A nova lei da mediação imobiliária que entrou em vigor no dia 1 deixou preocupados alguns residentes, que temem que alguma da informação necessária ao cumprimento das formalidades de obtenção de uma licença para celebrar contraltos de compra e venda de imóveis comprometa a sua privacidade. Este é apenas mais um episódio que demonstra bem a importância que a cultura chinesa dá à privacidade, ao sigilo, ao segredo. Afinal os chineses são por natureza um povo de negociantes, e como todos sabem, “o segredo é a alma do negócio”. Os chineses adoram manter reserve quanto ao número de propriedades que possuem, o montante das contas bancárias ou o valor de outros bens materiais. A forma de secretismo aplicada é mais ou menos a mesma utilizada pelo homem de negócios que reparte o tempo com a família e sua concubina, fazendo o que pode para que a mulher legítima não fique a saber da existência da amante. Mesmo que não consiga enganar a esposa, por vezes eles finge-se despercebida, tudo depende dos valores envolvidos. No fundo é um pouco como os negócios.
Quem convive de perto ou a paredes meias com a comunidade chinesa apercebe-se de uma curiosidade que desafia os mais elementares princípios da matemática e da lógica: como é possível a alguns indivíduos que toda a vida declararam rendimentos na ordem das sete ou oito mil patacas mensais, com uma mulher doméstica e dois ou três filhos para sustentar conseguem ser proprietários de várias moradias e ter contas bancadas recheadas? Bem, terá sido certamente com muito esforço, através de um rigoroso plano de poupança aliado a investimentos sensatos. Não foi a jantar fora todas as noites ou a comprar roupa de marca que conseguiram amealhar durante anos um pé-de-meia que lhes permita encarar o futuro sem preocupações de maior. Mas em quê? O que fizeram para transformar tostões em milhões? Qual é o segredo? Aiiii…não interessa loh. Quanto menos se souber melhor. E o que têm vocês a ver com isso?
Um pouco como quem não quer a coisa, esta forma quase religiosa de proteger os interesses particulares materializou-se em lei, e foi criado o Gabinete para a Protecção dos Dados Pessoais, que não tendo autoridade para meter ninguém na cadeia, emite pareceres e faz recomendações sobre a forma como devem ser tratada a informação pessoal do sujeito jurídico individual ou colectivo (não tenho bem a certeza do que estou a dizer, pois não sou jurista, portanto estejam à vontade para me puxar as orelhas se estou a dizer algum disparate), penso que é mais ou menos isso. Quem já foi a uma sessão de esclarecimentos sobre o tratamento de dados pessoais e as competências do gabinete, levadas a caba por elementos do mesmo, fica um pouco confuso com o conceito de “dado pessoal”. Então como deve agir um trabalhador que trabalha atrás de um balcão de informações? Como sabe se está a violar a lei? E se agir de boa fé mas a sua conduta for interpretada como dolosa e passível de procedimento disciplinar mediante a queixa de um cidadão lesado? Deve consultar um superior cada vez que precisar de fornecer uma informação que possa ser tida como privada ou sensível? Ou mais vale a pena ficar calado?
As orientações não são muito claras. Os próprios responsáveis deste GPPDP não providenciam uma lista conclusive do tipo de informação que pode ou não ser divulgada. Numa reunião a que assisti, um dos seus altos quadros (desconfio que o próprio director, um tipo ainda jovem, mas não tenho a certeza) destacou a importância do equilíbrio. “É preciso encontrar um equilíbrio”, foram as suas palavras. Penso que com isto queria dizer que é necessário cumprir com as tarefas designadas, mas ao mesmo tempo acautelar a privacidade dos cidadãos, cuidando que não se divulgue informação necessária a seu respeito, ou que possa compremeter a sua segurança e a dos seus familiares. Isto assim até parece fácil, mas para a maioria das pessoas que lidam diariamente com dados pessoais ao mesmo tempo que executam outras funções, isto pode querer dizer muita coisa. Quando se fala em “encontrar o equilíbrio”, pode ser entendido como divulgar apenas os primeiros quatro dígitos do BIR, ou fornecer a morada incompleta, com o nome da rua e até o nome do edifício, mas sem indicar andar e o bloco. Pode ser isso, quem nos diz o contrário.
De qualquer forma, esta é uma legislação protecionista que agrada ao cidadão médio de Macau, mesmo que entre em choque com princípios que todos partilhamos de uma forma ou outra. Se perguntarmos a um residente de Macau com idade entre os 30-50 anos com nível médio de formação se concorda com combate à corrupção, ele diz que concorda. Se lhe perguntamos se é a favor de mais transparência e rigor no combate a crimes como o branqueamento de capitais, ele é capaz de responder que sim senhor, metam os malandros todos na cadeia. Agora se isto incluír investigá-lo a si e à sua família, alto lá, pára o baile? Mas porquê? Não fizemos nada de mal. Eu até não me importava de divulgar os nossos dados pessoais, contas bancárias e tudo mais, mas a minha mulher/mãe/irmã matava-me. Prendam os outros e deixem-nos em paz, que somos gente honesta. O mais interessante é que apesar da concordância do cidadão médio perante esta resguarda da privacidade, quem mais fica a ganhar com esta lei são uns certos senhores que nem sabem quanto têm, transferem avultadas quantias em numerário para o exterior, “pelo sim, pelo não”, e normalmente em paraísos fiscais onde as contas estão registadas em nome de companhias “offshores”, e não declaram o património com medo dos invejosos. Houve quem tivesse afirmado que divulgar a fortuna pessoal poderia levar o empresário a ser raptado. Esses malditos invejosos.
A civilização chinesa, a actual e a antiga, tem uma história de luta, repleta de sofrimento e de toda a espécie de privações, sujeitos aos desvarios de loucos com delírios de poder que para atingir não olhavam a meios, mesmo que isso significasse massacrar o seu próprio povo. Mas se há algo que sempre os distingiu foi o jeito para o negócio, para o comércio, para as trocas comerciais. Gosto de os comparar com o povo judeu, igualmente orientado para o comércio e para o lucro, e que em comum tem também o facto de ter sido martirizado em várias estâncias da existência da espécie humana. Chineses e judeus têm em comum o melhor e o pior, e nesse particular há algo em que são irredutíveis: são uns tipos porreiros até ao momento em que lhes vão ao bolso. E metem o nariz na sua vida e nos seus negócios. Protecção dos dados pessoais? Parece bem. Especialmente se isso significa que os deixam em paz.
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