segunda-feira, 30 de março de 2015

Frágil: contém legislação


O programa "Contraponto" da TDM, gravado na sexta-feira à noite e transmitido no Canal Macau abordou ontem um tema que considero da maior importância, e ao mesmo tempo tão delicado como uma flor de estufa, e com o qual é preciso ter o máximo de cuidado. Por isto de "cuidado" não significa que não se deva discutir, ou que o painel do programa desta semana tenha cometido alguma "gaffe" ou imprecisão - antes pelo contrário. O painel composto por Frederico Rato e os reconciliados Carlos Morais José e Paulo Rêgo tocaram em vários pontos pertinentes quanto ao tema das Linhas de Acção Governativa (LAG) para a Administração e Justiça, que me é especialmente caro, uma vez que é nessa Secretaria estou integrado como funcionário. Não que tenha algo a acrescentar ou comentar sobre as minhas funções em particular, ou pelo menos que me digam respeito directamente, que nem foi isso que esteve em discussão. O que importa reter da apresentação das LAG apresentadas pela secretária Sónia Chan, uma estreante nestas andanças, diz respeito a toda a população de Macau e dá indicações sobre o que podemos esperar no futuro em matéria de algo que muitos ainda consideram tabu: a produção legislativa no contexto do segundo sistema que vigora na RAEM.

Sónia Chan, que no ano passado abandonou a pacatez do anonimato do cargo de directora do Gabinete de Protecção dos Dados Pessoais para assumir o protagonismo de uma controversa interpretação da lei que regula esse mesmo departamento, e que serviu para "atrapalhar" a realização do Referendo Civil organizado por activistas e elementos de associações consideradas "marginais" à cúpula governativa. As "más línguas" (sem desprimor por ninguém, foram apenas opiniões e não subscrevo) apressaram-se a associar o "sacrifício" da directora do GPDP com a sua nomeação para o cargo que Florinda Chan deixou vago após 15 anos em funções, algo que tem passado despercebido à comunidade internacional mas que pode muito bem ser um recorde do género, num estado que é supostamente de Direito e uma sociedade que se diz "aberta", de "mercado livre", e com "liberdade de expressão" - as aspas que remetem para citações são apenas uma manifestação de neutralidade, e não um comentário ou qualquer tomada de posição, entenda-se. Havendo quem tenha achado que Florinda Chan fez um bom trabalho, e outros que nem por isso, os primeiros viram a nomeação da nova secretária com a esperança de uma continuidade em vista, e os últimos com redobradas expectativas. E o que se pode esperar de Sónia Chan, afinal?

Ao contrário da sua antecessora, que vinha da área administrativa, a nova secretária tem raízes na magistratura, com uma formação jurídica, e portanto mais específica. A escolha de uma figura do Direito foi interpretada por alguns como um sinal de que era altura de "pôr ordem na casa", não porque o consulado anterior a tenha deixado desarrumada, mas numa tentativa de afastar alguns "fantasmas" e recuperar a confiança da população no Executivo, nomeando uma figura da magistratura, e portanto acima de qualquer suspeita, pelo menos em teoria. No topo da ordem de trabalhos está a famigerada "reforma administrativa", um chavão que fica sempre bem atirar em sede de debate, discussão e especialmente se o tom for de crítica à própria administração. Sónia Chan diz que é "complicado" levar a cabo a reforma, e seria um fenómeno do Entrocamento político se dissesse que era fácil e que se fazia com uma perna atrás das costas. Os vícios de que os críticos falam e que de facto se encontram um pouco por toda a máquina administrativa não são uma sentença de morte, um cancro que mina o sistema, pois as coisas vão funcionando mais a bem do que a mal, e sou testemunha privilegiada desse facto - em comparação com outras jurisdições Macau ainda se pode orgulhar de ter uma administração funcional, e sem sobressaltos que lesem o ambiente jurídico ou administrativo da região. Já que não gostam da palavra "transparente"...

Os vícios têm mais a ver com o aspecto cultural do que propriamente com a competência ou a preparação dos técnicos. Instalou-se um sistema "palaciano", já disse isto milhões de vezes, e há um déficit de responsabilização e uma indefinição quanto a competências, o que em linguagem familiar se chama de "passar a bola". Isto suportado por um servilismo autista, e tudo só não resvala para o abismo por causa do "backup" de técnicos especialistas hiper-pagos para elaborar os diplomas, responder a recursos, ou seja, fazer praticamente tudo o que interessa? Será mesmo assim? Alguns casos conhecidos, talvez, e deveria existir uma maior elasticidade, quem sabe? Mas tal aspecto cultural que referi prende-se com a primazia das hierarquias, que concentram os poderes mas delegam responsabilidades, o que provoca um fosso e impede uma maior comunicação entre a base e o topo da pirâmide. Pode ser que este sistema tenha sido imposto como "estratégia", mas tem sido tolerado e seria complicado introduzir outra de um dia. Um limar de arestas seria bem recebido, mas não estou a ver como é que se vai "revolucionar" a administração, ou como Au Kam San sugeriu, reduzir o número de funcionários, eliminar alguns departamentos e proceder à fusão de outros. É preciso não esquecer que a administração é praticamente a única alternativa aos casinos em termos de empregabilidade. Se quem tiver formação superior ou técnica, e não quiser trabalhar na indústria dos jogos de fortuna e azar, vai fazer o quê, exactamente? Uma pergunta para o deputado Au Kam San responder, e depois sim, discutimos essa "dieta" da máquina administrativa.

Existe a noção, que pode ser mais ou menos verdade, de que se tem medo de legislar, ou fazer grandes mexidas na legislação actual, alguma dela desactualizada. É já famoso o estatuto de sacrossanto que a Lei Básica adquiriu, e aí já é mais que garantido quem sem vontade de Pequim, ninguém mexe na mini-constituição da RAEM. Mais do que isso: sem que Pequim tome a iniciativa, e perguntar "porquê" é algo que não se recomenda para a saúde. Na globalidade fica a sensação de que a Administração está em gestão até 2049, e tem receio de meter o pé na poça e ficar mal vista aos olhos do Governo Central. É nos discursos onde se repete constantemente a ladaínha da "competência do Assembleia Nacional Popular" que se vê que não existe uma vontade muito grande de mexer em muita coisa, mas alimenta-se uma expectativa geral de que se pode (e se deve) mexer em alguma. A população, do seu lado, ou a opinião pública, chamando-lhe assim recorrendo ao pomposo "opinião", que é disso que se trata afinal, espera ver na Administração e Justiça alguma trabalho feito. É para isso que ali estão, pronto, se fosse uma fábrica de rolhas de cortiça esperava-se deles um certo número de rolhas por dia, e sendo assim esperam-se "leis". Este faz-não-faz, deve-não-deve, provoca um impasse, como que alguém que quer apresentar um carro com muita quilometragem mas não quer tirá-lo da garagem.

Mas se por um lado existe legislação desactualizada, outra há que não necessita de revisão, nem se recomenda. Agradou-me ouvir Leonel Alves durante as LAG a recordar Sónia Chan que os códigos "não são leis avulsas", e que são para vigorar muitos e muitos anos. Na área em que bate os restantes deputados aos pontos, e mesmo os que são juristas não têm os "calos" que ele tem, Alves recordou ainda quem nem todos os diplomas carecem de consulta pública, dando o exemplo da lei da violência doméstica. Fala quem sabe, e no Contraponto o dr. Frederico Rato, outro jurista experimentado e conhecedor da realidade local parece ir pela mesma bitola. E nem é preciso ter formação jurídica para entender pelo menos esta lógica: um governo que consulta a população por dá cá aquela palha não revela qualidades democráticas bem está a promover a participação cívica, mas sim a demitir-se das suas responsabilidades. Desejo a melhor sorte para Sónia Chan, e que faça um bom trabalho, mas para isso não precisa de apresentá-lo feito em quantidade, mas sim em quantidade. É preciso não esquecer a singularidade do estatuto da RAEM, e isso, para o bem e para o mal, é preciso manter, e ter o cuidado de não deixar cair - é frágil, e a fábrica que a produziu já fechou.

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