Como os leitores estão cansados de saber, sou agnóstico, e simpatizo com as religiões com a mesma facilidade que as critico. Para mim são todas a mesma coisa. Tenho os meus pais a agradecer pelo facto de não ser sequer baptizado, o que vale por dizer que ao contrário de muitos outros agnósticos e ateus de arenque, nunca levei com a água da pia baptismal na tola. Fosse a irreligiosidade uma carreira militar, e eu era marechal do estado-maior, ou qualquer coisa desse tipo.
A minha avó paterna, com quem passei alguns dos anos da minha infância, era uma católica devota, a quem não agradava a decisão do meu pai de me ter deixado de fora do clube dos baptizados, cuja maioria dos membros adere involuntariamente. Foi pela minha avó que ouvi falar pela primeira vez de Deus, a tal divindade que assume diversas formas, conforme a denominação religiosa que O defina, mas tem algo que é comum a todas: é Todo Poderoso. Quando eu me portava mal, a minha avó dizia que “Deus me ia castigar”, e apesar de isto não me intimidar, era suficiente para me pôr em sentido. O que me era deixado saber sobre Deus era o suficiente para perceber que um castigo Seu não era a mesma coisa que as reguadas da professora da primária.
Quando mais tarde tomei contacto com a Bíblia pela primeira vez, fiquei esclarecido sobre o que um castigo de Deus pode implicar. Sodoma e Gomorra? As pragas do Egipto? O dilúvio? E já agora porque não Adão e Eva, recuando até ao ponto onde tudo começou a correr para o torto? Mas como eu era um rapazinho bem comportado, nunca me passou pela cabeça que Deus me desse a provar da Sua ira divina. Seria um desperdício de munições. Na pior das hipóteses dava-me sarampo. Ah mas esperem lá, pensando melhor, se calhar até deu. Depois disso terei feito mil e uma coisas que Deus reprovaria com toda a certeza. Nunca matei, roubei ou fiz para mim imagens de escultura com semelhança naquilo que há acima ou abaixo dos céus, como ditam os mandamentos, mas dos sete pecados mortais tenho já a caderneta cheia, e até alguns cromos para a troca. Se Deus castiga, como dizia a minha avózinha, então anda muito distraído.
Acreditar em Deus e cumprir as regras que essa crença implica afigura-se uma tarefa complicada. Não deve haver um único crente que não tenha pecado, pois obedecer às directivas estipuladas pelo criador é mais difícil do que dançar o tango com um daqueles cactos gigantes do deserto mexicano. As religiões, nomeadamente a católica, resolveram o problema com uma emenda à constituição elaborada em nome de Deus: “somos todos pecadores”. Não importa que se faça o possível e o impossível para não pecar; nunca ter mentido, ser bonzinho com todos os seres vivos, desde os elefantes às amoebas, nunca ter matado uma mosca ou tomado um antibiótico, pois os vírus também são criaturas de Deus, coitadinhos, pois todos somos manchados com essa nódoa que é pecado logo que nascemos. Já viram de onde saímos? E de como lá fomos parar antes disso? Caso encerrado: sois pecadores, mesmo que não tenhais a culpa disso.
Para que o pecado não nos leve a arder no poço dos infernos para toda a eternidade (o que parece um período de tempo desajustado para apenas 70 ou 80 anos de vida) a igreja criou a modalidade da confissão. Isto consiste em “confessar os pecados” num local chamado “confessionário”, situado no interior de uma igreja, perante um profissional, neste caso um padre, e assim obter “absolvição”. Há quem compare um padre que escuta a confissão de um pecador a um psicólogo, mas eu prefiro compará-lo a um médico que passa um atestado quando faltamos ao trabalho por motivo de doença, O crente peca, e antes que Deus lhe marque uma falta injustificada, vai ao consultório do padre – o confessionário – obter uma justificação para a falha. Os pecados, e isto sei apenas através dos livros, do cinema e das anedotas, podem ser expiados através da oração. Ai espreitaste pela janela do balneário feminino no ginásio? Dez avé-marias e dez pais-nossos. Bateste na esposa para provar que usas as calças lá em casa? Fizeste bem, meu filho. Andas envolvido com a tua vizinha ninfomaníaca? Onde é que moras e qual é o telefone dela?
Sou um leigo nesta matéria, mas julgo que a confissão já não é o que era. As pessoas estão mais afastadas desses mistérios, e na hora de contar as sacanices que têm cometido confiam mais no taberneiro do que no padre. Não acredito que um banqueiro que tenha desviado uma soma considerável de depósitos dos seus clientes para um paraíso fiscal nas Caraíbas vá a correr confessar isto a um padre, ou que um assassino que tenha executado o crime perfeito revele esta proeza no confessionário, só para ficar em paz com Deus, que é “o único que sabe”. Seria muita ingenuidade. Um amigo meu que foi catequista até à adolescência contava-me que uma das actividades domingueiras era a confissão. Perguntei-lhe o que confessavam as crianças, e no caso de não terem um pecado para confessar, o que diziam ao padre? Ele respondeu-me “qualquer coisa, um mau pensamento por exemplo”. O quê? Até os pensamentos se confessam? Será que se peca também por telepatia?
É reconfortante viver num mundo onde posso escrever estas linhas sem que Deus me fulmine com um raio, ou sem que a inquisição entre pela minha porta e me arraste até à pira incendiária onde me pudesse aliviar do meu sofrimento. Ia morrer uma morte horrível, claro, mas pelo menos ia para o Céu. Mesmo que um dia seja acometido de um acesso de fé, vítima de alguma dessas epidemias que por vezes aparecem, fico mais sossegado sabendo que posso pecar, e depois é só ir até ao confessionário acertar as contas com o divino, como quem vai a um cartório autenticar um documento:
– “Pequei meu pai, carimbe-me aí esta confissão”
– “Aí está, são cinco avé-marias e dois pais-nossos”
– “Tome lá, e pode ficar com o troco”
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