sábado, 1 de março de 2014

Me so horny


Um dia destes durante a tertúlia semanal da malta da pesada - adiado desde o dia de S. Valentim, vá-se lá saber porquê - juntou-se a nós uma moça originária do Vietname, e trabalhadora num dos casinos do COTAI. Nós na comunidade portuguesa e restantes que comunicam num idioma ocidental sabemos pouco da comunidade vietnamita. Sabemos que existe, é constituída maioritariamente por empregadas domésticas, e confundem-se com os locais, pois têm mais ou menos a mesma aparência. A certo ponto a menina pergunta-me se já estive no seu país, ao que respondo afirmativamente, não deixando de mencionar que gostei bastante, e é um país de gente muito simpática e hospitaleira. Contudo fiz-lhe ver que os residentes de Macau sabem muito pouco sobre este país, pois a Tailândia continua a merecer a preferência como destino de férias naquela região, e no caso dos estrangeiros quase tudo o que se sabe do Vietname é o que se vê nos filmes Americanos sobre aquela Guerra que acabariam por perder. Ela fez questão de mencionar que estes filmes dão uma visão do país do ponto de vista dos norte-americanos, e portanto "parcial". E precisava de me dizer isto? Qualquer pessoa com dois palmos de testa sabe perfeitamente que os muitos filmes feitos a propósito dessa Guerra inútil são na grande maioria uma enorme fantochada. Tendenciosos, cheio de amargura pelo facto de terem sido obrigados a retirar antes da tomada de Saigão pelas forças do norte, que unificaram o país sob a denominação de "república socialista". Que horror. Digerida a derrota, começaram a aparecer os filmes que descreviam as mais variadas incidências do conflito, quer durante o mesmo, no teatro de operações, quer no rescaldo, abordando as consequências que viria a ter, quer para os Americanos, quer para o próprio Vietname. A temática é diversa, mas nenhum se atreve a fazer das tropas americanas os "maus da fita", pois isso seria considerado, ahem, "anti-patriótico" (quem é que falou em "propaganda comunista, mesmo?). No entanto existema alguns interessantes, nem que seja do ponto de vista cinematográfico, mas muitos, e talvez a maioria deles, são um verdadeiro desastre, com um desrespeito gritante por um povo que foi agredido sem provocação, e glorificando o agressor, chegando ao ponto de desumanizar os primeiros, e acabar por vitimizar os segundos. Vamos falar dos mais conhecidos.


Um dos primeiros grandes filmes sobre o conflito na Indochina foi também um dos mais premiados. "Apocalypse Now", de Francis Ford Coppola, ganhou dois oscares (melhor cinematografia e melhor som), três Globos de Ouro, dois BAFTA e a Palma de Ouro em Cannes, e mantém-se ainda hoje um filme actual, resistindo à passagem das gerações. A solidez do argumento, que fala de um episódio da guerra e não comete a arrogância de a analisar no seu tudo ou identificar o herói e o vilão, a par das interpretações de Martin Sheen, Robert Duvall e Marlon Brando justificam os elogios da crítica. Brando faz o papel de Cronel Kurtz, um oficial do exército que deserta, enlouquece e passa para o lado do inimigo, e o filme fala da missão em encontrá-lo e detê-lo, sempre com o cenário exasperante e claustrofóbico da guerra, comum em qualquer das guerras, independentemente dos seus intérpretes, como pano de fundo. De se lhe tirar o chapéu, sr. Coppola.


Um ano antes Michael Cimino realizou "The Deer Hunter", que conta a história de três amigos de Pittsburgh que gostam de caçar veados, e portanto acham que não é má ideia ir até ao Vietname e abater bípedes racionais da espécie asiática. O filme sofre de um começo algo longo, com uma cena de casamento que se extende durante mais de meia-hora, mas ganhou cinco óscares, incluíndo o de melhor filme, realizador, argumento e melhor actor secundário, Christopher Walken, que contracena também com Robert de Niro, John Savage e Meryl Streep. A cena mais famosa do filme é provavelmente esta que vemos em cima. Capturados pelos viet cong, os amigos são obrigados a entrar num jogo de roleta russa. Quem pensa em "The Deer Hunter" pensa no soldado viet cong a berrar gam sun mao! (pega nisto, depressa!). A cena foi filmada num cenário realista, junto do Rio Kwai, numa cabana de bambu com ratos e mosquitos a sério.


Oliver Stone é um dos mais prolíficos realizadores americanos de filmes da treta. Já sei o que estão a pensar, estou a ser do contra, tenho a mania que sou diferente, faço isto só para vos irritar, etc.,etc. Mas pensem lá bem: "Doors", por exemplo, é ofensivo para os fãs do grupo e um insulto ao legado de Jim Morrison; "Alexander", e aqui quase todos concordarão, foi uma bosta; "U Turn", conhecem? Aquele filme com Sean Penn e Jennifer Lopez? Foi ele que realizou; da sua trilogia dos presidentes norte-americanos, só "JFK" se aproveita, e mesmo assim acaba por ser demasiado longo; "Natural Born Killers" e "Midnight Express" só são bons porque foram escritos por outros; de "Comandante" e "World Trade Center" é melhor nem falar e mesmo "Wall Street", que é excelente, teve uma sequel desnecessária. Melhor filme? "Salvador", talvez. Da sua trilogia da Guerra do Vietname, falemos apenas de "Platoon", por enquanto. Sim, o filme valeu-lhe o Oscar para o melhor filme. Sim, o filme valeu-lhe o Oscar para melhor realizador. E sim, facturou 138 milhões de dólares com um orçamento de apenas seis milhões. E depois? A Academia é Deus? Este filme está completamente errado exactamente pelas razões que apresentei no primeiro parágrafo. Eu estava no 7º ano quando "Platoon" saiu, e o título em português ficou "Os Bravos do Pelotão", portanto pensei no início que se tratava de um filme sobre o Tour de França em bicicleta. Depois um amigo meu foi ver, disse que era "fantástico", que contava "a verdade" e que eu devia ir ver. Fui assistir numa terça-feira à tarde, à revelia do meu pai, que não queria que eu visse filmes de guerra. Agora sei porquê: não era por ter receio que ficasse impressionado. Era para me proteger e um acesso de tédio.


O segundo filme da trilogia de Oliver Stone sobre a guerra do Vietname foi "Born on the 4th of July", com Tom Cruise. Este é um de muitos filmes que retrata os efeitos do conflito nos seus sobreviventes, alguns que voltaram fisicamente debilitados, deficientes, ou sofrendo de stress pós-traumático. Outros abordam ainda a desilusão por não terem sido recebido como heróis (e porquê, se ainda por cima perderam?), o reencontro com as famílias, com as namoradas, com as esposas, blá, blá, blá, coitadinhos - 58 mil mortos e 300 mil soldados feridos do lado das tropas norte-americanas, contra mais de um milhão de mortos, entre estes mais de 60 mil civis, e mais de meio milhão de feridos do lado dos vietnamitas. Vamos todos chorar de pena quando voltarmos a ver filmes como "Jacknife", "Coming Home", "Jacob's Ladder", "Distant Thunder" ou "Gardens of Stone". Buh-uh-uh. Vamos sentir pena sobre os paladinos da paz que ninguém encomendou. Ah sim, e já agora para empatar a contenda, que tal deixar os viet cong queimar as matas americanas com napalm, deixar minas anti-pessoais espalhadas por toda a parte no território dos Estados Unidos, e contaminar-lhes os recursos naturais com Agente Laranja, para que daqui a 40 anos ainda nasçam criancinhas "Yankees" cegas, deformadas, sem braços e sem pernas e retardadas? Bem, no último caso nem foi preciso o Agente Laranja...


Terceira posta de pescada de Stone sobre o conflito, "Heaven & Earth", aborda um tema muito querido dos americanos: as "mui-muis" que deixam nos palcos de guerra, por onde passam por este mundo fora. Portanto aqui o esquema é muito simples: os nativos, nestes caso os homens vietnamitas, são baixinhos, cabeçudos e com dentes de abre-latas, e além de não saberem tratar uma mulher na cama, têm uma piroca pequenota. Por isso é o sonho de qualquer moça vietnamita, pouco maior que uma jarra, que venha um "cowboy" que dê uma boa montadela ao mesmo tempo que lhe carimba o rabo com uns valentes açoites. Qualquer mulher asiática, campesina, recatada e com uma educação conservadora sonha com isto. Por vezes até parece que não querem, ou que não estão a gostar, mas na realidade aquilo é uma posição sexual nova, conhecida por "Base Naval Americana em Okinawa" - ou BNAO. O que elas gostam de um bom BNAO. Filmes sobre violações temos alguns, como "Casualties of War", de Brian de Palma e com Sean Penn e Michael J. Fox nos papéis principais, ou "The Visiteurs", de Elia Kazan, ainda realizado no decurso da guerra, em 1972. Ao que parece ambos os filmes são inspirados em casos reais, de processos movidos contra soldados norte-americanos, que precisaram de responder por crimes marciais. Pode ser quem ache isso interessante, mas pessoalmente tenho pena das vítimas e das suas famílias; é que se a minha mulher, filha ou irmão fossem brutalmente violadas, a última coisa que eu queria é que fizessem um filme sobre o assunto.


Agora o somatório de todos os males. Uma camponesa vietnamita é arrebatada por um pujante "yankee" no momento em que se dobrava para colher arroz. Depois de uma série de BNAOs, que para a moça era "amor fervente e apaixonado" e para o GI era apenas pitame estrangeiro, a rapariga engravida, e tem uma filha - tem que ser uma menina e não um rapaz, para tornar o enredo ainda mais humilhante para a condição feminina. Um dia a menina parte para os Estados Unidos onde lhe espera "uma vida melhor". Melhor que o quê não se sabe muito bem, uma vez que a única vida que conhecia era aquela do meio onde nasceu, mas pronto, no Vietname não havia McDonald's (agora há, converteram-se). A mãe despede-se em prantos, vendo o resultado do contacto do esperma invasor com o seu óvulo partir para um mundo de batatas fritas e "tota-tolas", enquanto ela vai ficar ali, no meio daquele inferno onde todos os vietnamitas vivem hoje, coitados, que se suicidam todos em massa a um ritmo diário. Não é um filme, mas é um musical, e chama-se "Miss Saigon". É inspirado na opera "Madame Butterfly", de Giacomo Puccini, que também conta a história de uma asiática que é BNAOzada por trás e à bruta e mal paga. Devia ser considerado um atentado aos direitos humanos.


Este é um daqueles que até me dá vontade de vomitar. Parece que "Good Morning Vietnam" é uma comédia, mas ainda estou para perceber qual é a parte em que é suposto rir. É naquela barraria "Gooooooood Morning Vietnaaaaaam!"? Ah ah ah...muito giro. Ou será durante aquelas piadas que só os americanos que se recordam da actualidade em 1965 entendem? Ah, bem. Robin Williams tinha ganho o meu respeito um ano antes em "Dead Poet's Society", ou "Clube dos Poetas Mortos", mas aqui perde-o completamente, até hoje. A forma como interpreta o seu papel, com fantasmas a subirem-lhe pelas calças acima e à beira de um ataque de epilepsia. E imaginem que isto até deu direito à nomeação para um Oscar, e eu sei porquê: a histeria de Robin Williams dava para fazer três filmes - ""O Exorcista", "Footloose", e este - bastava mudar as falas. "Good Morning Vietnam" é inspirado no DJ Adrian Cronauer, que entreteve as tropas americanas em directo de Saigão com uma rotina radiofónica pouco ortodoxa. Só pode mesmo ter sido remotamente inspirado, uma vez que se fizessem um filme sobre mim onde ficasse implícito que o meu comportamento era aquele, metia os cornos daqueles gajos todos em tribunal. Mais uma vez os viet cong são retratados como uns gajos frios, cínicos, uns "caretas" que não gostam de "rock'n'roll" nem de sexo casual, e que tudo o que querem, e vejam só isto, é expulsar do seu país um invasor. Ele há com cada um...


É claro que guardei o melhor para o fim. Só o mestre Stanley Kubrick para dar à guerra do Vietname um colorido especial. Os primeiros 40 minutos de "Full Metal Jacket" são apenas os mais alucinantes de todos os filmes sobre o tema, com R. Lee Earney ligado à corrente no papel de um sargento dos "marines," que divide o protagonismo com Vincent D'Onofrio, na pele de um recruta trapalhão. Metade das falas de Earney - que são brilhantes - foram improvisadas pelo próprio. Depois disso mudamos de cenário e vamos até Saigão, onde uma prostituta interpela dois soldados americanos, num diálogo que entra para os anais da cultura "pop". "Me so horny, me love you too much", ou "I love you long time", e ainda "me sucky sucky" são expressões que fazem parte do imaginário de uma geração inteira. A actriz que lança o estereótipo da mulher vietnamita em tempo de guerra é Papillon Soo Soo, filha de pai chinês e mãe francesa (ou o contrário, não importa), e "Me So Horny" foi ainda o título de uma canção dos 2 Live Crew. You pah-teh?

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