sábado, 19 de outubro de 2013

Lições de cantonense, parte XI: wa, loh, meh, sin, che


Um estrangeiro que toma contacto com o dialecto cantonense pela primeira vez fica surpreendido com a articulação das sílabas, com o movimento dos lábios, com aqueles sons que nunca ouviu antes. A minha impressão inicial foi que nunca haveria de atinar com aquilo, e tinha em grande conta os restantes estrangeiros que pareciam falar com à vontade, e mesmo os que apenas se desenrascavam ou "pescavam" alguma coisa do que ouviam. Foi pouco tempo até aperceber-me que a melhor forma de aprender era sozinho, deixado "no mato". Quem é português, vem para Macau e limita-se ao espaço da comunidade portuguesa, não tem a necessidade de aprender, pois não é necessário. Se uma vez aqui chegado não conhece ninguém, é obrigado a aprender para poder sobreviver. É como aquela discutível teoria que para ensinar alguém a nadar a melhor forma é atirá-lo ao rio.

O cantonense é considerado uma espécie de língua "marginal", e talvez daí o seu estatuto de mero dialecto. Não se reconhece grande erudição no idioma, não há grandes poetas do cantonense, grandes escritores, filósofos, e mesmo no cinema os casos pontuais encontram-se em Hong Kong. Existe uma forma coloquial do cantonense, que se considera o cantonense "correcto", e existe uma versão mais popular, o cantonense de rua, que é a mais comum. Escutando os jovens a falar entre eles, ou os adultos com menos habilitações, nota-se a repetição de certas sonoridades, e o recurso a interjeições tanto no início como no meio e no final das frases. Esta tendência nota-se mesmo em que tem a obrigação de falar um cantonense mais cuidado, como é caso, citando um exemplo muito em voga, o deputado Fong Chi Keong. O empresário é uma prova cabal de como por vezes ter dinheiro é mais importante do que ter educação ou boas maneiras.

Numa conversa informal entre amigos, é possível escutar uma série de expressões curiosas, mas que são completamente desnecessárias para a compreensão do diálogo. Ouvem-se muitos "wa", "che", "loh", "hmm ai-ah", "meh", "sin", "wo", entre outros, e isto para não falar dos palavrões, ou como se diz por aqui, "boca suja", literalmente traduzido da expressão "chou hau". Se queremos repreender alguém por dizer muitas asneiras, dizemos-lhe "kong chou hau", e ainda que essa pessoa é "hou wat tat" (muito feia). É possível reparar em algumas expressões usadas pela comunidade macaense - os portugueses de Macau - ou os chineses que estudaram português que deixariam muitos portugueses de Portugal espantados. Quem tem o cantonense como língua materna e só mais tarde toma contacto com o português ou tem o português como segunda língua, tem alguma dificuldade em conseguir uma tradução fiel de algumas expressões mais comuns do cantonense. O mais engraçado é que isto pega-se, e eu próprio dou por mim a recorrer a alguns destes expedientes. Podemos querer ser puristas e resistir, mas mais cedo ou mais tarde, acabamos por ceder.

Pegando nessas interjeições e redundâncias pelos cornos. O "wa" no início das frases, por exemplo, é normalmente usado para expressar surpresa, ou descrédito. Depois de ouvir algo improvável ou surpreendente, o receptor recua ligeiramente a nuca a exclama "wa, hmm-ai-ah!" (não pode ser!). Convém prolongar o som do "a" em "wa" para dar um melhor efeito, como em "waaaa". O "che" é usado para indicar que o nosso interlocutor está a dizer um disparate, a cometer uma imprecisão grave, ou simplesmente a gozar com a nossa cara. "Che", dito com um tom de desprezo, é como dizer "sai daqui, palerma; pensas que eu nasci ontem?" ou "por acaso sabes o que está para aí a dizer?" ou ainda "deves ser mas é parvo". É engraçado com uma simples sílaba pode abarcar tantas interpretações. Quanto ao tal "hmm-ai-ah", que se pode traduzir para "não pode ser" ou "não é possível", é mais usado para expressar espanto ou surpresa do que propriamente para desmentir a pessoa com quem falamos. Para esse efeito existe um remédio que é tiro e queda: "chi sin" (maluco). Contam-nos uma treta, viramos as contas e apontamos com o dedo num gesto rápido, como quem enxota um cão, e dizemos "chi sin!". És maluquinho, pá.

Este "loh" é um caso especial. Não há um falante do cantonense que não diga "loh" centenas de vezes por dia. Pode ser usado no final de uma frase afirmativa, como que a servir de ponto final, ou o "over" de uma transmissão via radio entre o navio de guerra e a base. Na realidade serve para transmitir firmeza ao que se diz. Termina-se uma frase, e carimba-se com um "loh", como quem acabou de dizer uma grande verdade. No início da frase pode servir de introdução a uma elaborada explicação. No meio de uma discussão, um dos participantes começa com um decidido "loh", ao que se segueo discurso. "Loh" aqui equivale ao nosso "ouve", "escuta", ou "deixa-me explicar". Quanto ao "meh", é uma interrogativa, corrupção do original "ma", que se coloca no final de uma perguntas. Finalmente o "sin", também bastante usado em conversas informais, transmite a ideia de prioridade, de importância, mas não tanto de urgência. Quando se pede um favor a alguém, pergunta-se "pode ser?", em cantonense "tak hmm tak?". Acrescentando este "sin", que literalmente significa "primeiro" ("ngo sin" = eu primeiro), o pedido torna-se mais apelativo. "Tak hmm tak sin?" é como "olha lá pode ser ou 'tá difícil? É que estou a contar com isto para hoje, percebeste?". Incrível como uma pequena palavrinha pode transformar tanto o sentido de uma locução.

Existem outras expressões que ouvimos frequentementes, e ao fim da 258ª vez ficamos com curiosidade no que significam. Uma delas é um tal de "lei yao mou kau chou-ah!", uma exclamação que observamos em pessoas muito nervosas, ou agitadas. Esta expressão é muito difícil de traduzir para português, mas é o equivalente ao nosso "não tens vergonha?". Para dar impacto a esta afirmação é preciso dar-lhe muita teatralidade, mexer-se muito, cerrar os olhos, agitar os braços, apontar para o desenvorgonhado como quem lhe dá um raspanete. É complicado. Outro exemplo é "sai hmm sai". Quando alguém nos diz algo desagradável, ou inoportuno, toma uma atitude radical ou adopta um comportamento reprovável, exclama-se "sai hmm sai-ah?", ou "o que é isso, pá?" ou numa tradução mais literal "era mesmo necessário?". Fosse o Diácono Remédios traduzido para chinês, e o seu "não havia nexexidade" ficava "sai hmm sai". Uma muito engraçada e interessante de analisar é "aya!", uma simples interjeição que se usa quando acontece algo desagradável. Três usos: 1) estamos a usar o PC e entornamos o café em cima do teclado e das calças, levantamo-nos e dizemos "aya!"; equivalente português: "merda". 2) estamos no parque a ler um livro enquanto os miúdos brincam, um deles cai, esfola os joelhos e chora, e sai um "aya!"; equivalente português: "ai o c*b*ã* do puto". 3) Saíu de casa a caminho do trabalho e a meio lembra-se que se esqueceu de algo muito importante, leva as mãos à testa e exclama "aya!"; equivalente português: f...-se!

Outras expressões muito típicas e que para a nossa cultura são difíceis de digerir são "ngo sei-ah", ou "vou morrer", que se diz numa situação de grande "stress" ou fadiga, ou na perspectiva de uma tarefa difícil de realizar. Outra que nunca aceitei muito bem é "ngo hau-ah" ou "vou vomitar"; quando elogiamos alguém, quando dizemos que é muito competente ou inteligente, ou no caso de uma senhora, que é bonita ou elegante, respondem-nos "ay...ngo hau-ah". É como nosso "que é isso? não mereço tanto" ou "você é muito gentil", um acesso de humildade. Imaginem como seria em Portugal, se ao elogiarmos uma pessoa, esta nos respondesse "vou vomitar". O melhor era sair da frente. Não se pode dizer que o cantonense seja uma língua muito romântica.

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