Um dos Dez Mandamentos diz-nos que não se deve usar o nome de Deus em vão. Interpretando esta regra de maneira literal, dá-me a entender que o nome de Deus deve ser usado apenas em caso de emergência, como aqueles travões vermelhos que estão por detrás de uma janelinha nos autocarros. Sendo um povo tradicionalmente católico, os portugueses adoram quebrar o vidrinho com aquele pequeno martelo tão patusco, e invocam o nome de Deus por tudo e por nada. O nosso léxico está cheio de expressões onde aparece o nome de Deus, e que mesmo os não-crentes e até os ateus utilizam com frequência. É mais um produto da influência Católica na nossa cultura do que propriamente uma manifestação de fé. Quem se lamenta dizendo “Meu Deus não está a apelar à intervenção divina para remediar a situação. Aliás os ingleses consideram isto uma profanidade, As expressões “God”ou “Christ” isoladas são tidas como uma interjeição que exprime descontentamento ou fadiga.
Mas em Portugal, e no que toca às expressões mais commumente usadas pelo nosso povo, pode-se dizer que Deus está mesmo em toda a parte. Temos o verbo “endeusar”, que significa “deificar”, “divinizar”, ou seja, atribuír a algo ou alguém as qualidades próprias de Deus, ou de uma divindade. Devíamos ter também o verbo “deusar”, para definir o hábito de utilizar frases onde entra o nome de Deus. É fácil de conjugar, e o Presente do Indicativo ficaria: eu deuso, tu deusas, ele deusa, nós deusamos, vós deusais, eles deusam. O mais irónico é que quem acusa os outros de deusar em demasia, é também um dos que deusa mais. Na verdade todos deusamos, até eu próprio. Aliás não deve haver dia em que não deuse, e por vezes nem sequer dou por isso. Atire a primeira pedra quem nunca deusou.
O deusamento é praticamente um acto irreflectido, um impulso involuntário, é quase como pestanejar. Sendo que a crença na existência de Deus depende da fé de cada um, e a fé é algo de abstracto, impalpável e inquantificável, não se confere crédito a quem deusa a torto e a direito, ou quando lhe convém. Um criminoso que seja detido em flagrante delito e implore à polícia que não o prenda “por amor de Deus”, não está certamente à espera que os agentes se ponham de joelhos a rezar enquanto ele aproveita para fugir. Imaginem um arguido que em pleno tribunal recorre ao deusamento para se safar de um delito onde todas as evidências estão contra ele: “Juro por Deus que estou inocente”. Ninguém no seu perfeito juízo vai acreditar que depois disto os juízes pedem desculpa ao indivíduo pelo incómodo e o deixam ir para casa à vontade. Mesmo para quem alega que “Deus é minha testemunha”, é improvável que essa testemunha venha depôr para comprovar se o que diz é realmente verdade. Enfim, temos um sistema judicial muito pouco crente. Cambada de infiéis de toga preta.
A propósito deste exemplo, conheci um dia um juíz de Hong Kong que era ao mesmo tempo um católico praticante, daqueles mais ferverosos. Contou-me então que vivia em constante conflito pessoal com a sua profissão, pois “era obrigado a julgar os outros, quando esse desígnio é exclusivo de Deus”. Revirei os olhos perante esta afirmação, que me levou a ter dúvidas de que estava perante alguém com um nível de educação superior, com responsabilidades que são confiadas apenas a quem goza da plenitude das suas capacidades mentais acima de qualquer dúvida. Diplomaticamente fiz-lhe ver que a sua função insere-se no âmbito de “julgamento terreno”, e não tem qualquer relação com o dia do juízo final, enfim, isso tudo. O que Deus lhe pede é que seja justo no seu julgamento, e que aplique correctamente a lei, e que apenas o contrário poderia merecer a Sua reprovação. Perdoem-me a arrogância, mas adoro contar este episódio, que ilustra muito bem como a fé pode ser inimiga da razão, e que pouca gente fica imune a este tipo de confusão.
Voltando à mania que temos em deusar a toda a hora. Uma expressão curiosa é “Deus queira…” seguido de uma ambição, desejo ou vontade. Quem diz “Deus queira que amanhã esteja bom tempo” porque programou um piquenique, não vai certamente culpar Deus se chover a potes o dia todo. Se quiser culpá-Lo, pode sempre fazê-lo caso o pudim seja atacado pelas formigas, alegadamente uma das Suas criaturas. “Deus queira…” pode ainda adquirir um tom ameaçador, dependendo das circunstâncias. Um jovem que faz uma traquinice e depois providencia aos pais um alibi para escapar ao castigo, arrisca-se a ser apanhado se estiver a mentir, o que pode piorar ainda mais as coisas. Os pais normalmente avisam: “Deus queira que não nos estejas a mentir! Senão…”. Este é o ultimato dos ultimatos. A veracidade das palavras do jovem e a sua presumida inocência estão nas mãos do criador. Se o pequeno malandrim for religioso, pode rezar e pedir que nessa noite Deus não mande o Arcanjo Gabriel ou outro emissário para contar a verdade aos pais.
Ainda sou do tempo em que os serviços noticiosos como o Telejornal terminavam com o locutor a despedir-se com um “Até amanhã, se Deus quiser”. Entretanto a RTP passou por uma laicização mais condizente com a sua função de informar, e penso que já ninguém diz isto no fim das notícias. Mas fica por explicar que fatalismo é este? Até amanhã…se Deus quiser? É certo que ninguém sabe o que vai acontecer nos próximos cinco minutos, mas eu prefiro acreditar que vai haver um amanhã, e já agora um depois, e uma semana que vem. Pelo menos para mim, que não sofro de qualquer doença terminal. E por falar nisso, há quem tenha a mania de deusar quando uma situação se afigura mais complicada. Quando um doente está entre a vida e a morte, e mais inclinado para a segunda, há medicos que vêm dizer à família qualquer coisa como “Fizemos o que era possível…agora está nas mãos de Deus”. Dá vontade de responder “Ai sim? Olhe, já que não nos pode ser útil, será que podiamos falar com o dr. Deus, para ver o que nos tem para dizer?”.
Há quem opte por deusar para dar ênfase a uma afirmação, e normalmente a tendência é para cair no exagero. Um tipo que queira impressionar os amigos para que estes sintam pena dele por estar desempregado, ou endividado, ou por ter a mulher a enfeitar-lhe a testa diz “Só Deus sabe aquilo que estou a passar!”. E depois manda abaixo mais um bagaço. De facto a Deus são atribuídas qualidades sobrenaturais, de quem tudo sabe, tudo vê e de tudo é capaz, até de “escrever por linhas tortas”. No entanto diz-se também que “Deus dá nozes a quem não tem dentes, e dentes a quem não tem nozes”, um ditado popular que ilustra como há pessoas que tendo os meios e a capacidade para realizar um empreendimento optam por não o fazer, enquanto outros que desejavam poder fazê-lo não o podem por falta desses meios, mesmo que dotados da capacidade. Muito filosófico, sem dúvida, mas demonstra que afinal Deus não é de todo infalível, e falha na hora de distribuir os dentes e as nozes.
Não tem mal nenhum deusar de vez em quando, desde que em pequenas doses. Uma pessoa que deuse de dois em dois minutos, e não seja padre ou pastor evangélico (especialmente este último, e ainda mais se for brasileiro), é tido como um maluquinho. “Isso Deus é que sabe…”, “Vamos ver o que Deus decide…”, “Deus quis assim, paciência…”, “Foi vontade de Deus…”, este excesso de deusamento é normalmente atribuído a alguma psicose. Nem todos têm a classe de Amália Rodrigues, que com o seu “Foi Deus” para explicar a origem da sua magnífica voz deusou uma frase que ficou para a eternidade. Como tudo mudava de figura se fosse possível comprovar a existência de Deus, e confirmar todas as qualidades que Lhe foram atribuídas. Aí tenho a certeza que pensávamos duas vezes antes de deusar.
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