quinta-feira, 6 de março de 2014

Mundo (pe)canino


Todos temos sonhos, desde pequeninos. Chamamos "sonhos" às coisas muito difíceis ou praticamente impossível de realizar, e nada como ser jovem e acreditarmos em nós próprios, que temos todo o tempo do mundo pela frente, e que o mundo, esse, é a casca da noz que somos nós. Pergunta-se a qualquer criança o que quer ser quando for grande e nenhuma vai responder "fiscal das Finanças", ou "delegado de saúde pública" - sem desprimor para essas profissões nobres e honestas. Os rapazes vão dizer que querem ser jogadores de futebol ou pilotos de corridas, as meninas vão dançarinas ou modelos, e ambos poderão dizer cantores, actores, qualquer coisa relacionada com o mundo do espectáculo, do "showbiz", igual aos seus ídolos que vêem na televisão ou nas capas das revistas. Nesse tempo parece tudo muito fácil - "é só querer". Porque não, se para uma criança "querer é poder"? O pior vem depois, quando o tal mundo que nos parecia uma casca de noz assume a forma de um quadrúpede com dentes afiados, e o tempo que era todo nosso começa a urgir, e ouvimos cada vez mais dos outros frases como "estás a perder tempo", ou "você já não tem idade para isso", ou ainda "agora já é tarde". Sim, é um mundo cão, este. E se as crianças têm a graça própria da sua juventude, os adultos são levados a sério. Isso de "ser levado a sério" é o Inferno, meus amigos.

Realizar os nossos sonhos requer, em teoria, três coisas: talento, trabalho e "timing". O primeiro é essencial, pois ninguém pode ambicionar a ser músico sem aprender a tocar um instrumento, o a ler música. O talento está também intimamente ligado ao bom senso; não pode aspirar a jogar basquetebol na NBA, ou ser modelo de uma marca de champôs sendo calvo. O talento sem o trabalho é inútil, é talento deitado fora pela janela. Quem tiver jeito para representar não pode pensar em conseguir um papel num filme ou numa série de TV sem adquirir as habilitações para o efeito, estudar belas-artes, começar pela teatro, enfim, fazer pacientemente o percurso que o leve ao lugar que ambiciona e que se acha no direito de ocupar. O "timing" é tudo. Quem quiser fazer carreira como futebolista, jogar nos clubes de topo mundiais, chegar à selecção, mas aos 25 anos ainda joga no S. Pedro da Afurada, o melhor é pensar em fazer outra coisa qualquer, nem que seja para pagar as contas. Depois aos Domingos pode vestir a camisole do Real Madrid e ir jogar no pelado da rua ao lado com os amigos. Se há uma coisa em comum com estes sonhos e os que temos enquanto estamos a dormir, é que acabamos sempre por acordar. E a vida continua. O mais importante é termos alguém com o bom senso para nos atestar as nossas verdadeiras possibilidades de tornar reais os sonhos. É nosso amigo quem nos acorda a horas, antes de um pesadelo, e não quem nos deixa ficar em coma.

Os sonhos podem ser moldados, maleáveis, adaptados. Há quem com a maturidade encontre uma nova vocação, uma nova paixão. Pode ser que alguém que na infância queria ser astronauta ou "cowboy" descubra uma inclinação para a engenharia de máquinas, ou para a arquitectura de interiores. Há sonhos que não requerem que se seja jovem, e que podem levar a vida toda até que sejam concretizados. Por exemplo: quando eu era puto o meu sonho era ir ao Japão. A "pancada" passou-me aí pelos 17 ou 18 anos, e apesar de estar agora mais perto do que na minha infância, nunca fui ao Japão. Se um dia for, nem que seja daqui a mais 40 anos, quando tiver 80, posso dizer que realizei "um sonho de criança" - o que tecnicamente é verdade. O que não podemos ficar é sentados à espera que as coisas nos caíam na mão, e muito menos abdicar de todo o resto apenas em nome dos sonhos que não se concretizam, ou que tardam em se materializar. Um indivíduo que tira um curso de Direito porque sonha ser advogado, mas não consegue terminar o estágio e entrar na Ordem, não se pode ficar a lamentar enquanto não alcança o seu objectivo. Recusa-se a fazer seja o que for "porque é advogado", e por isso "não sabe fazer mais nada". Assim o seu rendimento é zero, os bancos não lhe dão crédito para comprar um carrinho de linhas, e tornam-se dependentes, ora dos pais, ora da esposa, se não for de alguém com intenções menos humanistas. O importante é manter sempre a pedra a rolar, para não criar musgo. Depois do musgo vêm as ervas-daninhas, e quando damos por nós estamos embrenhados num imenso matagal.

Todos temos empregos, profissões e carreiras que não são exactamente o que ambicionávamos, mas temos contas para pagar, portanto toca a marchar com o resto da charanga. Podemos continuar iludidos ("sou músico por vocação, mas escriturário por necessidade"), ou sonhar acordados ("agora sou bate-chapas, mas nos juvenis do Damaiense foi o melhor o campo num jogo contra o C. Ronaldo"), mas o importante é a liquidez, que nos mantém à tona da indigência e da mendicidade. E no fundo é de dinheiro que se trata; é deprimente chegar à minha idade, e depois de bater em tantos muros deste sinuoso circuito chegar à conclusão que as pessoas não querem enriquecer para ter uma melhor vida - querem sim ter mais dinheiro que os outros para poder mandar neles, para comprá-los e usá-los a seu bel prazer. É por isso que o comunismo não resulta: não tem piada nenhuma sermos "todos iguais". Achamo-nos sempre melhores que os outros, e mesmo os que têm a consciência que são ma anedota como ser humano, profissional e chefe de família acham que existe sempre alguém pior que eles. A única excepção serão os maníacos-depressivos, mas mesmo esses com a terapia adequada são capazes de sair do consultório e ver um badameco qualquer a meter a cabeça num caixote do lixo e depois dizer: "olha para este palhaço...".

O mundo é injusto, sim, e quem disse que tinha que ser justo? Existem por toda a parte chico-espertos, cabotinos, nepotes e malandrins posicionados acima de gente competente, trabalhadora e honesta. Dizem que "aprenderam na escola da vida", mas no fim não aprenderam nada. Confundiram ambição com ganância, qualidade com com desenrascanço, e agressividade com filha-da-putice. O seu mestre foi outro canalha como eles, que lhes ensinou que "é assim que se faz, o que é que queres?". Quando estão por cima são uns sacanas da maior espécie, um perigo para quem se lhes atravessa pela frente. Bajulados por quem quer usufruir das suas boas graças, e se um dia são ultrapassados provam o gosto do seu próprio fel, espesinhados por quem ainda há tempos lhes perguntava "quer um cafezinho, chefinho do coração?". Há outros que passam anos por baixo, na lama, e se um dia são alguém, juntam-se à festa, abrem o seu próprio lamaçal e empurram outros lá para dentro, perpetuando o ciclo da mais reles das sacanices. Esses então é que não aprenderam mesmo nada, nada.

Em Macau temos muitos exemplos desta gentinha, quer na administração, quer na privada. Neste último caso tornou-se mais evidente desde a proliferação dos casinos com a chegada das novas concessionárias, com cargos como "Supervisor", "team leader", "floor manager" e outros estrangeirismos que se traduzem para "falar muito e fazer pouco". São normalmente gente sub-qualificada, que chegaram ao posto ora por antiguidade, ora por terem um BIR e andarem a chatear alguém que depois os pôs ali para ver se se calavam, ora através de outro expediente qualquer. Julgam-se muito importantes, e se tiverem o poder de despedir subordinados ou atribuir promoções, ficam com o rei na barriga. Muitos deles são gente frustrada, indivíduos com complexos de inferioridade, solteironas que ninguém pega e que à noite voltam para o casarão vazio e ficam a planear a tramóia do dia, da semana e do mês seguintes. Julgam-se maiores que o mundo, e que exercem um papel-chave na companhia ou na empresa, e tratam a limpeza do chão de um salão como se fosse engenharia atómica, ou neurocirurgia.

O importante é não cair na armadilha destes pelintras, que cometem injustiças, exercem pressão e chantagem emocional, para que os que são genuinamente felizes voltem ao seu lar tristes. Muitos têm uma família que os ama, cônjuge e filhos que os confortam, amigos verdadeiros a quem podem ligar para desabafar, enfim, uma vida digna desse nome. Trabalham para viver, ao contrário dos broncos que vivem para trabalhar. Melhor que levar os desaforos para casa, ficar deprimido, com reflexos no sono, na convivência social, no lazer, no apetite, quer no sexual, quer no outro, é simplesmente "aturá-los". Não se deve entrar no seu jogo, e podem justificar a pouca vontade de brincar com a idade (tanto se pode alegar ser muito novo ou muito velho), ou com a falta de paciência para palermices dessa natureza. Se estiverem a massacrar-vos com a sua verborreia, e chegar a hora da saída, diga-lhe simplesmente que não esqueça do que vai dizer, até amanhã e chauzinho, e já agora, vá à merda. E bom proveito.

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