segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Saídas e entradas


Aproxima-se o fim de mais um ano civil, e é tempo de celebrar a entrada de um novo ano, mais 365 novas oportunidades para mostrar o que valemos, para mudar de vida, se necessário, ou para realizar projectos adiados. Um novo ano, apesar de ser apenas uma datagem que nos é imposta em nome da ordem social, é sempre uma perspectiva excitante. A partir da meia-noite do dia 31, tudo o que fica para trás pertence ao ano que acaba. O ano de 2012 fica arrumado na prateleira da História, e começamos a escrever o ano de 2013. O que todos esperam de um modo geral é que seja um ano melhor do que o anterior, pelo menos.

Fico sempre um pouco deprimido quando vejo os mais pessimistas a desejar que 2013 seja melhor que 2012, porque “pior é impossível”. É claro que os anos correm sempre melhor a uns que a outros. Para alguns 2012 ficará na memória pelas melhores ou pelas piores razões, para outros foi um ano “como outro qualquer”, mas é ingenuidade acreditar que um simples virar de página no calendário possa ter uma interferência decisiva nas nossas vidas. Não sou adepto da astrologia, da numerologia ou das restantes pseudo-ciências onde pontifica toda a espécie de charlatões, mas digam o que disserem, 2013 será aquilo que fizermos dele. Apenas isso.

Cada ano que passa é mais um ano que envelhecemos. Os jovens ainda recebem o novo ano com uma antecipação especial, e sei isto porque também fui jovem, e recordo-me com carinho especial o entusiasmo das doze badaladas que anunciavam a chegada do Ano Novo. Encanta-me aquela imagem do Ano Velho, representado por um idoso enrugado e decadente, a dar lugar ao Ano Novo, personalizado por um bebé de fralda, rechonchudinho e cheio de vida. É uma figura bem conseguida, que ilustra fielmente as expectativas e a confiança que depositamos no futuro próximo. Mas infelizmente a vida e as suas cicatrizes transforma-nos em pessoas amargas, e o fogo com que recebemos o ano novo torna-se mais ténue. É talvez porque deixa a certa altura de ser novidade. “Olha mais um ano que passou, já passaram tantos…”, filosofamos com uma certa dose de fatalismo. “Lá vai mais um…”. Resta alimentar a chama que resta com a atitude positiva dos mais novos, que recebem o passar do tempo com a alegria própria da juventude.

O que eu gostava do reveillón eram as tréguas dadas às regras a que qualquer pai impõe aos seus filhos. Não havia hora para ir dormir, podiam-se cometer alguns excessos em nome da “boa sorte para o novo ano”. Depois dos 10 anos até dava para beber um ou dois copos ao abrigo da amnistia parental, nem que fosse apenas do espumante Raposeira, que os adultos teimavam em chamar ingenuamente de “champanhe”. A minha família seguia a tradição das doze passas e da batida dos tachos e das panelas quando chegava a meia-noite, “para espantar a má sorte”. Superstições sem sentido, mas que recordo com um sorriso e com muita saudade. Na adolescência saíamos com os amigos depois de cumprir o ritual com a família, e soltava-se a exuberância própria da juventude, da vontade de viver, recebendo o novo ano como mais uma incógnita. O que vamos aprender este ano? Que novos desafios vamos encontrar? Será que este ano…? Tantas incertezas, tão deliciosas.

Para quem optava fazer a passagem de ano fora do conforto do lar, existiam mil e uma opções, nenhuma demasiado humilde ou despecienda. Lembro-me do reveillón 1985/86 que passei no Barrete Verde em Alcochete, um dos mais divertidos de sempre. Mas recordo-me com mais nostalgia de 90/91 e 91/92 quando a RTP nos brindou com dois programas de fim-de-ano memoráveis, com a chancela de qualidade de Herman José: “Crime na Pensão Estrelinha” e “Hermanias”, que fizeram a transição entre o ano velho e o novo com muito boa disposição. Valeu a pena ficar em casa em família frente ao pequeno ecrã, e depois da meia-noite ainda deu para sair à rua e respirar o ar fresco do recém-chegado mês de Janeiro.

Já em Macau perdi o bom hábito de festejar “em grande” a passagem de ano. Alcancei a proeza de tornar memorável a entrada no ano 2000, o tal milénio, onde estive na Times Square em Cantão com milhões (literalmente) de pessoas que aguardavam com curiosidade esta data redonda, que apenas poucas gerações no extenso período de mil anos tiveram a oportunidade de presenciar. Foi o único reveillón que fiz fora do território. Em Macau na passagem de ano, e como em muitas outras coisas, reina a pasmaceira. O local de eleição para receber o ano é o Largo do Senado, sempre apinhado de gente, mas depois da contagem regressiva vai cada um à sua vida e poucos minutos depois a nossa principal praça está praticamente deserta. Ficam os habituais “imigrantes do sudeste asiático” a beber as suas cervejas pela noite dentro, como em qualquer dia normal. Muitos residentes optam pela habitual festa de variedades que se realiza na Taipa, transmitida em directo na TDM, e que se pauta por uma sempre-mesmice atroz, com os mesmos artistas a repetir o reportório do ano anterior. Outros locais imitaram recentemente o modelo, convidando um qualquer artista da região vizinha, para quem a passagem de ano é uma lucrativa oportunidade de trabalho. É o reveillón dos pobres e dos acomodados.

Se preferir abrir os cordões à bolsa e passar o ano numa das muitas festas organizadas por hotéis, discotecas e outros locais “inn” onde vai muita gente gira, pode comprar um lugar, mas que não lhe garante o calor humano de uma festa privada com família e amigos. Para quê gastar mil patacas ou um pouco menos com alguém que não nos ama e que se está nas tintas se vamos ser felizes este ano ou não? Se por acaso está sozinho este reveillón e não lhe apetece festejar, lembre-se que é só mais um dia que passa, e que outros melhores virão. Isto não depende das datas ou da vontade dos outros, depende apenas de si. E agora só me resta acabar com a previsível conclusão: feliz ano novo! Salut!

2012 em revista


O ano de 2012 não fica marcado por qualquer acontecimento decisivo ou sequer especial, apesar de há dez dias se ter anunciado o fim do mundo. Isso seria merecedor de destaque, caso tivesse ficado remotamente perto de se concretizar. Mais uma vez foi um ano em que se ultrapassaram limites, vimos gente a partir, e ficam registadas incidências para mais tarde recordar, usando o bordão da velhinha Kodak. Eis alguns dos actores principais do ano que agora finda.

PERSONALIDADE DO ANO


Escolhi Xi Jingping, recentemente eleito presidente da China, em deterimento de Barack Obama, reeleito presidente dos Estados Unidos, e passo a explicar porquê. Enquanto Obama cumpre um segundo e último mandato a braços com uma crise interna enorme que os americanos esperam que resolva, na China vamos ter Xing Jinping durante os próximos dez anos. É com enorme expectativa e uma dose de esperança que aguardamos o seu mandato, depois de uma década de Hu Jintao, que colocou a China no pódio da economia mundial. Se o desempenho de Xi for pelo menos igual ao do seu antecessor, não tenho dúvidas que no final desta década teremos uma China na liderança do mundo. A única dúvida é saber que China será essa, e cabe ao novo presidente encetar as reformas tão necessárias como urgentes, nomeadamente as de cariz democrático e social. Caso Xi Jingping consiga reformar esta China que já é um gigante de facto, entrará certamente para a História como um dos seus maiores líderes. Aqui em Macau vamos ficar a torcer por ele, pois o bem da China é também o nosso bem, por inerência.

PERSONALIDADE DO ANO (MACAU)


Jason Chao, presidente do Novo Macau Democrático (NMD) é uma figura enigmática, que de destacou durante o ano que agora finda. Educado, com perfil de intelectual, expressando-se num inglês imaculado, Jason deu-se a conhecer em 2009 quando foi o nº 2 de Au Kam San nas legislativas, falhando na altura a eleição para a AL. Foi o baptismo de fogo deste jovem de vinte e poucos anos, que muitos vaticinam como sendo o succesor natural do histórico Ng Kuok Cheong. Este ano esteve na linha da frente de muitas das lutas do NMD, ora pela habitação económica, ora exigindo explicações à organização da exibição dos cadáveres plastinados no Venetian, e mais recentemente liderando a primeira marcha gay da história do território (ficamos contudo sem saber a sua orientação sexual). O espírito contestatário está lá, resta saber se o conhecimento de ciência política o complementa.

ATLETA DO ANO


Estive tão indeciso entre Usain Bolt e Lionel Messi que criei uma categoria para cada um. Mas quando falamos de “atleta”, falamos de muito mais que futebol, e Usain Bolt teve mais uma vez o mundo a seus pés este ano, em que se realizaram os Jogos Olímpicos de Londres. O jamaicano voltou a conquistar o ouro em todas as provas que competiu, e continua a deter os recordes mundiais que fazem dele o homem mais rápido do mundo. Seis medalhas de ouro olímpicas na velocidade em quatro anos é obra, e é caso para dizer que este Bolt faz jus ao nome – é um “raio” fulminante.

FUTEBOLISTA DO ANO


Lionel Messi, claro. Os mais básicos instintos patrioteiros levam-me a preferir Cristiano Ronaldo, mas contra factos não há argumentos. O argentino juntou à seu extensivo currículo o recorde de mais golos marcado num ano civil, e continua a ser o “alvo a abater” por todos os seus adversários. Tivesse uma selecção argentina à altura do seu génio, e já tinha juntado aos muitos títulos que ganhou em menos de dez anos de carreira o campeonato mundial de selecções. Seja como for, somos testemunhas privilegiadas deste fenómeno. Os nossos pais e avós tinham Pelé, nós temos Messi.

DESPORTISTA DO ANO (MACAU)


Esta é a única categoria em que temos um empate. Nenhum dos contemplados nesta categoria merecia ser deixado de fora, apesar de um deles não estar afiliado com o desporto local. Assim a selecção de hóquei em patins do território é referida em primeiro lugar. Os hoquistas de Macau conquistaram em 2011 o sétimo título asiático da modalidade, obtiveram o 6º lugar no mundial “B” deste ano, e foram finalmente reconhecidos pelo Governo da RAEM com uma medalha de mérito desportivo. São um exemplo acabado da expressão “água mole em pedra dura…”, mas outra vez recorrendo ao léxico popular, “mais vale tarde que nunca”. Destaque também para António Félix da Costa, o jovem piloto português que se tornou o primeiro a vencer o GP de Macau correndo pelo ACP. Uma promessa do automobilismo mundial, Félix da Costa depende apenas dos patrocínios para que Portugal tenha finalmente um piloto que possa aspirar ao título mundial na categoria máxima do desporto automóvel, a Fórmula 1. Fica aqui a menção, que espero referenciar no futuro.

ACONTECIMENTO DO ANO


Foi no dia 14 de Outubro que o austríaco Felix Baumgartner (outro Felix nesta lista) desafiou os limites da nossa parca condição de frágeis seres humanos e saltou da estratosfera, de uma altura de 39 mil metros, sobre o deserto do Novo México. Foi o primeiro ser humano a quebrar a barreira do som, caindo a uma velocidade de 1342 km/h durante mais de quatro minutos, antes de abrir o pára-quedas que o fez aterrar em segurança, completamente consciente e sem um único arranhão. Um acontecimento que nos deixa orgulhosos das nossas capacidades, que não são assim tão limitadas quanto isso.

ACONTECIMENTO DO ANO (MACAU)


Na recta final deste ano, deu-se um acontecimento que despertou a curiosidade da opinião pública e causou preocupação entre os responsáveis pela segurança do território. Wan Kwok Koi, ou Pan Nga Koi, o “dente partido”, foi libertado do Estabelecimento Prisional de Macau no início do mês de Dezembro, e à sua volta montou-se um circo mediático sem paralelo com outra personalidade do em tempos recentes. O ex-líder da seita 14 quilates pediu apenas “que o deixem em paz”, mas é difícil de prever que papel irá desempenhar no complicado mundo do jogo e das salas VIP de Macau apenas um mês após acabar de cumprir uma pena de 14 anos de prisão. Um homem que tem muito que contar, e que certamente terá uma palavra a dizer.

FIASCO DO ANO


Será que alguma vez na História as palavras “passos” e “coelho” foram pronunciadas tantas vezes juntas, e de forma tão derrogativa? Ah sim, em termos de fiasco tivemos também a tal previsão falhada do fim do mundo, mas não há por aí muitos Maias para chatear.

FENÓMENO DO ANO


Mais de mil milhões de visualizações à escala global para uma canção que apenas 50 milhões entende a letra? A internet é um mundo à parte, sem dúvida…

FILME DO ANO


A revolução de 1979 que derrubou o xá Reza Pahlevi e instaurou uma república islâmica no Irão foi um tema que sempre me fascinou. Um “case-study” interessante, de como um país moderno e ocidentalizado se transforma numa rigorosa ditadura clerical no espaço de meses. Em retaliação pelo exílio do xá nos Estados Unidos, o regime iraniano toma como reféns os 50 funcionários da embaixada norte-americana em Teerão. “Argo”, realizado por Ben Affleck, que também assume o papel principal, conta a história de como seis destes reféns conseguem escapar através de um esquema que os faz passar por actores de um putativo filme de ficção científica a ser rodado no Irão, aproveitando-se até de alguma ingenuidade da guarda islâmica iraniana. O filme é uma dramatização de acontecimentos verídicos relatados num relatório recente da CIA, mas tem qualidade que chegue para que o considere o melhor de 2012.

BRONCA DO ANO


Por falar em filmes e em islâmicos, eis uma polémica que deu que falar. Em Julho de 2012 apareceram no YouTube cenas de um alegado filme que contava a história do profeta Maomé. Esse filme, que na verdade não existe, seria intitulado “The Innocence of Muslims”, e dava uma imagem muito pouco favorável do profeta do Islão, que era descrito como um louco e um tarado sexual. As imagens causaram a ira em alguns países islâmicos mais radicais, e como não podia deixar de ser sucederam-se demonstrações anti-América. O responsável pela “brincadeira” foi identificado como sendo um tal Nakoula Basseley Nakoula, um cristão-copta egípcio naturalizado americano, proprietário de uma estação de serviço, e condenado a um ano de prisão e mais quatro de pena suspensa por tecnicalidades. Um tribunal egípcio condenou-o à revelia à pena capital, por blasfémia.

PARTIRAM E DEIXAM SAUDADES…

Whitney Houston
Não era um grande fã da cantora, mas reconheço que marcou uma geração. Uma série de equívocos e opções menos acertadas levaram à sua morte em Fevereiro, com apenas 48 anos.

Vidal Sassoon

Cheguei a lavar a cabeça com um champô desta marca, mas nunca soube muito sobre o homem por detrás do cosmético. Prezo a saúde capilar, e orgulho-me da minha farta e cheia cabeleira, por isso a minha singela homenagem.

Gore Vidal

Um dos mais prolíficos autores americanos na área da ficção política e histórica. Deixou escrito um rol de ensaios, peças, novelas e guiões, que fazem dele uma referência entre a elite intelectual norte-americana e uma inspiração para pelo menos duas gerações de aspirantes a escritores.

Neil Armstrong

Em Agosto de 1969 chegou à Lua, em Agosto de 2012 voltou a partir com destino incerto. Um homem que já chegou a dois sítios onde nunca estivemos.

José Hermano Saraiva

A maior perda este ano em Portugal, sem sombra de dúvida. O “professor” de História que foi ministro de Salazar e que tinha um à vontade extraordinário em frente às câmaras de televisão, transformava aspectos maçudos da História de Portugal em narrativas interessantes. Isto apesar de, e citando o próprio, “esta história, pode não ser verdade, mas digam lá se não é uma bonita história?”.

Sun Myung Moon

Se alguém remotamente semelhante a Jesus Cristo tivesse morrido este ano, esse alguém seria Sun Myung Moon. Este sul-coreano que nos deixou em Setembro aos 92 anos fundou em 1954 a Igreja da Unificação, uma seita cristã que tem actualmente um número indeterminado de membros – provavelmente bem acima do milhão – em todo o mundo. São os “moonies”. O mito parte, a obra fica.

Larry Hagman

O homem que todos amavam odiar, o JR da série norte-americana “Dallas”, a personificação do imperialismo americano e da sede de petróleo "yankee". Hagman era até um bom homem, e não o alcoólico e cocaínomano que encarnou no filme “Primary Colours”, de 1998, mas da fama de facínora não se livra, nem depois da morte.

Oscar Niemeyer

O creativo que idealizou Brasília e era sinónimo de arquitectura moderna cometeu a audácia de viver 104 anos, ignorando qualquer prazo de validade. Uma vida cheia, em que deixa obra que todos podem contemplar um pouco por todo o mundo civilizado.

domingo, 30 de dezembro de 2012

À nossa!


Quando soa a meia noite
Começo a capotar
Há um monstro dentro de mim
Que eu procuro envenenar
Rezo a baco uma oração
Sinto o fígado a explodir
Em cada gole uma opção
Um desejo de virar

GNR, Piloto Automático


A época festiva é sempre uma boa desculpa para se beber uns copos. Mesmo os mais disciplinados “perdem a cabeça” e entregam-se aos inebriantes prazeres do álcool, a droga social, a mais tolerada, e que nestes dias se torna quase num bem de primeira necessidade. Qual é a festa a sério que se faz sem bebidas alcoólicas? E quando digo “festa” não me estou a referir a jardins de infância ou seitas religiosas esquisitas que encorajam a abstinência. Estas não são “festas” dignas desse nome. Falo de festa rija; de amor, loucura e excesso. De consequências imprevisíveis e ressacas no dia seguinte, acompanhadas de sentimentos de culpa e até alguma dose de arrependimento por qualquer coisa que se fez ou disse. O álcool é desinibidor e tem o condão de “soltar a língua”.

Tenho uma relação boa com a bebida. Orgulho-me de ser bastante tolerante, e tenho a sorte de ser um bêbado alegre. Faz-me confusão como algumas pessoas ficam alteradas e agressivas quando bebem demasiado. Quando me sinto inebriado e desprovido do equilíbrio que garante que me mantenha de pé com toda a segurança, a única coisa que quero é que me deixem em paz. Mesmo o estágio inicial de euforia é acompanhado de uma placidez tremenda, e vontade de espalhar uma amizade fraternal por quem me rodeia. Tenho um preconceito que terá um fundo do verdade: os ingleses têm tendência para a confrontação física quando bebem. Mesmo que isto seja uma generalização injusta, os episódios são tantos que pelos menos da fama eles não se livram. Se os povos nórdicos até funcionam melhor que nós quando estão sóbrios, os portugueses levam a melhor quando bebem. Somos um povo festivo, e a bebida serve para ajudar à festa.

Apanhei a primeira piela digna desse nome aos 15 anos com whiskey, e mesmo hoje tenho uma relação complicada com esta bebida. Não sei porquê mas o whiskey é a única coisa que me tira do sério, que me transforma num Mr. Hyde, e por isso dispenso o “chá da Escócia”. Gosto de vinho tinto, mas apenas às refeições, em pequenas doses e apenas como acompanhamento, ou no Verão em forma de sangria, que é refrescante e “escorrega” como se fosse água. Evito abusar do tintol, e arriscar-me a ir “chamar o Gregório”, transformando uma inocente jantarada numa feijoada orgânica. Quando se bebe ao ponto de induzir o vómito, significa que se bebeu demais. Consumiu-se um copo ou dois acima do limite, e a deliciosamente inebriante experiência que é a bebedeira ficou arruinada. Não sou adepto das “long-drinks”, dos cocktails ou de bebidas que incluam leite, natas, sumos de fruta ou outros elementos que “trabalham no estômago”. Se é “para a desgraça”, que se dê prioridade ao álcool puro sem muitas misturas.

A minha bebida de eleição, e digo isto com um pouco de vergonha, é o vodka. Vergonha porque a minha escolha recai sobre uma bebida estrangeira e distante, quando podia dar preferência a algo que tIvesse mais a ver com a nossa cultura. Só que infelizmente não sou adepto da aguardante bagaceira, do Brandymel, da amarguinha ou do Licor Beirão. O vodka é uma bebida alcoólica pura, limpinha e directa, que bebo misturada com Red Bull ou sumo de laranja sem polpa, que preservam a sua qualidade, enquanto disfarçam o seu sabor clínico. O vodka garante resultados rápidos, pode ser bebido no frio e no calor, e é de fácil digestão. Uma garrafa da russa Stolichnaya, a minha favorita, fica por cerca de 80 patacas, um preço bastante acessível. Existem vodkas além dos russos que se podem adquirir a preços igualmente convidativos; a sueca Absolut, a britânica Smirnoff ou a Finlandia, que carece de indicação da origem. Os mais esbanjadores poderão optar pela francesa Grey Goose, que custa mais de 200 patacas por garrafa, mas o resultado é o mesmo, e não faz menos mal à saúde. Existem algumas marcas esquisitas, tipo Red Square, White Wolf e outras de origem duvidosa, mas lembre-se da regra dourada: o vodka tem 40º de volume de alcóol. Se não tem exactamente essa graduação, não é vodka.

E a cerveja, esse delicioso néctar com uma história milenar e que não deixa ninguém indiferente? Gosto de cerveja geladinha como qualquer um dos mortais, mas foi um gosto que adquiri apenas aos 16 ou 17 anos, idade do coirato e da bifana. Os meus colegas do liceu bebiam cerveja como veículo de afirmação, e chegavam a “descolar” garrafas de Sagres à revelia dos pais e professores, que consumiam mesmo morna. Não há nada pior que cerveja morna. A cerveja tem que ser bebida geladinha, e de preferência à pressão. Uma das coisas de que tenho saudades em Portugal é das imperiais e dos “finos” bem tirados, especialmente quando o calor aperta. Aprecio o cerimonial das “jolas” com os amigos, mas não considero a cerveja a bebida ideal para que se apanhe uma “buba” decente. Talvez porque as qualidades diuréticas desta bebida impliquem idas frequentes à casa-de-banho, o que se pode revelar um incómodo. Em Macau a chinesa Tsingtao é rainha, preferida de analfabetos e doutores, mas a experiência mais memorável que tenho da cerveja nesta parte do globo foi nas Filipinas. A San Miguel nas Filipinas é mil vezes melhor que a local, produzida em Hong Kong. É a melhor cerveja da Ásia, de longe. Em segundo lugar vem a tailandesa Chang, bem melhor que a sua compatriota Singha, uma desilusão. Quanto à Macao Beer, marca local produzida não se sabe bem onde, não recomendo nem para desentupir sanitas.

Sempre ouvi dizer que “o álcool avilta a saúde mental do homem”, mas isso é apenas um exagero. Existe uma ideia feita de que beber “destrói os neurónios”, as células do cérebro, mas não é bem assim. Nascemos com o mesmo número de neurónios que mantemos durante toda a vida; não os perdemos com facilidade, nem adquirimos novos ou substituímos os que perdemos. Uma bebedeira “de paralizar os neurónios” pode paralizá-los, certo, mas não os destrói. Para que o álcool destrua os preciosos neurónios, são precisos 30 anos de alcoolismo crónico. Uma febre de mais de 40 graus aniquila milhares de neurónios, uma semana de bebedeira não afecta um que seja. Em termos de saúde, é o fígado que mais se ressente do consumo frequente do álcool. O fígado é o nosso “filtro”, um orgão vital, e sem ele um simples gin tónico seria fatal, pois afinal o álcool é tóxico para o organismo, por muito que isto nos custe aceitar. O álcool afecta o fígado da mesma forma que alguns medicamentos, drogas ou uma dieta rica em gorduras saturadas. O segredo para quem gosta de beber e não quer que a cirrose estrague a festa é dar algum descanso à isca. Dois ou três dias de abstinência com água mineral para matar a sede são suficientes para deixar o fígado respirar, regenerar-se e ficar pronto para destilar mais uma carraspana. Uma dieta rica em fibras e os sumos de frutos vermelhos (morangos, amoras, groselha, etc.) também contribuem para amenizar os efeitos da bebida.

No dia seguinte a uma noite de copos, prazer e alegria e todas essas coisas que fazem bem ao espírito, somos acometidos da tal “ressaca”. A ressaca não é mais que o efeito da desidratação provocada pelo consumo do álcool. Basicamente o organismo dispende uma grande parte da água que o compõe na ordem dos 65-70% para “atacar” o álcool e ajudar à sua decomposição e assimilação. Uma forma eficaz de evitar a ressaca é beber água ao mesmo tempo que se consomem bebidas alcooólicas. Tudo bem, é um truque que até pode dar resultado, mas que piada isso tem? Não me apetece nada beber água quando estou concentrado na inebriação dos sentidos. A água sabe mal quando já se vai no quarto ou quinto vodka. Quem é que se lembra de mamar um mortífero “shot” e de seguida beber um copo de água? A ressaca é a consequência natural do cerimonial da bebida, e é uma parte indissociável do processo. Acordar no dia seguinte com dor de cabeça e a boca seca a saber a pecado é a validação da experiência da noite anterior. A decisão sensata é que depois de uma noite de homenagem a Baco se descanse, que se beba água, leite e sumos naturais, e que se dê uma trégua ao organismo antes de o castigar novamente. Ele agradece e garante que a próxima experiência será igualmente gratificante. Quem é mais lingrinhas e não suporta uma ressaca tem à sua disposição na farmácia de uma gama de anti-ácidos para o efeito, cortesia dos russos (quem mais?), bêbados profissionais.

O álcool é um apêndice da nossa civilização com que é preciso saber conviver. Sinto pena dos alcoólicos, pessoas que transformaram o prazer de beber na dependência de uma substância que é suposto ajudar a tornar a vida mais colorida, e não mais cinzenta. A relação que temos com a bebida deve ser a mesma que temos com uma amante divertida e libidinosa que nos ajuda a aguentar a esposa chata e frígida que nos espera em casa. É para nos servir quando precisamos dela, sem o peso da rotina ou do compromisso. É permitido – recomendável até – que usemos e abusemos do milagre da fermentação do açucar durante estas mini-férias natalícias, para que possamos depois enfrentar com mais entusiasmo a “vaca fria”. É sempre bom sabermos que temos a nossa garrafinha à espera no final de mais uma jornada, e depois da sensação de dever cumprido. Já agora brindemos ao novo ano da forma mais tradicional, com champanhe, de preferência da marca Möet & Chandon, acompanhada de moranguinhos para acicatar o sabor da divinal espuma francesa. Um brinde, à nossa!

À deriva no Rio Ave


O ano de 2012 entra para a história do Sporting como o pior de sempre, e pelo menos os seus adeptos esperam que assim seja: pior é mau sinal. Os leões foram ontem goleados em Vila do Conde frente ao Rio Ave por três golos sem resposta no segundo jogo da fase de grupos da Taça da Liga, e estão praticamente afastados da única competição que podiam ainda ganhar esta época. O jogo ficou marcado pela expulsão do central inglês dos leões Eric Dier em cima do intervalo, quando o resultado estava ainda em branco, e deixou a sua equipa a jogar toda a segunda parte com apenas dez unidades. O Sporting só venceu ainda 4 dos 23 jogos oficiais disputados esta época, ainda não ganhou fora de Alvalade, e o balanço do treinador belga Frank Vercauteren não é nada famoso: dez jogos, duas vitórias, quatro empates e quatro derrotas. O que mais irá acontecer ao Sporting?

sábado, 29 de dezembro de 2012

O fruto proibido


Começo a pensar que a prevenção e combate à toxicodependência que se faz em Macau fora do âmbito privado é feito por gente que não sabe o que é droga. A sério. O tal Gabinete que apresenta aquelas enormidades a que chama “estatísticas” é composto por gajos que nunca viram droga na vida, ou só ouviram falar de droga na televisão e nos filmes. Enquanto a Polícia prende, o Ministério Público acusa e a prisão recebe os traficantes e afins, no que toca à prevenção e à análise do problema da toxicodependência e do consumo em geral, prima-se pela incompetência e até alguma ingenuidade.

Assim ficamos sempre a saber que o consumo diminuíu. Yupi! Haja saúde. Depois vem sempre um “mas” qualquer que contraria por completo essa asserção. Diminuíu, MAS há mais recaídas. Diminuíu MAS há cada vez mais jovens a experimentar. Diminuíu MAS consome-se cada vez mais em casa. Diminuíu MAS consome-se em maior quantidade. Quer dizer, se calhar diminuíu porque foram presos mais consumidores, e talvez quando se anuncia a tal diminuição no número de consumidores, aparecem novos que substituíram os que tiveram menos sorte, coitados.

A informação é confusa e contraditória, e alguma chega a roçar o ridículo. Por exemplo o facto de se consumirem substâncias em casa. Se eu fosse toxicodependente ou adepto das drogas recreativas, preferia consumi-las no conforto do lar do que na rua, ou noutro local frequentado por gente que se calhar não ia achar muita piada e podia alerter as autoridades. Além disso algumas drogas requerem utensílios que não se encontram em bares ou cafés e não são fáceis de transportar no bolso, como seringas, colheres, papel de alumínio, cachimbos de água, etc. Deve ter sido uma surpresa enorme para esta gente quando se constatou que alguns utilizadores consomem – pasme-se – em casa! Onde vivem os pais, os irmãos e o cão! E eles que sempre pensaram que a droga se consumia principalmente ao ar livre, por causa da componente da “rebeldia” e da “afirmação”, uma teoria sempre atirada para cima da mesa para explicar o facto de cada vez mais jovens começarem a consumir. Psicólogos de vão de escada.

Um dos maiores problemas das campanhas de prevenção é não especificar que existem vários tipos de drogas, algumas piores que outras. Isto até está tabelado por lei, e não é novidade nenhuma. Como tive a sorte de obter o grosso da minha educação num lugar onde existe uma visão mais larga, aprendi que a imensa variedade de drogas existentes não se limita ao grupo da “droga”, e que toda a “droga” é má, porque é “droga”, ponto final. Não são todas as drogas que provocam dependência, e a designação de “drogas duras” e “drogas recreativas” não é um eufemismo para iludir as pessoas de que existem drogas que não fazem mal. A cannabis, que faz tanto ou menos mal que o tabaco e certamente menos mal que o álcool não foi sempre uma “droga”, ou sequer uma substância ilegal – convém estar dotado de algum conhecimento histórico, também. Mesmo a teoria de que se trata de uma “gateway drug”, que pode levar ao consumo de drogas pesadas carece de uma fundamentação mais convincente que a simples “habituação” que leva a que se procure “uma substância mais forte”. Há gente que consumiu ou consome cannabis há décadas e nunca mudou para outra substância.

Existem drogas naturais e sintéticas, e destas últimas nem todas transformam um jovem inteligente e saudável num bocado de merda que se arrasta pelas ruas aos gritos, como vemos em algumas das campanhas televisivas. A droga na sua generalidade não destrói carreiras e famílias, não aliena amigos, não provoca danos irreversíveis à saúde e não “mata” assim com tanta facilidade. Pelo menos não representa um perigo muito maior ou sequer ligeiramente maior que outros comportamentos de risco. A obesidade mata mais que a maioria das drogas e o seu consumo frequente, e que eu saiba a obesidade ainda não é uma “droga”. Como vão estes profetas da desgraça explicar que existam indivíduos dependentes da heroína – a rainha das drogas – há 30 ou 40 anos, e ainda estão vivos? O próprio alcoolismo mata mais a longo prazo que a heroína. A maior parte das drogas são de consumo controlável, e há indivíduos perfeitamente funcionais e até bem sucedidos que as consomem regularmente. Venham desmentir isto, se forem capazes.

A mensagem inicial que se passa é que a droga é uma “armadilha”, e que a sua mera existência é uma trama diabólica com o objectivo de destruir a humanidade. Quando a mensagem inicial que se passa é errada, então nada mais a partir daí faz algum sentido. Isto pode parecer uma surpresa para alguns, mas quem consome drogas fá-lo para se sentir melhor, e não pior. Para se sentir bem, e não mal. As razões porque o fazem são diversas, e se o fazem porque têm algum problema familiar ou pessoal, esse problema não foi certamente causado pelas drogas que passaram a consumir como escapatória. Eu próprio confesso que fui vítima deste preconceito…quando tinha 7 ou 8 anos. A minha ignorância infantil levava-me a pensar que a droga era um instrumento de agentes do mal destinados a corromper os anjinhos (o que até se pode considerar um pensamento elaborado, atendendo à minha limitada capacidade cerebral de então). Depois cresci e aprendi que a droga é uma cultura muito própria, a tal “drug culture”, que tem uma História muito particular, e que não é o produto de nenhuma falência social ou decadência dos valores. Sempre existiu, das mais variadas formas, e antes do evento da criminalização já se fazia muita arte, arquitectura e literatura “psicadélica”.

Já defendi neste blogue a legalização de todas as drogas para que se corte pela raíz a essência do “problema”: o lucro. A droga é acima de tudo um negócio, e realisticamente, não é produzida em massa à escala mundial para que as pessoas se divirtam ou se abstraíam dos seus problemas. É produzida porque é lucrativa, e o facto de ser ilegal torna-a mais cara, e portanto um negócio ainda mais apetecível. Legalizando todas as drogas, mesmo as ditas pesadas, torna o seu acesso mais facilitado e retira-o da esfera da criminalidade, baixa os preços representando uma menor carga financeira para os toxicodependentes e as suas famílias, permite um melhor controlo de qualidade evitando muitas mortes por consumo de drogas adulteradas, ajuda a prevenir a propagação de doenças derivadas da partilha de seringas, e o mais importante de tudo: pode ser que uma vez que deixe de ser bastante lucrativo, há quem desista de as produzir e angariar novos consumidores. É assim tão disparatado?

O exemplo de Macau é gritante, e é pena que não se assuma o que é por demais evidente: a luta contra a droga está perdida. O Gabinete para a Prevenção e Tratamento da Toxicodependência, e agora deixando de lado o facto de que está servido por gente que não percebe nada de droga, está de pernas e braços atados. Em Macau quais são as alternativas para um jovem que não tem nada que fazer? Já sei, o desporto, que é apresentado como uma panaceia anti-droga, ao ponto de se dar a entender que quem não pratica desporto arrisca-se a cair nas malhas da droga. E realmente quem os pode censurar? Que outras opções existem para um jovem adulto nas áreas da cultura, da arte ou do entretenimento para ocupar o seu tempo livre? Que outra formação profissional de monta existe que não esteja ligada ao jogo e aos casinos? Se não está na escola ou em casa com os pais a jantar e a dormir, anda pelos salões de jogos, discotecas e salas de karaoke, onde como se sabe, não é difícil encontrar drogas, e daquelas mesmo mázinhas, que se engolem e que se cheiram.

Enquanto a recuperação dos toxicodepentes e o combate ao tráfico e à criminalidade são feitas de forma competente no território, a prevenção continua a marcar passo, e a informação é deficitária. Não se educam os jovens sobre os efeitos das drogas, do seu impacto social, ou mesmo da sua história, origem e composição, porque não? Diz-se apenas: “não se metam nisso, porque é mau”. Se lhes dizem que é “mau” simplesmente porque sim, então estão a despertar-lhes uma curiosidade que não existiria se tratassem do assunto de uma forma mais aberta, usando bases científicas para sustentar os seus argumentos. Uma campanha educativa bem feita era até capaz de afastar os jovens do Starbucks, porque “a cafeína é um estimulante”. Assim só dão a conhecer o fruto proibido, que como se sabe, é o mais apetecido.

Alentejo, meu amor


Eu hei-de ir, hei-de ir
Eu hei-de ir andando
Tu hás-de ficar
Em casa chorando

Vamos lá saindo
Por esses campos fora
Que a manhã vem vindo
Dos lados d’aurora
Dos lados d’aurora
A manhã vem vindo
Por esses campos fora
Vamos lá saindo

E eu dantes era
E agora já não
Da tua roseira
O melhor botão


Canto Alentejano

Adoro o Alentejo, e adoro os alentejanos. Como vivia no Montijo, região que tecnicamente é “além-Tejo”, sinto-me também um pouco alentejano. Quando se fala de alentejanos, a maioria das pessoas lembra-se das anedotas, muitas delas que levam a que exista um preconceito de que este povo é preguiçoso e ignorante, mas que por vezes se redime com uma certa dose de chico-espertismo. Não penso que os alentejanos se devam sentir diminuídos pela existência deste imenso anedotário. Eu sentir-me-ia orgulhoso. Dizer nos tempos que correm que se é alentejano já não é motivo de chacota. Há quem o faça sem vergonha de espécie alguma. Aliás, com o actual estado da nação, completamente em farrapos, o que adianta discriminar quem quer que seja baseando-se na origem? É parvoíce.

O Alentejo divide-se em Alto Alentejo e Baixo Alentejo. O primeiro é constituído pelos distritos de Portalegre e Évora, e a “fronteira” com o distrito de Castelo Branco é marcada pelo concelho portalegrense de Gavião, a nordeste de Lisboa. Bem a nordeste, e pode-se mesmo dizer que ser alentejano não significa necessariamente ser do sul de Portugal. Quem nasce em Lisboa é mais sulista que quem nasce em Gavião, Nisa, Monforte ou Ponte de Sôr, todos sedes de concelho do distrito de Portalegre. Este é um distrito alentejano que sofre do problema da interioridade, mergulhado no provincianismo. Menos de 120 mil habitantes, sendo a sua cidade mais populosa a mítica Elvas, com 23 mil habitantes. A sede de concelho tem pouco mais de 15 mil, e mesmo Campo Maior, conhecida pelos famosos cafés Delta da família Nabeiro, ainda é vila, e tem cerca de 8 mil “campomaiorenses” apenas. Falta gente a este alentejo vetado ao abandono.

O distrito de Évora encontra-se menos desertificado, apesar de tudo. Tem 168 mil habitantes, e a capital de distrito, a inspiradora cidade de Évora, repleta de motivos de interesse, tem perto de 50 mil. Existem ali concelhos lindíssimos habitados por gente simpática, e cada um com a sua história e características muito próprias. Temos Arraiolos com os seus lindos tapetes, Vendas Novas e as famosas bifanas, Borba dos vinhos, Redondo, terra natal da família Salomé, e também do vinho, Mourão, berço do cantor Marco Paulo, Montemor-o-Novo, Estremoz e outras, e as minhas favoritas: Reguengos de Monsaraz e Vila Viçosa. Se há dois concelhos onde podemos sentir a verdadeira matriz de Portugal, da sua natureza fortificada, medieval, com campos a perder de vista, são estes dois, cuja visita se torna indispensável. Quem não conhece Vila Viçosa e Reguengos, não conhece Portugal.

O Baixo Alentejo é o Alentejo por excelência. Abrange a parte sul do distrito de Setúbal e todo o distrito de Beja. Este é o Alentejo das tais anedotas, da bolota, dos chaparros, da cortiça, das samarras, do porco preto. Se alguma vez tive dúvidas sobre onde se come melhor em Portugal, foram um dia completamente dissipadas quando jantei num restaurante em Azeitão um buffet de comida alentejana. Os enchidos, os queijos, as açordas, as coentradas, as sopas, o pão. Tudo do bom e do melhor, e da forma mais simples que se pode imaginar. Existe no Baixo Alentejo um petisco a quem muita gente pode torcer o nariz, mas garanto que é uma delícia: túbaros. E o que são túbaros? Testículos de carneiro ou de porco (que em rigor se chamam colmilhos) temperados com sal, pimenta e limão e cozinhados com molho picante de tomate. Uma experiência gastronómica inesquecível, e para os mais desconfiados garanto que não há ali “espermas” de espécie nenhuma. Alguém faltou às aulas de Biologia, ou não prestou muita atenção.

O distrito de Beja conta apenas com 150 mil alentejanos “hardcore”, 35 mil deles na capital de concelho. É uma falta incrível da minha parte: nunca fui a Beja cidade, mas conheço mais ou menos bem o segundo concelho mais populoso, o de Odemira, o maior do país em área. Aqui encontramos algumas das melhores praias de Portugal, com destaque para as fantásticas praias junto a Vila Nova de Milfontes, na foz do rio Mira. Mil fontes, só o nome diz tudo. Outros concelhos dão um encanto especial à região, e enumerá-los traz só por si uma calma especial, sabendo que ali está a nata do Alentejo: Moura, Cuba, Serpa, Castro Verde, Mértola, Vidiguêra, perdão, Vidigueira, e já na fronteira com o Algarve temos Almodôvar. É neste distrito que encontramos Barrancos, conhecida pelo regime de excepção nos touros de morte, e Aljustrel, outrora cidade próspera graças à indústria mineira, que vai mesmo assim subsistindo. A pequenez do distrito em termos populacionais chega a surpreender; o concelho de Alvito tem pouco mais de dois mil habitantes. Menos que em alguns edifícios de Macau! Pode-se dizer com alguma segurança que ali toda a gente se conhece.

O distrito de Beja é o mais quente do país. Ali faz calor a sério, o que pode explicar a tal letargia tão empolada pelas anedotas. Pudera; tentem lá cavar a terra debaixo de um sol abrasador de mais de 40 graus e com escassez de água, e vão ver o que é bom para a tosse. Na Amareleja, freguesia do concelho de Moura e terra natal da actriz Eunice Muñoz, chegaram a ser registados 47.4º C, um recorde nacional. Isto pode parecer muito, mas basta encontrar uma sombrinha debaixo de um chaparro e aguenta-se muito bem. Ainda quanto à Amareleja, esta serviu de inspiração à tal “Merdaleja”, de onde é originária a personagem “Maximiana”, criada por Herman José, a caricatura da típica mulher alentejana. Outra mulher alentejana que todos conhecem é Catarina Eufémia, uma jovem ceifeira analfabeta mãe de três filhos, morta a tiro em 1954 pela GNR durante uma greve de assalariados rurais no Monte do Olival, uma pequena aldeia da freguesia do Baleizão, concelho de Beja. Catarina tornou-se um símbolo imortal de resistência ao regime fascista, bem aproveitado pelo Partido Comunista Português. O PCP é ainda o partido mais votado no distrito de Beja, onde todas as autarquias são comunistas.

O Alentejo, a quem o velho Salazar chegou a chamar “o celeiro de Portugal” é um mundo a descobrir. Aposta-se no ecoturismo, ainda que timidamente, mas bem. Ali a poluição é residual, o trânsito resume-se a estradas a perder de vista, rodeadas de campos loiros sem fim, pontilhados de arvoredo patusco, e o stress…qual stress? Compre um pão alentejano, um salpicão, uma litrada de tinto, saque do canivete e tem um dia inteiro para dar a volta a tudo isto. Sente-se a apreciar um dos poucos paraísos que ainda nos restam neste mundo tão agitado e desgastante. Escute com atenção os sofridos e apaixonados cantares alentejanos, e deixe-se embalar por estas gentes que não chegam a meio milhão e para quem a felicidade são as coisas simples da vida. É assim o nosso Alentejo, o mais bem guardado dos segredos.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Engraçadinha: Seus Amores e Pecados


A TDM tem passado de segunda a sexta a série brasileira "Engraçadinha: Seus Amores e Seus Pecados", entre as 22: 10 e as 23:00, com a chancela de qualidade da Rede Globo. A série é já bastante antiga, e foi transmitida no Brasil em Abril de 1995, mas isto não significa que esteja datada, antes pelo contrário. O argumento é da autoria de Nélson Rodrigues, jornalista e escritor falecido em 1980, que é considerado um dos maiores dramaturgos em língua portuguesa. A história da "Engraçadinha" é intemporal, foi contada pela primeira vez no romance "Asfalto Selvagem: Engraçadinha, Seus Amores e Seus Pecados", em 1959, e passou para o grande ecrã com o filme "Asfalto Selvagem", de 1964, com uma sequela dois anos depois intitulada "Engraçadinha depois dos 30". Em 1981 foi feito outro filme, "Engraçadinha", com Lucélia Santos no papel principal, e que lhe valeu o prémio de melhor actriz esse ano no Festival de Brasília.

A série de 18 episódios divide-se em duas partes distintas. A primeira no início dos anos 40, situada no estado nortenho do Espírito Santo, mostra-nos um Brasil ainda conservador, onde era difícil fugir aos rígidos padrões morais vigentes. É neste ambiente que conhecemos Engraçadinha (interpretada por Alessandra Negrini, conhecida em Macau pela novela "Paraíso Tropical", e que fazia aqui a sua estreia), a jovem filha do deputado conservador Arnaldo (Claúdio Corrêa e Castro), e noiva do aborrecido Zózimo (Pedro Paulo Rangel), amigo de seu pai. Engraçadinha é apaixonada pelo seu primo Sílvio (Ângelo Antônio), com quem cresceu, e que está noivo da sua melhor amiga Letícia (Maria Luísa Mendonça). Engraçadinha não se conforma com a sua sorte, e seduz Sílvio no dia do seu casamento com Letícia, atraindo-o para a biblioteca, onde expressam fisicamente o seu desejo durante tantos anos acumulado. Engraçadinha revela um lado líbido espantoso, uma capacidade sedutora única, fruto do lado humano e feminino que a sociedade em que vivia sempre oprimiu, mas que era mais forte que ela. Da relação casual, Engraçadinha engravida, para choque do seu pai, que havia guardado em segredo que os dois eram de facto irmãos. Para piorar as coisas, Letícia revela também que sempre se sentiu atraída pela amiga, e encontra na traição do noivo uma oportunidade para um eventual triângulo amoroso, coisa tida como impossível para as convenções da época. Sílvio não consegue lidar com a sua fraqueza, e decepa o próprio sexo, numa cena tanto trágica como gráfica. O deputado Arnaldo deixa-se consumir pela culpa, e suicida-se. Letícia fica sozinha, e Engraçadinha casa com Zózimo, entendendo o seu destino como um mal menor, perante a imensa tragédia que ela própria causou.

Passam-se dezassete anos, e encontramos uma Engraçadinha mais madura, e agora interpretada pela nossa conhecida Claúdia Raia, na altura no auge da sua carreira. Engraçadinha mudou-se para o Rio de Janeiro e converteu-se à Igreja Evangélica, e dedicou-se a educar os filhos de acordo com a sua fé. O neo-conservadorismo de Engraçadinha leva-a ao ponto de coabitar com o marido Zózimo sem que deixe este vê-la sem roupa (só faziam amor com a luz apagada). Uma tortura para o marido, pois o corpo da sua mulher é, como sempre foi, escultural. Zózimo é um homem resignado ao facto de que a mulher não o ama realmente, e que não lhe consegue proporcionar prazer sexual, mas satisfaz-se com o simples sentimento de propriedade. A filha de Engraçadinha, Silene (Mylla Christie, sardenta, lindíssima), herdou o líbido da mãe, para desgosto desta, e não tem qualquer pudor em entregar-se a paixões passageiras com jovens da sua idade. Apesar da sua maturidade e mudança de valores, Engraçadinha continua a atraír os homens, nomeadamente o juíz Odorico Quintela (Paulo Betti, num papel deliciosamente cómico) e Luis Claúdio (Alexandre Borges), que leva Engraçadinha a despertar o seu lado sensual e selvagem, entretanto reprimido. Entretanto Letícia reentra em cena, mais velha e assumidamente lésbica, e decidida a retirar de Silene o prazer que lhe foi negado pela sua mãe, Engraçadinha. A descrição do Rio de Janeiro do início dos anos 60 é excelsa, e transmite bem a mudança de valores e a entrada na modernidade que se verificava no Brasil daquele tempo. Existe um argumento paralelo, o drama do jovem Leleco (Caio Junqueira), que assassina o amigo Cadelão (Luiz Maçãs, actor que viria a morrer em 1996 aos 32 anos, alegadamente de anorexia nervosa) depois deste o ter tentado violar. É caso para dizer que todas as valências da sexualidade estão presentes neste enredo.

Confesso que não conhecia esta história de ficção fantástica, e foi por acaso que comecei a seguir a série. É uma produção bastante audaz, como nos têm habituado tantas séries brasileiras, mas que aqui "corre a galope" sem qualquer tipo de preconceito, qual Lady Godiva. Temos o líbido, a sensualidade, a paixão carnal e a nudez tratados de forma directa e sem rodeios, com interpretações e diálogos a condizer. Agrada-me especialmente a forma como nos é dado a conhecer o monólogo interior dos personagens, aquilo que estão a pensar. Surpreendeu-me a qualidade mas não a natureza do argumento, não fosse o próprio Nélson Rodrigues um autor orgulhosamente "brasileiro"; o homem que um dia disse que "A Europa é uma burrice aparelhada de museus". A sua audácia é tenaz, pois apesar de ter nascido em 1912, defendia que "Todo tímido é candidato a um crime sexual". Um homem muito à frente do seu tempo, que lia bem a natureza humana e oferecia-nos o sensual e o erótico sem cair no facilitismo da libertinagem. Se não tem seguido as aventuras da Engraçadinha, tenho imensa pena, pois foi uma das surpresas mais agradáveis com que a TDM nos presenteou recentemente. Mas ainda vai a tempo de apanhar o final, e garanto que não se vai arrepender. Em todo o caso pode adquirir o DVD da série completa na Amazon, e aqui fica o link: http://www.amazon.com/Engracadinha-Seus-Amores-Pecados/dp/B000I0SHMK/ref=sr_1_1?ie=UTF8&qid=1356721104&sr=8-1&keywords=engra%C3%A7adinha . Não precisam de agradecer...

De água na boca


Artigo publicado na edição de ontem do Hoje Macau.

A época festiva que agora passamos e o tempo frio em geral é a ruína de qualquer dieta. A maioria das pessoas ganha peso no período do Natal e do Ano Novo, uns mais, outros menos, mas já que é “para a desgraça”, é bom saber onde se pode encontrar onde comer, e já agora usufruir de uma experiência gastronómica para mais tarde recordar. Em Macau não encontramos a variedade de restaurantes que existe na vizinha Hong Kong. Faltam-nos a cozinha árabe, russa, grega, turca ou africana. E até o rodízio brasileiro foi chão que já deu uvas. Mesmo assim no território conseguimos, com alguma boa vontade, encontrar uma pequena Babilónia de sabores. Hotéis caros à parte, podemos surpreender-nos com a oferta que obedece ao princípio dos três “B”: bom, bonito e barato. Tentarei com muito esforço não fazer muita publicidade gratuita.
Da cozinha ocidental podemos muito facilmente provar a excelente cozinha italiana, muito graças a uma célebre família que emigrou para o território há várias décadas, e que monopolizou as pastas, ‘linguinis’ e ‘tortelinis’, e até as pizzas, antes da chegada do famigerado Pizza Hut. São pelo menos três os restaurantes da família Acconci, dos quais destaco aquele mais pequenote, na Travessa de S. Domingos, para mim o mais castiço. Mas já que estamos em Macau, a comida portuguesa merece uma nota de destaque. Os restaurantes que servem a genuína cozinha lusa são raros, e convém não ser muito exigente, mas muitos esforçam-se, servindo os nossos típicos refogados, assados e caldeiradas. Somos o povo da Ásia que espreme a azeitona, que frita o alho e a cebola, que usa e abusa do molho de tomate. O nosso querido bacalhau está presente, nem que seja na forma do local “arroz frito de bacalhau”, ou “Ma Ka Iao Chau Fan”, uma forma menos agressiva de apresentar o fiel amigo aos chineses do que o complexo bacalhau com natas, por exemplo.
A culinária macaense, um mundo de sabores diversos a descobrir, está infelizmente cada vez menos representada. O restaurante Riquexó sobreviveu graças à pressão dos seus irredutíveis clientes, mas além deste só existe um outro restaurante que serve a genuína cozinha local, com sede na Av. Almirante Sérgio e mais duas sucursais na Taipa. A cozinha macaense é única do mundo, pois sendo idêntica à portuguesa na forma e no estilo, utiliza ingredientes locais, como sejam o caril, o balichão, o gengibre, o sutate (ou molho de soja), o cebolinho, o tamarindo, o chouriço e o presunto chinês, o leite de côco ou a jagra. Muitas das receitas vão-se perdendo de geração para geração, o que nos deixa muito pessimistas quanto à continuidade deste riquíssimo pote de sabores.
Mas já que estamos mesmo no maior continente do mundo, importa descobrir a maravilhosa comida asiática. Não sou grande adepto da cozinha chinesa, nomeadamente a da região de Cantão, a mais popular no território. A diversidade é indiscutível, mas aborrece-me a predominância das massas fritas, das sopas de fitas e dos “van tan”, coisas a pingar ou fritas com um óleo sabe-se lá de que idade, ou a sempre-mesmice dos pratos de arroz-com-qualquer-coisa. Além disso quem já provou os “yum-cha” ou os jantares chineses sabe que a vertente do sabor depende bastante do uso do glutamato monossódico, ou “mei cheng” (味精), um composto químico que é capaz de tornar uma simples caçarola de água a ferver numa deliciosa sopa. Artificialmente, é claro.
No que diz respeito à cozinha asiática em geral, segue-se muito a filosofia presente numa popular expressão em chinês: “tim sün fu lat”(甜酸苦辣), literalmente “doce, ácido, amargo e picante”, que são no fundo todos os sabores que a vida deve ter. A cozinha tailandesa é um bom exemplo disso; gosto especialmente de um prato de massa com caldo, bife e rebentos de soja onde se junta malagueta, vinagre e no fim um pacote de açúcar – um pitéu que inclui todos estes “sabores da vida”. Quando cheguei a Macau existia uma miríade de restaurantes tailandeses, de que hoje restam apenas alguns resistentes. Mesmo assim basta passar por algumas lojas da Rua Abreu Nunes e arredores e descobrir os mil e um sabores da culinária do país dos sorrisos, e ficar encantado com ervas, legumes e especiarias únicos. É nas lojas tailandesas que encontro a hortelã que me ajuda dar sabor ao borrego mais agressivo, ou a acicatar um banal chá de menta.
Além da comida tailandesa, temos ainda a birmanesa, que se pode provar em várias tasquinhas da Rotunda Carlos da Maia, vulgo “três candeeiros”, onde reside uma grande parte da comunidade deste país hoje conhecido por Myanmar. A especialidade é um prato de massas com galinha, caril e leite de côco, misturado com o magnífico balichão birmanês, que se pode encontrar facilmente (e felizmente) em muitos supermercados de Macau. A comida indonésia tem também o seu encanto no despertar dos sentidos, deliciosamente adstringente. Existe um conhecido restaurante na Estrada Coelho do Amaral, propriedade de ex-emigrantes chineses naquele país do sudeste asiático, e portanto mais adaptado ao gosto local. A mais tradicional pode-se encontrar algures entre a Rua dos Mercadores e o Porto Interior, escondida entre becos e travessas, mas ainda assim a melhor comida indonésia come-se em festas privadas organizadas por imigrantes, onde se pode provar o autêntico “nasi goreng” ou delicioso “randang”.
A comida filipina foi um parente pobre no território durante anos, apesar desta ser uma das maiores comunidades aqui residentes. Depois de várias tentativas frustradas, existe hoje um restaurante filipino em condições, perto do Hospital Kiang Wu, onde se podem provar os sabores do exótico arquipélago. A comida filipina é uma espécie de “prima” da comida mexicana, e aproxima-se muito da nossa em alguns aspectos. Têm a caldeirada, que chamam “kaldereta”, a jardineira, que chamam “menudo”, e até o pudim flan, que chamam de “leche flan”. Existe ainda perto do mercado da Mitra uma pequena cantina onde se pode comprar uma caixa de arroz com dois pratos filipinos à escolha pela modesta quantia de 18 patacas. Onde mais se almoça por tão pouco?
Para o fim deixei a minha preferida, a comida indiana. Há muitos anos existia na Rua Fernão Mendes Pinto um excelente restaurante, cujo proprietário penso ser o mesmo do actual espaço na Nova Taipa. Este é sem dúvida o melhor restaurante indiano em Macau, mas felizmente existem outros. A gastronomia deste país é riquíssima, sempre com muito por descobrir, pois tal como na China, cada estado da União Indiana tem a sua própria gastronomia. Além do caril, com a presença da saudável curcuma, temos o sabor de outras ervas aromáticas, do aniz, do cardamomo e outros ingredientes mágicos, que garantem uma experiência única. Isto para não falar do pão, e especialmente do arroz, da variedade basmati, o arroz com mais fragrância e delicioso do mundo. E quanto a ele se juntam frutas, passas, pistáchios, cajus e cravinho, ingredientes do “pulao” de Caxemira, temos uma experiência inesquecível.
No que diz respeito aos restaurantes, Macau está muito bem servido. Temos uma variedade invejável que nos deixam sem desculpa para nos queixarmos da monotonia. Basta saber procurar, deixar-nos guiar pelos sentidos e ter a audácia de entrar onde nos parece que se come bem. Somos com toda a certeza bem recebidos. E depois da época festiva, e já de barriga cheia, é então altura de pensar em eliminar aqueles quilinhos a mais. Entretanto, siga a festa na Macau dos mil sabores.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Vão morrer, telefonar e viver longe!


1) Uma reportagem no JTM de hoje dava conta da falta de enfermeiros, médicos e camas no sistema de saúde local. Segundo o relatório da OCDE, Macau tem menos de um terço de enfermeiros que a média da região da Ásia/Pacífico, apenas 2,4 médicos por mil habitantes, e apenas duas camas. A população cresceu em mais de 20% nos últimos dez anos, e o único investimento feito foi no sector privado, que enche a barriga aos mesmos de sempre, que mesmo assim sabem onde podem ir quando precisam de tratar da saúde: aqui ao lado em Hong Kong, onde não se brinca. Quem não pode e fica entregue ao sistema de saúde da RAEM joga roleta russa. O tal novo hospital público que resolva a asfixia do Conde S. Januário está eternamente adiado, e a melhor solução parece ser mesmo a prevenção. Olhe, não fume, coma fibras e agaselhe-se que estes dias está frio. Ou então vá morrer para longe.

2) Mais um apagão na rede de serviço móvel da CTM, ontem entre as 19:00 e as 19:30, afectando milhares de clientes da rede 3G. Curiosamente os clientes da banda-larga e da rede 2G - a tal que está ultrapassada e vai ser substituída - não foram afectados. Estou a pensar em mudar para a rede 2G, pois parece-me mais fiável e uma opção com futuro. A CTM já explicou que foi uma avaria do sistema de software, que recomeçou o servidor e blá blá blá as habituais desculpas de mau pagador. Por acaso dei pela falha, apesar de não ter ficado especialmente prejudicado, mas lá vai continuando a palhaçada sem que ninguém faça nada de definitivo para que situações deste tipo não se repitam com esta frequência. A DSRT pede o relatório, faz recomendações, e se calhar multa a concessionária m centenas de milhares de patacas (dinheiro que recuperam em poucas horas ou nem isso). O fim do monopólio que levasse as concessionárias a oferecer serviços de qualidade a preços competitivos é que nem pensar. São os brandos costumes e os ditames dos "sectores tradicionais", doa a quem doer.

3) Enquanto se distribuem os T1, T2 e T3 lá para Seac Pai Van, na longínqua ilha de Coloane, soa o alarme com a queda de azulejos noutro projecto de habitação económica, no Mong-Há, construído apenas há dois anos. Pois é meus meninos, querem o quê? Com o preço do metro quadrado e a trabalheira que dá a açambarcar terrenos e a roubar, quer dizer, obter as concessões, queriam habitação em condições sem desembolsar cinco milhões pelo menos? Se não tiverem pilim há sempre uns pangyaos ali do outro lado da fronteira que não se importam de pagar. Por isso, refilem menos, não se admirem se levarem com tijolos e porcelana na tola, e...casota!

Boxing day recheado de golos


Enquanto no resto da Europa se digere ainda o perú, na Inglaterra cumpriu-se mais uma jornada da Premier League, o clássico "boxing day". E pelo menos em Old Trafford não se notou a típica letargia da quadra, com o Manchester United a bater o Newcastle por 4-3 num jogo impróprio para cardíacos. Os "reds" estiveram sempre em desvantagem, e garantiram os três pontos apenas no último minuto, com um golo do mexicano Javi Hernandez. O ManU lidera agora com mais sete pontos que os seus rivais do City.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Tecnologia (evoluíu à brava)


Vejo cada vez mais gente na televisão a dizer com um ar muito nostálgico “que se lembra do tempo em que não existiam telemóveis”. Ora porra, isso também eu, e vou-me sentindo velho, até porque não foi assim há tanto tempo. Piora ainda quando isto vem de pessoas que até são uns anitos mais novas que eu. Isto é malta que não tinha telemóvel quando era bebé de colo e tem uma excelente memória, só isso. Meus amigos, há 20 anos ninguém tinha telemóvel. Não é a mesma coisa que um velho de 80 anos dizer que se lembra de quando não havia televisão.

E foi assim mesmo; não existiam telemóveis, cresci sem eles e nem por isso desapareci, perdi-me, faltei a compromissos ou senti isolamento. Quando precisava de ligar para alguém de fora de casa usava um telefone público, ligava de um café ou da casa de um amigo. Emergências? Naquele tempo o número era o 115, agora é o 112 e o serviço existe desde que me lembro. As pessoas respeitavam os compromissos, mais ou menos, ou pelo menos mais que hoje. Se alguém se atrasava, paciência, era só esperar. Desconfio que hoje em dia as pessoas preocupam-se menos em chegar atrasadas porque têm o telemóvel e podem avisar, ou esperar que lhes liguem.

Também não existia internet, ou pelo menos não estava ao alcance do cidadão comum, e mesmo assim as pessoas informavam-se. Iam à biblioteca, um antepassado do Wikipedia, e liam jornais, os mesmos que se podem ler agora online, mas apenas na versão em papel. Tinha as suas vantagens; imaginem que estão na casa-de-banho a ler o jornal no vosso iPad e descobrem que não há papel higiénico. O jornal em papel resolvia o problema, enquanto com o iPad é mais complicado. O Telejornal ainda dava notícias em primeira mão, e era preciso esperar às vezes um dia para saber os resultados do futebol. Não existiam chatrooms nem Facebook, mas mesmo assim as pessoas encontravam-se, conheciam-se, namoravam e casavam. Parece incrível, mas é verdade. Para a maior parte dos jovens de hoje com 15 anos ou menos isto era a “idade das trevas”.

Se alguém me dissesse em 1992 que vinte anos depois existiriam telefones sem fio que cabiam num bolso, tiravam fotografias, davam acesso à internet e faziam mil e uma coisas, dizia que estava tudo maluco. Eu e toda a gente desse tempo, claro. É que nem nos filmes do James Bond existia tecnologia semelhante. Bem, o 007 falava num relógio de pulso que era também telefone, mas isso era parvoíce. Aliás uma simples pen-drive onde podemos armazenar milhares de documentos, músicas e fotografias já é tecnologia suficiente para aniquilar qualquer engenhoca do James Bond. Mesmo um ecrã LCD ou plasma era impensável naquele tempo. Onde é que se punham as válvulas e aquilo tudo?

Nos anos 80, de que me recordo com uma saudade ingénua (porque a vida agora é melhor) tinhamos uns conceitos muito peculiares sobre o futuro próximo. O ano 2000 era uma espécie de meta, e da perspectiva dos anos 80 era um ano em que a tecnologia ia ser…bem…igual, mas melhorada. Quer dizer, ninguém imaginava os telemóveis, a internet, os DVD (mesmo os CD’s eram uma novidade) e tudo isso que hoje é tão banal. Existia uma banda punk inglesa “futurista”, os Sigue Sigue Sputnik, que dizia que no futuro passava pelo video, stereo eo sci-fi sex, e que “a revolução ia ser televisionada”. Olhando para eles hoje dá vontade de rir. Chegávamos a imaginar que no ano 2000 o panorama musical seria dominado por indivíduos com electrodos espetados no cérebro que faziam música maluca. Nunca nos passaria pela cabeça que o single mais vendido no início desse ano redondo seria dos Westlife. Tinhamos uma paranóia engraçada com robôs japoneses, que viriam alegadamente a substituir o homem e dominar o mundo, e faziam-se filmes onde computadores futuristas do tamanho de um prédio de cinco andares ameaçavam destruir a humanidade. Hoje em dia uma simples Bimbi num canto de cozinha é mais inteligente que qualquer um desses robôs japoneses, e pasme-se, há computadores do tamanho de um livro mais potentes que aquele colosso do “War Games”. Quem diria…

Mas duma coisa podem ter a certeza jovens: ninguém esperava que a tecnologia evoluísse até este ponto em que hoje nos encontramos. Tivemos mais progressos nos últimos 20 anos do que nos 50 anteriores a esses. Uma das teorias que explica esse enorme avanço foi o fim da Guerra Fria (uma coisa do nosso tempo, deixem lá). Assim muita tecnologia deixou de fazer sentido para o uso militar, e ficou ao alcance do cidadão comum. E claro, ainda dá para lucrar com isso. Mas pronto, não passou assim tanto tempo. O que se passa é que aconteceu tudo muito depressa. Mas não caiam na tentação de perguntar aos vossos pais como conseguiam viver “naquela época”. Arriscam-se a ver a pergunta a ser-vos feita um dia mais tarde, pelos vossos filhos. E olhem que isso custa.

Os filmes deste Natal


Aproveitei estas curtas férias de Natal para ver e rever alguns filmes (always watch good moves…), e do que passou pelo meu pequeno cinematógrafo caseiro, destaco dois títulos, que apesar de caberem na definição de “rever” acima mencionada, foram mesmo assim uma experiência deliciosa. Especialmente porque os revi na companhia de quem assistia pela primeira vez a estas obras-primas.

O primeiro foi “Ai no corrida”, filme japonês de 1976 realizado por Nagisa Oshima. Uma co-produção francesa, o que ajudou à promoção internacional da película. O título do filme traduz-se literalmente para “Tourada”, mas o título internacional e competentemente traduzido para português ficou “O Império dos Sentidos”. Este excelente filme, um dos melhores que já vi, causou uma enorme polémica em finais de 1991 em Portugal quando foi transmitido pela RTP2 numa sexta-feira à noite. A polémica deveu-se à natureza primariamente pornográfica do filme, que contém cenas de sexo explícito durante grande parte do seu tempo – para não dizer a totalidade. O filme, contudo, não recebeu a classificação de “pornográfico” e foi distribuído no circuito “normal”, tornando-se exibível no pequeno ecrã. Apesar da natureza das imagens que ultrapassam o simples erotismo durante os 108 minutos de duração, o filme conta uma história fascinante de amor, paixão, ciúme, traição, e em última instância obsessão e ódio, com um desfecho sangrento a condizer. É complicado perceber tudo isto num filme em que “há foda do princípio ao fim”, usando uma linguagem popular que pode muito bem servir de crítica cinematográfica instantânea. Mas o filme não é para crianças, e um adulto normal terá a maturidade suficiente para reagir de a cenas de intimidade entre seres humanos com naturalidade. Além do mais, o filme transmite mais do que a simples vertente erótica; algumas imagens de exteriores transmitem uma imagem industrializada do Japão dos tempos da Guerra do Pacífico, quando era já a maior potência asiática. O fio condutor do enredo não é uma desculpa para a badalhoquice, como se pode concluir de uma observação menos cuidada. A natureza alegadamente pornográfica faz parte da visão de Oshima, que é um realizador respeitável e aclamado com uma filmografia extensiva. O filme, situado em 1936, é inspirado num episódio verídico que chocou o Japão nos anos 30. Uma ex-prostituta, Sada, emprega-se num hotel, cujo proprietário é Kichizo, um homem casado, mas mesmo assim um boémio que não dispensa de quando em vez a visita de uma geisha, uma atitude tida como normal na sociedadade patriarcal japonesa. Kichizo abusa sexualmente de Sada, que gosta da experiência, e consequentemente inicia com ela uma relação extra-conjugal que vai além da mera expressão física, que temos oportunidade de testemunhar várias vezes e em diferentes tons numa intensidade crescente. Apaixonam-se um pelo outro, e Sada torna-se obcecada com o amante, ambicionando o uso exclusivo do seu sexo, que idolatra ao ponto de se desvalorizar o facto que se trata apenas de uma extensão do homem. O filme decorre numa espiral de luxúria, à medida que os amantes vão encontrando formas variadas de alimentar o fogo da paixão, e maximizar o prazer, recorrendo ao sado-masoquismo e outros expedientes menos ortodoxos. Não vou dizer como acaba o filme, se bem que muitos dos leitores já conhecem o desfecho, mesmo que através de outrem. Não sei quem foi o génio que decidiu passar este filme na RTP2 naquela noite de sexta-feira (infelizmente não aproveitei essa oportunidade, que me passou ao lado), mas esqueceu-se que vivia na Parvónia, onde os indígenas não estavam preparados para um filme “chinês” (era o que se ouvia nos dias que se seguiram ao “escândalo”) tão atrevido para as convenções da época. Pouco importa que os filmes porno “hardcore” fossem dos mais requisitados nos clubes de video naquele tempo, mas esta era uma ousadia que o canal público de televisão não estava habilitado a cometer. O bispo de Bragança diz que “aprendeu mais numa hora do que durante a vida toda”. O sr. bispo viu o filme “por acaso”, apesar de ter passado já depois da meia-noite e no canal alternativo da televisão pública, e se calhar até gravou, como “prova” do sacrilégio, entenda-se. Pensavam o quê?

Outro filme que revi na mesma noite foi “A Guerra do Fogo”, de 1981, do francês Jean Jacques-Annaud, um dos poucos realizadores franceses de que gosto especialmente. Vi este filme pela primeira vez durante uma aula de História “fora de horas”, e graças à iniciativa do prof. Francisco Lopes, o melhor professor que alguma vez conheci e que tive a singular honra de ser aluno. O filme é uma excelsa transposição para o celulóide da obra homónima de dois irmãos belgas, Joseph Henry e Seraphin Justin Boex, que escreveram no início do século passado várias obras de ficção histórica tendo como temas a natureza e a pré-história. E é exactamente nos tempos pré-históricos que decorre a acção de “A Guerra do Fogo”, mais precisamente há 80 mil anos, no período do Paleolítico. Como o nome indica, o filme conta as aventuras de um grupo de antepassados do Homem actual e a sua luta pelo bem mais precioso daqueles tempos remotos: o fogo. A obtenção do fogo e o conhecimento de como fabricá-lo podia fazer toda a diferença naquelas sociedades nómadas, e era um símbolo do poder. O fogo tinha o dom de aquecer, de cozinhar os alimentos, de tornar a vida muito mais fácil. Os três personagens que partem à procura do fogo encontram inúmeros obstáculos, desde tribos hostis, armadilhas naturais e animais ferozes. O realismo do trabalho de Annaud leva a que não existam diálogos durante os 100 minutos de duração do filme. Os personagens comunicam por sons rudimentares e por gestos, e a interpretação é soberba. Everett McGill, Ron Pearlman (mais conhecido pelo seu papel principal em “Hellboy”) e a lindíssima Rae Dawn Cheong estão irreconhecíveis debaixo da caracterização que os leva vários degraus abaixo na escala da evolução. Não foi surpresa para ninguém que tenha recebido o reconhecimento da academia na categoria de melhor maquilhagem na edição de 1983 dos Oscares. “A Guerra do Fogo”, apesar da sua temática paradoxal – é talvez o melhor filme sério sobre o Paleolítico, e também o único – devia pertencer a todas as listas de filmes indispensáveis. É uma experiência única, e nem o facto de exibir comportamentos animalescos e violentos, nudez e mesmo algum sexo e canibalismo, devia impedir os mais novos de visioná-lo, e com isso aprender. É bastante educativo, e qualquer jovem com mais de 12 anos não deve ter problemas em assimilar o seu conteúdo.

E o que achou a minha companheira desta sessão dupla de filmes a que teve a oportunidade de assistir pela primeira vez? Adorou. Por todos os motivos acima referidos e mais alguns. É sempre bom assistir a cinema de qualidade, especialmente se o fizermos em boa companhia.

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

O mistério da Natividade (e mais)


Comemora-se hoje o Natal, e o mundo cristão celebra mais uma vez o nascimento do seu Messias, Jesus Cristo. Antes de mais nada, um Feliz Natal para todos, e continuação de boas festas, que na tradição católica só terão o seu fim no próximo dia 6, Dia de Reis. São mais doze dias até ao final desta quadra, e esperam-nos depois mais dois meses e meio de Inverno, até que a natureza cumpra mais uma vez o seu ciclo e se renove, brindando-nos com as suas novas flores e frutos, uma nova vida, cuja semente por enquanto hiberna.

Mas falemos deste dia, 25 de Dezembro, em que se comemora Santa Anastácia de Sirmium, grande mártir das poções, e o “aniversário” de Jesus Cristo, o Salvador, filho de Deus, o feriado mais importante do calendário católico. O mistério da Natividade é um tema fascinante. Apesar de se assinalar o nascimento de Cristo, é um dado adquirido que não terá sido exactamente nesta data que nasceu o Messias. Teólogos e académicos não têm uma data concreta para o seu nascimento, que terá ocorrido “no Inverno”, e “depois do solstício”, que ocorreu há cinco dias. Recentemente o Papa Bento XVI anunciou que o burro e a vaca que figuram do Presépio “não teriam estado presentes no nascimento de Cristo”, uma afirmação baseada alegadamente numa conclusão pessoal que foi recebida com uma certa dose de humor. Já lá vamos. Mas existem outras dúvidas a respeito da Natividade, além da presença dos dois animais, que geram discussão e não reúnem consenso.

A fé cristã acredita que Jesus era filho de Deus, foi concebido sem pecado no ventre da sua mãe Maria, criado por esta e pelo seu marido José da Arimateia, seu pai adoptivo. Segundo o evangelho de Lucas no Novo Testamento, Maria, uma judia da tribo dos israelitas, recebeu a visita do arcanjo Gabriel anunciando tinha sido escolhida para ser mãe do filho de Deus, e que o chamaria de “Jesus”, devendo aguardar a visita do Espírito Santo, que a “cobriria com a sombra do altissimo”. E assim foi feita a Sua vontade. José, ao saber que sua mulher Maria estava grávida “sem que nunca tenham coabitado”, deixou-a em segredo, pois o castigo destinado às mulheres adúlteras era a lapidação. Foi aí que um anjo o visitou em sonho, anunciando o plano divino, e tudo voltou a ser como antes. Em vésperas de Maria dar à luz, o imperador César Augusto decretou um recenseamento na Judeia romana, e José levou a família à sua terra natal, Belém, para esse efeito.

Enquanto lá estava, Maria deu à luz, e por falta de lugar na hospedaria onde tinham ficado, o recém-nascido foi colocado na manjedoura de um estábulo ou gruta ali próxima. Um anjo anunciou a boa nova a um grupo de pastores que guardavam os rebanhos durante a noite nos campos próximos de Belém: nasceu o Salvador. Uma milícia celestial surgiu nos céus cantando louvores a Deus e ao menino Seu filho, e os pastores ocorreram ao estábulo ou gruta onde estava o menino deitado na manjedoura, para o adorar. Oito dias depois, Jesus foi apresentado ao Templo em Jerusalém e circuncisado de acordo com a tradição judaica, e foram sacrificados dois pombos e duas rolas para assinalar a apresentação do primogénito de Maria. Esta é a descrição da Natividade dada pelo segundo livro de Lucas.

No evangelho de Mateus faz-se referência aos sábios zoroastras que chegaram a Jerusalém vindos “de terras do Oriente” – mais precisamente da Pérsia, berço do zoroastrismo. Eram supostamente astrólogos, leram nas estrelas o nascimento do Salvador, e vinham adorá-lo. Muitas versões mais conhecidas defendem que “três reis magos vieram presentear e adorar o recém-nascido”. É um facto que o presentearam com ouro, incenso e mirra, mas nunca é feita nenhuma referência de que seriam reis, ou sequer três – essa asserção é derivada do número de presentes. Nem sequer terão conseguido chegar de camelo da Pérsia (actual Irão) a Belém (Israel) no mesmo dia que leram sobre o nascimento de Jesus nas estrelas. Mateus diz-nos que os sábios “procuravam o menino que acabara de nascer”, mas isto poderá ter decorrido semanas depois do nascimento. A data que o calendário civil assinala é 6 de Janeiro, doze dias depois da Natividade, como já referi, mas poderá ter sido outra. A tradição diz que se chamavam Gaspar, Baltasar e Melchior, mas a Bíblia não faz qualquer menção dos seus nomes.

O presépio clássico é a representação por excelência da Natividade, e tenta recriar uma imagem dos primeiros momentos da vida de Jesus. O primeiro presépio de que se tem conhecimento foi montado por S. Francisco de Assis no Natal de 1223, e feito em argila. Durante o Renascimento os Presépios chegavam a ter mais de cem figuras (!?), mas os convencionais são compostos por Maria, José, a vaca, o burro, os “reis magos”, a estrela de Belém que os teria guiado, colocada no topo da gruta ou estábulo onde Jesus se encontra, na manjedoura, deitado sobre as palhas. É comum aparecerem alguns personagens secundários: os pastores que vieram adorar o menino, e o anjo (ou mais anjos) que lhes anunciou a boa nova, mais um outro cão que guardava os rebanhos, uma ou mais ovelhas, todos elementos facultativos desta composição.

Muito pouco do que compõe esta imagem pode ser comprovado. Como já referi, é improvável que os sábios (que aparecem coroados nos presépios, o que explica que se pense que eram de facto reis) estivessem ali na mesma altura que os pastores. É verdade que a manjedoura é referida no evangelho, mas não é garantido que Jesus fora deitado nas palhas – não faz muito sentido que um recém-nascido e filho de Deus fosse negligenciado desse jeito. O provável é que tivesse sido improvisado um leito feito de estopa, como era costume na época. Também não é credível que Maria tenha dado à luz no estábulo ou na gruta onde Jesus se encontrava quando foi visitado, e desconhece-se quem a poderá ter assistido no parto – é difícil de acreditar que tenha feito tudo sozinha, ou apenas com a ajuda do marido. A vaca e o burro poderão mesmo estar ali a mais, como defende o Papa; apesar de se tratar de um lugar destinado a guardar animais, não significa que estivesse ali algum naquele dia. A vaca e o burro poderão ter sido adicionados para sublinhar a origem humilde de Jesus, que “nasceu entre os animais, e não num palácio!”, como li algures durante a pesquisa que fiz sobre este tema. A estrela tem uma componente simbólica, pois não estaria ali parada a posar para a fotografia. Quanto aos anjos, bem, isso acredita quem quiser. Como estou a fazer um esforço para tentar compôr de forma mais aproximada possível um cenário realista, assumindo que Jesus nasceu nestas circunstâncias, então deixo os anjinhos de fora. Desculpem lá.

Mas recuando um pouco até à Imaculada Conceição. Esta boa nova é anunciada a Maria pelo Arcanjo Gabriel, um personagem misterioso que também havia anunciado a Ezequias e Isabel que seriam abençoados com um filho, que viria a ser o nosso conhecido S. João Baptista. Segundo a Bíblia hebraica, no livro de Daniel, o mesmo Gabriel havia sido enviado por Deus a este profeta durante o cativeiro dos judeus na Babilónia, para interpreter os seus sonhos. Mas Daniel não se refere a ele como um anjo, mas como “o homem Gabriel”. Ainda na mesma escritura é referido no livro de Ezequiel como “o anjo da morte” enviado para destruir Jerusalém, e é ainda mencionado no Talmude e na Cabala, outros dois livros sagrados da religião judaica. A Igreja de Jesus Cristo e os Santos dos Últimos Dias, vulgo “mormon”, acredita que Gabriel terá vivido uma vida mortal como…Noé. Sim, o profeta da famosa arca. Mas é no Islão que este mensageiro predilecto de Deus leva a cabo a sua tarefa mais épica, ao anunciar durante 23 dias o Alcorão ao profeta Maomé. Este arcanjo Gabriel é portanto comum às três principais religiões abraãmicas que têm em Jerusalém a sua cidade santa: judaismo, cristianismo e islamismo. Perdoem a minha ignorância típica dos não-crentes, mas não consigo entender que o mesmo Deus, o Deus único, mande o mesmo mensageiro anunciar a Maria a vinda do futuro Messias cristão, e depois ditar a Maomé os preceitos da fé islâmica. Não sendo eu um estudioso da teologia, fico à espera que alguém me apresente uma explicação, em vez de se limitar a relembrar a minha brutal ignorância, que já assumi. Não acredito que alguma religião esteja “mais certa” que as restantes, mas vamos supôr que Deus existe mesmo. Qual é a Sua motivação para esta falta de coerência, que divide quem Nele acredita e lança a confusão? Faz parte do Seu plano que não exista uma religião unificada? Mas pronto, esta é uma pergunta que vai ficar sem resposta, pelo menos para mim.

É um dado adquirido que Jesus Cristo existiu, que foi carpinteiro judeu na Galileia, baptizado por João Baptista no rio Jordão, altura que deu início ao seu ministério, por volta dos 30 anos de idade, e crucificado em Jerusalém por ordem do Governador romano Pôncio Pilatos, que o considerava um “agitador perigoso”. Existem algumas dúvidas sobre o ano exacto do nascimento e da morte de Jesus, e só se pode afirmar com toda a certeza que terá vivido entre 28 e 34 anos. O que se consegue provar do Jesus histórico é mais do que se sabe ao certo do Jesus divino. Além da concepção imaculada pelo Espírito Santo, a Igreja acredita ainda que Jesus possuía poderes sobrenaturais conferidos pela sua ascendência divina; curava os cegos, leprosos e demais enfermos pela simples imposição de mãos, realizava milagres, andava sobre as águas, e após um penoso martírio em nome da expiação dos pecados do mundo, ressuscitou três dias depois da sua morte, tendo subido aos céus, onde hoje se encontra à direita do Pai. Do pai original, ou seja, de Deus. Estas crenças são fundamentadas pelos evangelhos, onde o próprio Jesus Cristo transmite na primeira pessoa alguns dos ensinamentos da doutrina que fundou e que recebeu o seu nome, a cristã. Estes são os dogmas da Igreja, e como agnóstico não me compete refutá-los nem duvidar da sua legitimidade. Pode ser verdade, é possível. Mas não se consegue provar, nem afirmar como sendo uma verdade acima de qualquer suspeita.

E falando de suspeitas, as próprias incidências da vida de Cristo e o seu lado divino encontram paralelo noutras divindades anteriores a ele. O deus Horus, da mitologia egípcia e adorado há 4500 anos, foi concebido pela deusa Ibis, uma virgem, realizava milagres, curava os doentes, restituia a visão aos cegos, caminhava sobre as águas, foi martirizado, desceu aos infernos de onde ressuscitou três dias depois e ascendeu aos céus. Coincidência? Átis de Frígia, da mitologia grega, terá vivido há 3200 anos, concebido também por uma virgem, e nascido a 25 de Dezembro. O seu corpo era feito de pão que era comido pelos seus seguidores. Foi crucificado numa árvore a uma sexta-feira, e o sangue que derramou redimiu o mundo dos seus males. Rescuscitou três dias depois. Parece familiar? Um exemplo mais distante: o deus hindu Krishna, concebido de forma assexuada através de “transmissão mental”. À semelhança de Jesus, era humano, curava os doentes, incluíndo leprosos, ressuscitava os mortos, tinha discípulos com quem realizou uma última ceia antes de ter sido crucificado e posteriormente ressuscitado. Krishna era uma divindade já adorada na Índia quatro séculos antes do nascimento de Cristo. Zaratustra, ou Zoroastro, profeta persa que viveu à 6 mil anos, foi concebido “por um raio de razão celestial”, foi baptizado num rio, devolvia a visão aos cegos, pregou sobre conceitos como o céu e o inferno, e mistérios como a ressurreição, o julgamento final e o apocalipse. Os seguidores do zoroastrismo – onde se incluíam os tais sábios que visitaram Jesus – acreditam no retorno do seu profeta daqui a 300 anos. Isto são todos factos facilmente verificáveis. É lógico que pertencendo algumas destas divindades à esfera da mitologia, é normal que a sua génese e existência sejam marcadas por relatos fantásticos e personagens antropomórficas, mas todos os elementos estão presentes de um forma ou outra: ascendência divina, concepção imaculada, poderes sobrenaturais, martírio, ressurreição e ascensão. Isto não significa necessariamente que a doutrina cristã ou os seus dogmas são baseados em falsidades ou não passam de um plágio; significa apenas que o lado divino de Jesus se encaixava na definição do divino daquele tempo: características próprias dos deuses, que os diferenciavam dos restantes mortais.

Não há dia mais indicado que um dia santo para discutir religião. Aliás qualquer dia é um bom dia para que se procurem esclarecer dúvidas e tentar encontrar respostas. Se realmente é verdade que existe um fim, um destino final, um desígnio divino que nos levou a este mundo, convém que pelo menos tentemos ficar o mais perto possível das respostas às dúvidas que são inerentes à nossa própria existência. Um dia vamos partir, mas não sem primeiro dar luta e tentar pelo menos perceber qualquer coisinha que não se resuma a cumprir a trindade do nascimento/vida/morte, e esperar um prémio pelo incómodo na forma de “repouso eterno”. A mim sabe-me a pouco. São tantas as vezes que não ousamos questionar o plano de Deus, mesmo que durante as nossas breves vidas nos sujeitemos a tantos sacrifícios e momentos dolorosos que tentamos justificar como sendo a Sua vontade, e que as cruzes que carregamos servem o Seu propósito. Vamos então aproveitar os últimos dias desta quadra carregada de mistério e misticismo. Não tenhamos pudor em tentar saber mais, mesmo que isso signifique questionar a rigidez dos dogmas e das imposições. Vão em paz, e atrevam-se a sonhar com as respostas.