sábado, 27 de julho de 2013

Crime, dizem eles


Como conclusão do nosso programa de hoje, deixo-vos com o artigo de quinta-feira do Hoje Macau. Continuação de um bom fim-de-semana, apesar dos aguaceiros marotos.

Andando a pé por Macau encontramos cartazes publicitários dos vários serviços públicos, alguns deles verdadeiras pérolas, merecedores de um olhar mais atento. Um exemplo disso é um panfleto do Governo de Macau apelando à participação nas eleições do próximo dia 15 de Setembro, um tal “Dia de Eleição” (sic), onde é importante cumprir o dever cívico de modo a “votar nos nossos representantes”. Votar nestes é um pouco como chover no molhado, uma vez que já são “nossos representantes”. Ficaria melhor “eleger os nossos representantes”, mas se calhar estou a ser demasiado preciosista, pois percebe-se na mesma. Mais agressiva é a mensagem do Gabinete de Combate à Droga do Governo de Macau, com um poster onde se lê “Não pense que consegue escapar se cometer crimes de droga”, lembrando ainda que “Todos os postos fronteiriços/Ninguém escapa às malhas da justiça”. Deveras intimidador, e quem avisa, amigo é. Mas apesar da imagem tentacular e implacável das autoridades no combate ao tráfico e consumo de substâncias ilícitas que se tenta passar, a eficácia real é aquilo que se sabe. Muitos são os que vão entrando pelos buracos da malha, e dizer que “ninguém escapa” vai um bem além do exagero.

Mas falando de vícios, além da droga temos ainda o jogo compulsivo. Grossa comparação, pensarão alguns, mas as semelhanças são tão evidentes que apenas por obra e graça do politicamente correcto não saltam à vista de todos e convidam a um debate sério sobre o assunto. As drogas ditas duras provocam no seu consumidor dependência física, que obriga a que as consuma assiduamente, escravizando-o e tornando-o improdutivo, atirando-o para a marginalidade e obrigando-o a roubar para alimentar o vício. O jogador compulsivo recorre ao mesmo tipo de expedientes, e mesmo que esta dependência não se manifeste na forma de uma dolorosa ressaca, o jogador é muitas vezes levado a repetir a prática quase inconscientemente, muitas vezes com a mesma frequência com que um heroinómano se injecta. Ambos têm a consciência que as suas acções prejudicam a si e aos seus, e que estão afundados numa lama imunda de que não é fácil sair. A grande diferença é na despesa; enquanto que a um toxicodependente não é humanamente possível ultrapassar uma despesa fixa, um jogador não conhece limites. Não há droga conhecida que leve o seu infeliz dependente a gastar 50 mil patacas numa hora, que é muitas vezes o valor de uma simples aposta numa mesa de jogo. Os toxicodependentes causam o sofrimento de familiares e amigos, e a censura da sociedade. Os jogadores compulsivos também. Qual é a diferença, realmente?

O mundo da droga está populado por indivíduos sem escrúpulos que obtêm lucro com a miséria alheia. O jogo também. De um lado temos os traficantes, os “mensageiros da morte”. Do outro temos os agiotas, frios e calculistas a quem pouco importa que as vidas e as famílias que destroem. A droga provoca danos irreparáveis para a saúde, um facto. Ficar horas a fio fechado num casino, tantas vezes exposto ao fumo, inebriado pelo néon pelo tilintar das máquinas, alienado do tempo e do espaço, não é propriamente o mesmo que um passeio nos verdejantes trilhos de Coloane. A droga é um crime, a sua venda, posse e consumo são punidos com penas de prisão. O jogo não só não é um crime, como nem chega a ser ilegal, e é visto como a trave-mestra da economia. É promovido, encorajado, e está ao acesso de qualquer cidadão maior de 21 anos que não exerça cargos públicos ou não esteja interditado. Mesmo para estes últimos estar impedido de frequentar um antro de jogo é uma opção muito mais atraente do que uma temporada atrás das grades, como acontece com os pobres diabos que têm o azar de cair “nas malhas da justiça” que servem o combate à droga.

Mas isto é Macau, meus amigos. A droga mata, destrói e corrompe a juventude. O jogo leva a economia ao colo, paga as contas, engorda o erário público e cria milhares de postos de trabalho. Quando as autoridades interceptam um traficante e o levam ao Ministério Público cumprem o seu dever, da mesma forma que um “croupier” assiste a um apostador perder tudo o que tem e ainda contrair dívidas que provavelmente nunca vai conseguir pagar. Qual destes profissionais dorme melhor à noite, ou tem a disposição de partilhar com a familiares e amigos os seus méritos profissionais? O combate à dependência de estupefacientes é feito por profissionais esforçados e competentes, conta com a ajuda de voluntários e privados que participam de boa vontade em actividades de sensibilização e consciencialização dos para as vantagens de uma vida saudável, sem drogas. O jogo compulsivo é abordado mais timidamente; existe uma “hotline”, dois ou três carolas que tratam do problema, e ocasionalmente é tratado na imprensa com pouco mais que uma nota de rodapé. Lá existir existe, mas é pouco.

Existe uma confusão que impede que se encontre a fronteira entre o mal e o crime, entre o imoral e o ilegal, entre a mera censura e o rigoroso castigo. O homicídio, por exemplo, pode custar uma vida humana, a da vítima, e a liberdade ao seu autor. A moldura penal do homicídio depende de factores diversos como a premeditação, o método utilizado e a cooperação com as autoridades, mas a privação da liberdade é um desfecho inevitável. No caso da corrupção, que praticado nas altas esferas e círculos de influência pode significar a ruína de empresas, levar à pobreza de centenas de famílias e provocar o desinteresse da parte de investidores por falta de confiança no sistema, é ainda vista de uma forma muito branda, muito “na desportiva”. Em Macau isto é tão evidente que nem é necessário levantar o tapete para encontrar a sujidade, e com a excepção de um certo ex-secretário e os seus “amigalhaços” arrastados pelo “tsunami” que provocou, impunidade é a palavra de ordem. Homicídio: crime de sangue, muito mau. Corrupção: crime de colarinho branco, portanto… crime? Calma lá, essa é uma palavra forte. Um palavrão. Haja contenção, que não se trata de morte de homem… pelo menos de modo flagrante e directo, com tiros e facadas, crianças a chorar baba e ranho e vizinhos a ligar para a polícia. O que é um crime afinal? Não nos compete definir o que não são contas do nosso rosário. Os senhores que apanham os bandidos é que sabem.

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