quarta-feira, 30 de outubro de 2013

O meu nome é rato...sr. rato



I

Segunda-feira, fim da tarde. Chegado a casa depois de mais um dia cansativo, só tenho tempo de mudar novamente de roupa e sair. Mais um daqueles jantares a que não me apetecia nada ir, mas a preguiça para fabricar uma desculpa consistente era ainda maior. Volto depois das 10, actualizo o blogue, e penso em mais dois ou três artigos que poderia encaixar, mas o corpo pesa, os olhos ardem e as pernas pedem para ser esticadas. Resolvo deitar-me um pouco na cama para ver se isso passa, e deixo a luz da sala e a TV ligadas. Fecho os olhos, julgava que por apenas alguns instantes, e sou acordado pelo som do telemóvel. Deixo sempre o aparelho no modo silencioso quando estou em casa, especialmente se for dormir, mas desta feita estava ligado ao carregador em cima da bancada de madeira no quarto, e a vibração produziu um som semelhante à de um pica-pau. Entre dois mundos, o de cá e o do João Pestana, ignorei, pois as pernas pediam para ficar e a cabeça tinha encontrado o encaixe perfeito com o travesseiro. Menos de dois minutos depois, outra vez a mesma chamada. Desta vez recuperei a consciência, juntei as poucas forças que tinha para me levantar, e quando finalmente me decidi a fazê-lo já a chamada se tinha perdido. Fui ver quem me ligou e se valia a pena ligar de volta, e entre as duas chamadas perdidas estava ainda uma mensagem, todas da mesma pessoa. Era a minha amiga Joan, moça filipina, uma extrovertida sempre cheia de pica que me visita uma vez por semana vem, semana vai. Na mensagem lia-se: "vou para Hong Kong de manhã, estou aí daqui a cinco minutos". Isto é o que se chama ser curto e grosso. Chega daqui a cinco minutos? Ora por quem sois, podeis vir à vontade ó sua alteza real. Saio do quarto e enfio o par de "jeans" que tinha deixado atiradas no sofá, e já libertado da letargia do sono, ocorre-me o seguinte raciocínio: "Que horas são?". Com a pressa de ler a mensagem no telemóvel nem tinha reparado nas horas, mas a julgar pelo tempo que dormi deviam ser uma da manhã, uma e meia no máximo. Aproximo-me do computador e descubro que afinal são 4:20! Só mesmo a Joan, essa desocupada, para fazer uma visita a alguém num dia de semana às quatro da madrugada.

II

Tinha-me dito cinco minutos, e ao contrário de outros encontros onde chega uma hora atrasada, desta vez foi pontual, e mal me tinha inteirado da hora, oiço uma batida forte na porta. Sobressaltado, desci as escadas e abri a porta, preparado para recordá-la que são quatro e meia da matina, há gente ainda a dormir no Pátio onde moro, e aquilo não era o portão da quinta. Dou com ela a ouvir música no seu iPod, volume no máximo, e sem me olhar na cara entra e sobe as escadas atrás de mim. Tira os "headphones", cumprimenta-me, sempre irradiando alegria, olhos vivos e bem abertos, sejam ela duas da tarde ou cinco da manhã. Comecei por lhe lembrar que era terça-feira, e que daqui a poucas horas ia trabalhar. Pegando nas minhas meias-palavras, respondeu do alto da sua arrogância de filipina de vinte e poucos anos nascida em Macau e portadora do BIR que para ela "é sempre Domingo", e riu-se. Disse-me que ia apanhar o "jetfoil" das oito e pediu-me se podia recarregar o telemóvel e o iPod, e trocar dois dedos de conversa enquanto fazia tempo. "Claro que sim" - retorqui - "não se perde nada, a não ser o meu precioso sono, de que vou precisar para me aguentar de pé até às seis da tarde". Perguntou-me como vai a vida, se tinha alguma novidade, e foi então que lhe falei do sr. rato, que seria o que de mais emocionante me aconteceu nas últimas 48 horas antes da sua visita. A sua reacção deixou-me deveras surpresa: "Tens aí um rato? Que fixe! Onde é que ele está?". Boa pergunta, e isso também gostaria eu de saber, mas prometi-lhe que se encontrasse o seu esconderijo, chamava-a para vir cá buscá-lo. Mudámos de assunto, mas enquanto punhamos a conversa em dia, Joan ia respondendo aos SMS. A certa altura pede-me desculpa pela interrupção e faz uma chamada. Não estava a prestar muita atenção ao telefonema, mas o pouco que entendo de tagalog era suficiente para perceber que estava a dar instruções de como chegar à minha casa. Perguntei-lhe quem vinha aí, e de como não gosto que leve desconhecidos até à minha residência, mas com o ar mais descontraído do mundo disse-me que "é apenas uma amiga, deixa lá". Amiga, com "a"? Nesse caso tudo bem. Há alguns meses visitou-me e trouxe consigo um indivíduo tailandês com um aspecto asqueroso, que me levou a expressar a minha reprovação à sua frente e tudo. Mas uma amiga não faz mal. Nunca são demais, as amigas.

III

Pouco depois disse-me que ia buscar a amiga, com quem ia depois para Hong Kong. Disse-lhe para manter a porta da rua encostada, para não me obrigar a descer novamente, e antes que pudesse compôr a casa de modo a disfarçar o meu desleixo de homem só, eis que subiam a escada, e Joan apresentava-me a amiga, uma tal Joy. Não era nenhuma miss Filipinas, que por acaso agora também é miss Universo, longe disso, mas era "simpática". Uma figura tão banal que tenho receio de quando a vir na rua não a reconhecer. Como ainda iam ficar pelo menos mais uma hora, convidei-a a sentar-se - Joan por seu lado não precisa que lhe diga, a mimada malucona. Servi umas bebidas, e sentei-me na cadeira em frente ao computador, de costas para a entrada, e em frente às minhas convidadas, sentadas no cadeirão da sala. Demos início à sessão de conversa fiada, que como sempre passa por me perguntarem quanto pago por mês de renda, patati, patatá, e a certo ponto Joy distrai-se com algo que vê junto às escadas, perto da saída. De olhos bem abertos e sorriso rasgado, exclama com entusiasmo: "Que giro! É teu?". Um nanosegundo foi quanto bastou para formular e responder à pergunta que se impunha: o que é "giro" e "meu" e não estava ali antes quando Joy chegou? Virei-me e confirmei com os olhos o que o meu subconsciente já sabia. Era o sr. rato, ali, no topo da escadaria a olhar para nós. Estranhei não se ter posto de imediato em fuga, como acontece sempre que alguém estabelece com ele contacto visual. Levantei-me e aproximei-me dele - pela primeira vez estávamos a menos de meio-metro de distância um do outro. Continuou a olhar para mim, sereno, mexendo o focinho como se me estivesse a farejar. Tivesse ali ali comigo um objecto pesado e contundente e fazia dele "minchi" de rato. Perante a sua indiferença abri os braços e vociferei."Então? Não vais fugir?". Virou as costas e desceu o primeiro degrau muito devagar. De seguida voltou-se e olhou para mim, como quem pede para ficar e juntar-se à festa. Permaneci ali até ter a certeza que ele ia embora, e já agora para ver por onde saía. Foi descendo vagarosamente, degrau a degrau, demorando-se para cheirar cada um deles, e desisti. Fosse por onde fosse que ela saía, encontrava um jeito de entrar por outro buraco. Voltei às minhas convidadas, e Joy disse-me que "tinha um rato engraçado". Joan divertia-se com o meu ar apreensivo e tranquilizava-me "é apenas um rato...". Engraçada esta simpatia dos filipinos com os ratos, que para nós são considerados uma praga. Talvez sendo aquele país composto maioritariamente de vegetação, com campo a perder de vista, olham para o rato da mesma forma que olhamos para um esquilo. Pelo menos não subiram nas cadeiras a dar gritinhos histéricos enquanto seguravam as bordas das calças quando viram o sr. rato. Para entrar em pânico já estou cá eu.

IV

Deixaram-me por volta das sete, desejei-lhes boa viagem, e que tenham juizinho. Era tarde para voltar a dormir e cedo para ir trabalhar, por isso resolvi tomar um pequeno-almoço demorado, um duche e escrever umas linhas, e ia pensando no meu encontro com o sr. rato, do nosso "tête-a-tête". Foi a primeira vez que tive a oportunidade de o ver de perto, e olhá-lo do focinho à cauda. Fiquei aliviado por ter confirmado que se trata de um rato comum e não de uma nociva ratazana. É um pouco maior do que eu julgava, mas longe do tamanho daquelas criaturas imundas que habitam os esgotos, que emergem para espalhar epidemias e devorar bebés e galinhas. Tem o pêlo castanho escuro, não demasiado escuro, assemelhando-se à côr do chocolate de leite, e os olhos igualmente castanhos e pequenos, enquanto as ratazanas são normalmente pretas e viscosas, com olhos negros como o breu ou vermelhos da tez do demónio. A cauda, santo Deus, a cauda, essa é que me causa arrepios. É a componente mais infeliz da anatomia do bichinho. No sei o que estava o sr. rato a pensar quando olhava para mim. Talvez tivesse o mesmo propósito de se certificar até que ponto seria eu uma ameaça. Se calhar julgava que o podia devorar, que era um furão ou uma raposa tamanho-família. A sua expressão não indicava medo, a sua postura não era defensiva, e muito menos se preparava para a eventualidade de se precisar defender de alguma investida da minha parte. Era com curiosidade que o sr. rato me contemplava. Era como se apresentasse: "sou eu quem procuras, ó humano". Pelo menos espero que sim, e que não estivesse apenas a observar que parte de mim ia morder primeiro quando eu for dormir. Deixei-lhe o arroz num pratinho junto à caixa, onde todas as noites tenta chegar ao "tesouro". Estou a pensar se devo depois passar à segunda parte do plano e envenená-lo. Será mesmo necessário? Passaram-se quase 48 horas desde o nosso encontro, e o sr. rato não apareceu mais, e o arroz permanence intacto. Começo a pensar que se veio despedir de mim nesse dia. Era o ideal, pelo menos para mim. Mas duvido e faço pouco. Suspeito que muito em breve vou ter mais um encontro com o sr. rato.

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