quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Critico, logo existo (parte I)


Críticos. Ninguém gosta de um crítico, esse personagem que se especializou em chatear os outros. Existem críticas positivas e negativas, mas a palavra “crítica” tem quase sempre uma conotação negativa. Estar a criticar é o oposto de estar a elogiar. A crítica é o antípoda do elogio. No dia a seguir a um espectáculo, os artistas abrem os jornais “para ver o que diz a crítica”, e nunca esperam nada de bom, ou de tão bom quanto pensam que merecem. Quando se acusa alguém de ser “um crítico”, quer-se na verdade dizer que é um má-língua, um ressabiado e invejoso; “é mesmo um crítico de merda”, dizem. Ninguém diz “bestial, aceitamos as tuas críticas e vamos procurar melhorar”. Mesmo os que dizem aceitar as críticas, “desde que sejam construtivas” – ou seja, verdades que doem mas suportadas por análises de cariz técnico ou vindas de quem consegue fazer muito melhor – não aceitam coisa nenhuma. A história da crítica está manchada de sangue. Basta recordar a “Campanha das cem flores”, levada a cabo por Mao na China, e que lhe permitiu identificar os críticos e limpar-lhes o sarampo. Qualquer artista, escritor ou músico devia ter um pequeno santuário com uma imagem de Mao, e acender-lhe uma velinha cada vez que sai uma crítica.

Há um episódio dos Simpsons em que o personagem principal, Homer Simpson, se torna um crítico de culinária. Como é um comilão insaciável, acha tudo bom, e dá nota máxima a todos os restaurantes por onde passa. Aí os restantes críticos dos mais diversos quadrantes chamam-lhe a atenção para o dever do crítico: criticar, ou noutras palavras, falar mal de vez em quando, mesmo de algo bem feito. A sátira dos Simpsons peca por um pouco de exagero, mas toca na ferida: não pode ser tudo bom. Sabemos de críticas negativas que são injustas, outras de que discordamos, outras que dividem as opiniões, e outras que são unânimes. Temos críticos que confundem o dever de avaliar o trabalho de outrém com uma caça aos erros, e caem na tendência de apontar os defeitos e ignorar os aspectos positivos. Outros aproveitam-se da sua posição para acertar contas com inimigos de estimação, e outros que após duas ou três experiências negativas com um artista, cineasta ou escritor, não conseguem identificar o que quer que seja de positivo no seu trabalho. Nem todos os críticos são perfeitos; eles próprios são criticáveis, e também erram. Se não concordamos com uma certa crítica, criticamo-la nós também. Todos somos críticos, e portanto todos somos falaciosos, tendenciosos e imprecisos.

Depois há que ter em conta um detalhe importantíssimo. Ser crítico requer especialização na matéria que se vai criticar. Quem nunca leu um livro na vida não é com toda a certeza convidado a pronunciar-se sobre a última obra de Miguel Sousa Tavares, um anti-crítico militante, que manda os críticos a tal sítio, se for caso disso. O melhor crítico de cinema de todos os tempos, na minha opinião e na opinião da generalidade da crítica (eheh) foi o saudoso Roger Ebert, falecido no ano passado. Ebert tinha formação superior em cinema, e apesar de ser mais conhecido na área da crítica, produziu e escreveu algumas películas, sendo a mais famosa o clássico erótico “Valley of the dolls”, nos anos 70. Acompanhei este crítico durante vários anos, e seguia religiosamente as sua “reviews” das sextas-feiras. Escrevia bem, tinha sentido de humor e apoiava algumas das suas críticas com os seus conhecimentos técnicos sobre o assunto, especialmente quando tratava de aspectos como a cinematografia, o som ou a realização. Houve tempos em que lia a sua crítica sobre este ou aquele filme antes de ir ver, mas nunca uma crítica sua me demoveu de ir ver um filme que aguardava com expectativa, e nem sempre concordei com as suas avaliações. No fundo o que o crítico faz é isto. Pode dizer bem mas não obriga ninguém a comprar o produto,e pode dizer mal de um livro, de um filme, de um disco ou de uma exibição de arte, e aconselhar-nos a não ir, mas não nos anda a seguir para ter a certeza que lhe demos ouvidos.

Recordo-me daquela programa dos finais de tarde da RTP nos anos 80, “P’ra variar”, que consistia em pouco mais de meia-hora de variedades, com apresentação de Vítor Espadinha. Uma das rubricas desse programa chamava-se “O Justiceiro”, onde um mascarado fazia a crítica de um restaurante que tinha visitado, e conforme o grau de satisfação atribuia-lhe colher de ouro, de prata ou de pau, por ordem descrescente de qualidade. Os proprietários dos restaurantes eram convidados a receber o prémio em directo no programa. Os contemplados com a colher de ouro iam com todo o gosto, os que levavam a prata aproveitavam para justificar as falhas que impediram que recebessem o ouro, os relegados à colher de pau declinavam o convite, com a excepção de um deles, de que me recordo bem. O empresário da restauração em causa surgiu no programa visivelmente alterado, disposto a repôr a verdade, desmentindo o “justiceiro” e chegando mesmo a acusá-lo de má vontade. Esta atitude defensiva, o tom acusatório, o contra-ataque, são reacções típicas de quem sente que lhe estão a ir à carteira. Quem vive do que faz não tolera que o critiquem, e acusa-o de tudo e mais alguma coisa, desde desonestidade e incompetência, até má-vontade e cumplicidade com algum rival ou inimigo.

Um músico profissional que tenha recebido uma crítica negativa do seu último trabalho discográfico pode defender-se com argumentos de todo o tipo, mas tem a tendência de disparar contra a própria crítica, e normalmente com comentários do tipo “não percebem nada de música”, ou “não sabem tocar um instrumento”. O mesmo se passa com os cineastas ou com os artistas plásticos, que chegam a desafiar os críticos a “fazer melhor, se forem capazes”. Ora nada disto faz sentido. O músico faz a sua música, o público ouve o seu trabalho, o realizador faz um filme, as pessoas vão ver, o pintor pinta, os visitantes da exposição vão apreciar o resultado. Eu não preciso de saber tocar instrumentos, fazer filmes ou pintar para poder dizer se gosto ou não gosto. Se fossemos todos artistas, não sobrava ninguém para ir às exposições. Quando eu não gosto mas existe uma esclarecedora maioria de pessoas que gostam, pode ser que eu esteja enganado, mas se os polegares virados para baixo são muito mais do que os apontados para cima, o melhor é o artista ficar caladinho e tentar fazer melhor da próxima vez. Se persiste em desiludir, se calhar devia mudar de profissão.

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