Artigo da
edição de quinta-feira do Hoje Macau. Continuação de um excelente fim-de-semana.
Ainda parece que foi ontem que recebíamos em festa a chegada do ano 2000, com toda a simbologia do seu número bem redondo, e um ano depois virava-se a primeira página de um novo livro da História, que todos queremos que tenha um final feliz. Diziam os mais optimistas que saíamos do século das ideologias e iniciávamos o século das pessoas. Ninguém desejaria certamente que nos cem anos que tiveram a estreia no primeiro dia de 2001 se repetissem os mesmos erros do século XX, um dos mais sangrentos desde que há registo da nossa curta presença neste velhinho universo, cheio de equívocos terríveis, que no fim deixaram a própria espécie dotada da capacidade para se auto-extinguir. Naqueles dias que nos correm menos bem, chegamos a pensar se não seria melhor assim, assistir ao fim dos dias ao vivo e a cores, de preferência em 3D. Perante a certeza da morte, o nosso egoísmo inato leva-nos a estar nas tintas para o futuro do resto da humanidade. O que importa se o mundo acaba no dia seguinte àquele em que soltamos o último estertor? Problema dos vivos, dos que ficam. Que se desenrasquem. O nosso poeta-mor, Luís Vaz, deixou como últimas palavras “Morro feliz porque morro com a Pátria”. Era um lírico, coitado, mas levou consigo a Pátria, mesmo que esta depois tenha renascido, fazendo valer o seu carácter de abstracto que faltou a Camões, que morto ficou.
Perante a inegável simbologia da chegada de um novo milénio, uma nova era, era porreiro que todos dessemos as mãos e fizéssemos um esforço para escrever a nova História, uma que não envergonhasse as gerações vindouras quando a aprendessem dos livros. Num futuro utópico, a disciplina de História seria abolida dos currículos, uma vez que durante os séculos seguintes à nova ordem que emergiu das cinzas dos milénios anteriores, este em que agora vivemos seria resumido com um refrescante “nada a registar”. Bom sinal, pois fazendo fé na velha máxima, “boa notícia se não há notícias”. No tal século dos homens que daria lugar ao das ideologias que não deixa saudades, teríamos um mundo mais justo, mais solidário, igualitário e com o homem a contribuir para o bem do homem, indiferente às diferenças de natureza étnica, religiosa ou política. Um mundo em que a tecnologia estaria aos serviço de todos e nunca usada na tentativa de intimidar, aterrorizar e agredir. Seria uma busca incessante pela solução para os problemas, na perspectiva de alcançar o sonho da imortalidade, ou pelo menos algo que nos aproxime mais dos Deuses.
Infelizmente não é assim, e o novo mundo que tantos ambicionava tarda. Os dentes da realidade mordem mais que nunca, e apesar das diferenças na forma e nos métodos, persiste a dialéctica do opressor e do oprimido, que já o incompreendido Marx teorizou antes que as suas ideias fossem transformadas numa desculpa para o homicídio em massa, e ironicamente, ainda mais opressão. O aumento do fosso entre ricos e pobres, a persistência da miséria, da fome, das pestilências que teimam em se renovar, do “salve-se quem puder”, da idolatria do lucro e do capital que se sobrepõe a qualquer religião, dos que vivem e prezam a vida, e dos que se vão simplesmente existindo, arrastando-se pelo limbo, à espera do fim sem nunca chegar a entender a razão do seu ser. As ideologias que nos esmagaram no passado foram substituídas pelo poder dos oligarcas, pela ditadura dos mercados, pela especulação agressiva e forças invisíveis que puxa uns poucos para maré calma da riqueza e do supérfluo, e empurra muitos para o mar revolto da miséria, cada vez mais tendencialmente hereditária e incurável. Vamos assistindo ao regresso em força do feudalismo, até ao dia em que as massas se atropelarão desarmadas e indefesas junto das muralhas do castelo aguardando os restos atirados pelas elites. A única diferença dos tempos medievais é o cenário, com telemóveis inteligentes, fibra óptica, wi-fi, LCDs, DVDs e “blue-ray” para todos. A mesma tecnologia que nos devia servir, e em vez disso teima em nos alienar.
Algures no meio de todo este cenário pré-apocalíptico, do cancro terminal que vai consumindo o que resta de bom da natureza humana, estamos nós, cidadãos de Macau. Meio milhão de alminhas num universo de sete mil milhões, arrumados num cantinho de um país grande dentro de um mundo enorme. Remetidos à nossa evidente insignificância, vamos deixando a banda passar, e até não temos razão de queixa, tendo em conta os problemas grandes dos países grandes que afectam a gente pequena. O que ficamos sem saber muito bem é que valores vamos passar aos nossos filhos, os que têm pela frente um amanhã incerto e sem perspectivas de poder contar com alguns do mais básicos valores humanistas, como a bondade, a solidariedade ou a tolerância. É tortuoso prepará-los para o futuro ensinando-lhes que compitam sem dó nem piedade, que abdiquem de princípios como a ética, que desconfiem de tudo e de todos, que não hesitem em subir nas costas alheias sempre que se justifique. Vai contra o que nos vai restando da nossa fibra moral transmitir-lhes a ideia que de fazer dinheiro é mais importante que estudar, obter conhecimento ou trabalhar no duro, que o crime até pode compensar, desde que não se seja apanhado, e que muitas vezes os meios justificam os fins. Era bom que os preparássemos para o mundo que nos prometeram quando se derrubaram os muros, caíram regimes apodrecidos e faliam os preconceitos, anunciando o fim dos déspotas e dos tiranos, que afinal estão bem e recomendam-se, mesmo que hoje vistam a capa do pluralismo democrático. Desde a data que ficou combinada para começar de novo já passaram mais de treze anos, e começamos a perder a esperança. Ainda falta muito?
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