensariam que estávamos completamente xéxés se viessem até cá ver pela bela caca que andamos a desembolsar toda essa diferença. Quem teve a sorte de investir quando os preços ainda não estavam pela hora da morte, enterro, decomposição, exumação e transferência para o ossário, tem um tecto por cima da cabeça, e deve estar a pensar "ufa, livrei-me de boa". Quem pensa que pode capitalizar o seu investimento, vendendo hoje por 4 ou 5 milhões o que lhe custou menos de metade disso há alguns anos, vai ficar a sorrir, certamente, mas ou tem outra casa para arrumar os tarecos, ou vai viver para debaixo da ponte - de fazer figura de parvo é que não se vai livrar, com toda a certeza. Quanto ao futuro, é negro. Se estes valores absurdos não estão ao alcançe da esmagadora maioria da população de Macau, quem vai comprar? E se forem forasteiros, como vamos manter a gente de Macau dentro de Macau? E sem gente de Macau, Macau será Macau? Aqueles que estão encarregados de olhar por nós são os mesmos que nos fazem caminhar pela prancha e saltar pela borda fora do barco? Digam o que disserem, levantem as cortinas de fumo que quiserem, vai ficar nas mãos de Chui Sai On tomar uma medida firme e radical para resolver este problema. O actual Chefe tem mais cinco anos para nos trazer a redempção. Só resta agora saber se na sua mão está mesmo essa solução, ou se essa mão estão apenas cheia de nada. Pelo caminho que as coisas têm tomado, nada de auspicioso se perspectiva, mas não é esta uma terra de gente de fé? Puxem então pelos seus mistérios, que pelo menos pior que está não fica, e se ficar não vai ser por fazer força para que não fique. Façam-no, e se não for por vocês próprios, que seja pelos vossos filhos, e pelas gerações seguintes - para que tenham o direito a suceder as anteriores, lá está...

1 comentário:

Daniel Flores disse...

"Tomemos então por exemplo dois casais: dois recém-casados portugueses, e dois seus antípodas macaenses, todos com idades compreendidas entre os 25 e os 30 anos. Ambos os casais auferem em conjunto um rendimento líquido de 30 mil patacas - considerado "médio", portanto. O casal português compra um apartamento relativamente recente, um T3 usado, até, nos arredores de Lisboa ou Margem Sul por 500 mil patacas, pede a totalidade dessa quantia a uma instituição de crédito, e amortiza em prestações de 10 mil patacas mensais num total de 55 meses, atendendo aos juros e a respectiva variação das taxas, ou seja, cerca quatro anos e meio. Atendendo à crise e à natureza despesista do povo lusitano, podem optar por uma modalidade de crédito flexível, pagar em 10, 15 e 20 anos, e assim reduzir o peso da hipoteca no orcamento familiar mensal. O casal de Macau compra um T2 muito mais reduzido, de pior qualidade em todos os aspectos e com mais de 20 anos desde a construção por dez vezes mais este preço, o banco concede-lhe apenas um terço desse crédito. Caso "desencantem" os três milhões necessários para dar de entrada, ficam a pagar o restante durante mais de 10 anos, dispensando para o efeito 50% dos rendimentos auferidos mensalmente. Portanto durante dez anos, nada de luxos, pensar bem antes de ir jantar fora, viagens só ano sim, ano não e a destinos próximos de Macau, e pensar muito, mas mesmo muito bem antes de ponderar hipótese de vir a ter filhos, e consequentemente mais despesas."

Onde é que em Portugal, principalmente na cidade de Lisboa se pode encontrar um T3 a 500 mil patacas?
Um casal com um ordenado combinado acima da média, em Portugal, recebe, depois dos descontos, 2000 euros, cerca de 20.000 patacas.
Um apartamente em Lisboa, mesmo que seja um T1 ronda os 150.000 euros, o equivalente a 1.500.000 de patacas.

Partindo desta realidade, podemos reparar que a dificuldade em arrendar casa ou comprar casa está perto da situação que se vive em Macau.
É claro que a habitação em Macau é de péssima qualidade, em comparação com a de Portugal.