terça-feira, 4 de março de 2014

Carnaval? Ouvi falar...


Hoje foi terça-feira de Carnaval, e daqui de Macau, para Macau, pergunto ao estimado leitor: deu por alguma coisa? Eu não. Já sei que os seguidores mais antigos do blogue (se ainda os há...) já estão a pensar que "todos os anos é a mesma coisa", e que "o Leocardo vai outra vez dizer que não gosta do Carnaval" ou que "já sabemos que em Macau não se comemora" e tudo mais. Sim, de facto, e isto é algo que não me canso de referir: 1) não gosto do Carnaval e 2) em Macau não se comemora o Carnaval. Agora, fosse isto um teste de avaliação, e teria que dar a quem respondesse a esta pergunta desta forma metade da pontuação. É que não é bem assim, pois não só não tenho nada contra o Carnaval, como em Macau se comemora, ou pelo menos se comemorou em tempos, e em grande estilo, diga-se em abono da verdade.

O que eu não gosto mesmo é daquela versão diluída, falsificada e corrompida do Carnaval que se pratica em Portugal. Não sei quem no seu perfeito juízo se lembrou de comemorar o Carnaval num país onde não há motivo de espécie nenhuma, quer histórico, quer cultural, quer religioso, para se comemorar o Carnaval. "Porque é folia" - leia-se um convite ao deboche e à marginalidade, e já agora desculpa para uma tolerância de ponto, pois ali qualquer coisa que sirva para não trabalhar, até partir uma perna, cai que nem ginjas. "Porque é tradição" - ai sim? E em que "tradição" se baseam vocês para comemorar o Carnaval. Portanto, se perguntarem a um português porque comemora hoje o Carnaval e ele lhes responder "porque é tradição", e a seguir lhe perguntarem se vai jejuar amanhã, pois é quarta-feira de cinzas, é possível que ele responda: "não, porque não sou praticante". Eu também gostava de ser religioso só para as coisas boas, o problema é que não encontro assim tantas que o justifique.

Depois a comemoração em si. Aquela amostra de Carnaval que ali temos é completamente decalcada do Carnaval do Brasil. Isto parece-me ser uma optima ideia, eu até acho o Carnaval brasileiro o máximo, mas o problema é que enquanto no Brasil em Fevereiro é Verão e está calor, em Portugal chove e faz frio, pois estamos a meio do Inverno. Quem pensa que isto acontece porque o Brasil é um país espectacular, cheio de gente alegre, e por isso Deus lhes manda Sol no Carnaval, deixe-me explicar que tudo se deve apenas a uma factor geo-climático. Sim, eu sei que hoje não houve escola mas calem-se e ouçam. Enquanto no hemisfério norte, onde Portugal, Macau e a maior parte dos países do mundo se situa é Inverno, no Brasil, Austrália e outros países cheios de bichos venenosos que mordem e nos saltam para a cara, é Verão, pois estão situados no hemisfério sul. Ou seja, lá as estações andam ao contrário. Sim, juro, perguntem à vossa professora de Geografia, de preferência antes de lhe furarem os pneus do carro.

Assim sendo, decalcar um Carnaval onde as temperaturas se situam 30 ou mais graus acima das nossas implica que existam desfiles de carros alegóricos com pessoas semi-nuas em cima deles a tiritar de frio. Estas pessoas, que se arriscam a apanhar gripe, estão ali naquela triste figura supostamente representando uma "escola de samba", que não é escola nenhuma, pois além de funcionar apenas durante alguns dias por ano, e por alturas do Carnaval (ou nem isso), não ensina nada - nem samba. Duvido que a maioria dos portugueses saiba identificar samba quando o vê, sem ter à volta todo o aparato carnavalesco. Depois cantam-se sempre, mas sempre, sempre, sempre as mesmas músicas de Carnaval, num fenómeno em tudo semelhante ao Natal. A diferença é que as canções de Natal versam sobre o nascimento do Salvador e trazem consigo mensagens de paz, enquanto que as de Carnaval versam sobre carecas, mulheres chamadas Aurora (!) ou elaboradas considerações sobre o facto de cachaça não ser água. Muito interessante. E já repararam como apesar da longa, ahem, "tradição" carnavalesca que ostentamos, não fomos capazes de produzir uma única canção portuguesa sobre o evento? Em vez disso cantarolamos coisas de que não entendemos o espírito, e tudo com um sotaque idiota - e atenção que não estou a dizer que os brasileiros têm um sotaque idiota. Os portugueses é que parecem idiotas ao tentar imitá-lo.

Depois as "brincadeiras" de Carnaval, que na realidade são bem estúpidas, e muitas vezes envolvem agressões, humilhações, danos à propriedade alheia, e até a acidentes graves provocados pela detonação de explosivos, que ainda por cima são proibidos por lei. Portanto um grupo de jovens foliões, de preferência mascarados ao ponto de ser impossível identificá-los (quem tem cu, tem medo), passa o dia a divertir-se besuntando automóveis particulares e vidros de estabelecimento comerciais com farinha, ovos, vinagre, urina e sabe-se lá o que mais. Deparando com um indivíduo que vem vestido normalmente, ora porque tem mais que fazer (e não se esqueçam, é tolderância e não feriado, e muita gente trabalha) ou simplesmente porque não comemora o Carnaval, e entre um representante dos mascarados e o referido indivíduo dá-se o seguinte diálogo:

- Boa tarde, meu bom senhor. Consentiria, por obséquio, que lhe espalhassemos ovos e farinha pelo cabelo e pela roupa toda, tornando-o assim numa massa de bolo ambulante, uma vez que "é Carnaval e ninguém leva a mal"?
- Ora aí está uma ideia divertida, amigo! Mas acontece que me encontro de serviço hoje, e só regresso a casa de noite, pelo que a perspectiva de ficar o resto do dia todo não se afigura como uma opção que eu consideraria agradável.
- Lamento, cavalheiro. Desconhecia que não gozou da tolerância de ponto. Permitam-me que apresente em meu nome e em nome dos meus colegas as mais sinceras desculpas, e os desejos de um resto de dia produtivo e frutífero.

Esta conversa NUNCA aconteceu. O que acontece é os malandrins encherem o tipo de massa feita ali na hora e humilhá-lo, e se vier com a namorada, pior ainda, e são mesmo capazes de aproveitar para dar umas apalpadelas à pobre moça. Isto, claro, se estiverem em maior número e o indivíduo for fisicamente mediano ou débil. Não os estou a ver a atirar um ovo ao Marco Borges, por exemplo. E quando se diz que "ninguém leva a mal" apenas por ser Carnaval, salvo seja. Muito se fala das praxes académicas, mas disto ninguém diz nada? As tais bombas de Carnaval, que teimosamente chamam de "bombinhas", mas que são explosivos perigosíssimos, capazes de cegar ou mutilar um dedo de uma mão, são de venda ilegal, mas mesmo assim fazem parte da "ementa" das "brincadeiras", e tudo en nome da "tradição". Não entendo que tradição é essa que consiste em largar uma ou mais destas bombas num lugar qualquer, fugir, seconder-se e tapar os ouvidos. Mas isto é suposto ser o Carnaval ou a I Guerra Mundial?

Em Macau temos Carnaval nas instituições de cariz lusitano, mas é mais direcionado às crianças, com o maior destaque na Escola Portuguesa, onde tudo corre dentro da maior das calmas, sem incidents. No seio da nossa comunidade se alguém que bebe um copo ou dois a mais numa festa já é motivo de censura, imaginem o que seria se o filho do senhor doutor levasse um ovo para a escolar com o intuito de o partir na cabeç da filha do senhor engenheiro? Caía logo a Penha e a Guia! Por um lado isto é bom, pois significa que somos gente civilizada, e quem cá chegue e pense que aqui é "o da Joana", mais vale começar a adaptar-se.

A comunidade macaense comemora também o Carnaval, ou já comemorou mais, noutros tempos. Era tudo inserido no contexto da quadra, fazia-se a "carne valer" antes do início da quaresma, na quarto seguinte jejuava-se, tudo dentro dos preceitos religiosos, e acrescentados de um bom gosto fascinante. Como gostava eu de ter assistido a um desses carnaváis, onde Adé dos Santos Ferreira e o seu grupo de pândegos animava o teatro D. Pedro V com as suas récitas em patuá e outras folias. Em vez disso passei anos a aturar um Carnaval fingido, de que me congratulo estar agora a muitas milhas de distância. Podiamos pelo menos attender a factores culturais e geográficos, latinos que somos e inseridos na Europa, clima mediterrânico, e copiar o Carnaval de Veneza por exemplo. Mas isso saía caro, e não servia de desculpa para extravazar a nossa bacoquice crónica. Carnaval, sim, ouvi falar. Vi na televisão. Ao vivo não, nunca. Talvez um dia...

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