Estava a ler na versão brasileira do Yahoo! um artigo dedicado a pratos com nomes “esquisitos”, onde constava a nossa “Roupa Velha”, aquela refeição económica que se faz com os restos de comida que sobraram dos dias anteriores. Os brasileiros têm a sua parte de nomes de pratos que farão qualquer boa boca hesitar, ou pelo menos certificar-se que se trata realmente de algo comestível. Na região da Bahia, por exemplo, a ousadia leva a que se misture a culinária com o sexo, baptizando alguns pratos com nomes de fluidos corporais e afins, sem prejuízo para a fama da gastronomia baiana, reconhecidamente deliciosa. “Sovaco de Cobra”, “Braço de Cigano” ou “Cueca Virada” (na imagem) são nomes passíveis de pelo menos um levantar de sobrancelhas, mas para nós, portugueses, isto não é nenhuma novidade. Temos uma lista de nomes de pratos pitorescos igualmente respeitável.
Começando então pela tal “roupa velha”. A origem deste nome, bem como de todos os outros que não terão saído das cozinhas dos grandes chefes “gourmet”, tem origem popular. Nas lides do campo e noutras tarefas que implicam esforço, suor e trabalho sujo, convém levar uma roupa já usada, que dê para deitar fora caso não tenha resistido à jornada. Depois de uma semana de farta cozinhação, e onde tantas vezes a quantidade excede o apetite dos comensais, sobra quase sempre comida. Como povo que se preze não deita comida fora, porque não acabar com os restos da semana antes de fazer mais despesa? Usa-se a “roupa velha”, que ao contrário de envergonhar o lar, dando uma ideia de austeridade e contenção, é uma maneira de honrar os menos afortunados, não os insultando com o acto de deitar comida fora “porque sobrou”, ficou a mais. Comer “roupa velha” não implica que se aqueçam os restos da semana e se comam no seu estado original mas com uns dias a mais de frigorífico. Com alguma criatividade e uma dose de talent pode ser um pitéu de fazer crescer água na boca. A culinária macaense tem um prato semelhante a que chamou um nome igualmente divertido: “Diabo”, que é um excelente exemplo de como algo tão deprimente como “restos” se pode transformar num repasto régio.
Outro prato que nos induz em engano é o “Bolo Podre”. Não um bolo podre, mas O Bolo Podre. Temos todos a ideia de que nada podre pode ser bom, mas esta receita beirã que leva farinha de tapioca, leite de coco, leite condensado, coco ralado, ovos, canela e açucar é uma delícia. O nome deve-se provavelmente ao seu aspecto escuro e humedecido, que levou a que alguém mais bem-humorado lhe atribuísse esta designação pouco comercial. Fica complicado convidar um estrangeiro a provar uma fatia de Bolo Podre. – “Want some rotten cake with your tea?” – “Rotten? No thanks…” – “It’s not really “rotten”, it’s actually quite sweet” – “I don’t get it”. De facto é complicado convencer um leigo nestas coisas da pastelaria portuguesa. Nem o Bolo Podre é realmente podre, longe disso, nem o Toucinho do Céu é toucinho, e muito menos caíu do Céu. É uma daquelas “cosas nostras” de que nos orgulhamos tanto.
Quando era pequeno escutava os mais velhos falarem de uma tal “água-pé”, que na verdade é um vinho de qualidade inferior, misturado com água. Uma bebida popular em época dos Santos Populares e das festas que se prolongam noite fora, e onde a pinga barata permita que todos bebam sem dar muita despesa à comissão organizadora. Para quem não sabe que se trata simplesmente de vinho tinto “amartelado”, o nome “água-pé” não transmite muita confiança. A hifenização das palavras “água” e “pé” sugere que se trata do conteúdo de uma bacia que lavou as patorras de alguém. Para mim foi ainda mais difícil superar o choque, uma vez que os tios e os seus amigos da sueca que me deram a conhecer esta “água-pé” ostentavam através das sandálias pés calejados e unhacas pretas. Foi um processo de assimilação do nome complicado antes de me juntar à malta que bebia a “água-pé” que tirava dos barris.
Existem certamente muitos outros pratos com nomes bizarros, mas termino esta breve dissertação com o meu favorito: as punhetas de Bacalhau. Novamente recuando até à infância, lembro-me de ouvir falar deste prato, e a forma como os adultos o pronunciavam deixava-me intrigado. Dizer a palavra “punheta”, o calão que designa a auto-gratificação masculina, não me livraria de pelo menos um raspanete, mas “punhetas de bacalhau” dizia-se com um à vontade tal que parecia que acrescentando “bacalhau”, a palavra “punheta” tornava-se completamente inofensiva – ninguém se lembra da onanista “punheta” quando se refere a uma das mil e uma maneiras de cozinhar bacalhau. Ao contrário da expressão popular “o bacalhau quer alho”, cujo valor se reduz à mais pura das brejeirices (o bacalhau não “quer” nada, está morto), estas “punhetas de bacalhau” são um prato a sério. Quer o ardina, a peixeira, o operário, o medico ou o Presidente da República podem dizer “punhetas de bacalhau” sem que alguém o censure, e pode fazê-lo no restaurante, na televisão, no Conselho de Estado ou em frente dos filhos pequenos ou do papagaio. Quanto às punhetas, cada um terá a sua opinião pessoal, mas quando se toca às do bacalhau, são uma delícia.
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