sexta-feira, 13 de março de 2015

Sem ter onde cair (nem ficar) morto


Em primeiro lugar gostaria de me desculpar pelo abandono a que vetei este espaço nos últimos dias, mas como devem imaginar só motivos de força maior me levam a não cumprir com a cota que estabeleci para mim mesmo quanto ao número de entradas no blogue. Sei que ninguém pediu nada e muito menos lamentou a ausência, mas falando por mim e da parte que me toca, ficar dois ou mais dias sem actualizar o Bairro do Oriente deixa-me com uma espécie de ressaca a que chamo de "fome de bloga". Na verdade fiquei sem computador no Domingo a noite, e apenas hoje o tive de volta, vindo de mais um internamento, que desconfio ser um dos seu últimos, pois são mais que notórios os efeitos do "hard-duty" a que o sujeitei desde que veio parar as minhas mãos - coitado, tenho que reconhecer. E já lá vão quatro anos, o que em tempo cibernético e já uma idade considerável, o que vale por dizer que os PC vivem menos que as galinhas. "Depende do uso que se dá", dirão alguns, pois, e o mesmo se pode dizer das galinhas, que não chegam nem a saber que milho fez pum. Mas adiante, e perdoem-me o atrevimento pela nota introdutória de cariz "humorístico sem piada nenhuma", até porque aquilo que tenho para falar é triste e desagradável, mas morrer por morrer, que seja a estrebuchar e aos socos e pontapés no carrasco.

E é exactamente de um tema que tem a ver com a morte que falo hoje aqui no blogue, depois de quase uma semana de pouca e actividade em matérias de artigos, tanto quanto se passou desde o falecimento da avó da minha esposa. Não foi uma morte repentina, e muito menos inesperada, e nem foi sequer uma tragédia, pois a senhora questão, bisavó do meu filho, estava a pouco mais de uma olimpíada de completar um século, o que para quem não sabe, garanto-vos que é mais do que a encomenda. Apercebi-me um pouco melhor deste tétrico facto através da angústia que foi ver a senhora à espera de morrer. Não estava a sofrer, nem em estado vegetativo, e muito menos a tratavam mal, nada disso, e até foi deste mundo enquanto adormeceu, sem dar por nada - assim penso eu, e oxalá assim seja. O que me deixou apreensivo foi a espera propriamente, pois como podem imaginar, esperar pela morte que nunca mais chega não é a mesma coisa que esperar pelo autocarro que está atrasado ou uma tarde inteira para ser atendido na consulta médica. É por isso que não consigo digerir esta questão que se tem debatido ultimamente em Macau sobre "onde por os velhos", que chega a levar alguns figurões da nossa praça a pedir encarecidamente ao Governo Central "que disponibilize mais terreno", para que o território se possa expandir "de modo a que haja sítio para que os velhos vivam em condições". Trocando isto por miúdos, quer dizer "um sítio onde os velhos possam esperar pela morte sem se borrarem todos e acabar de uma forma humilhante". Outra vez peço que me perdoem, mas é assim, e nem fazia sentido estar a ser velhaco, pois eventualmente acontecerá o mesmo comigo, se chegar lá, claro. Quem por acaso pensava que eu sou uma divindade imortal que veio até à terra fazer pouco dos comuns mortais, lamento desiludi-lo/a.

Voltando ao tema principal. A avó da minha esposa era de etnia chinesa, mesmo natural da China, ainda numa versão anterior à actual República Popular. Veio para Macau durante a guerra, quando era moça quase feita, e aqui conheceu o marido, vindo também na mesma condição de refugiado, casaram, e aqui assistiram à sucessão das gerações, tendo a senhora assistido ainda à chegada da quarta. É uma história comum à maioria dos "ou mun ian", ou "chineses de Macau", aqui nascidos de emigrantes e refugiados do continente. Sendo de confissão budista, e essa a vontade da família, toda ela igualmente budista, foi realizada uma cerimónia na casa mortuária do Hospital Kiang Wu, que como se sabe fica situada na Av. Tamagnini Barbosa, em frente ao Canídromo, e a paredes meias com a casa mortuária da Diocese de Macau, reservada aos católicos. Não foi esta a primeira vez que participei deste penoso acto, que mesmo inevitável, é sempre desagradável, e talvez por isso tenha achado alguma diferença desde a última cerimónia a que atendi. Tal como a habitação, o trânsito, a saúde ou a educação, que recentemente foi notícia (outra vez) pela patética luta dos pais por uma vaga para os seus filhos numa creche, em Macau começam a faltar até lugares onde se possa fazer o culto aos defuntos, ou prestar-lhes a última homenagem. Pelo menos um lugar em condições, e não sendo um entendido nessa matéria, considero que aquelas instalações não têm qualidade (?) para esse efeito. Ou tiveram, em tempos, e entretanto fomos ficando todos mais apertados, os vivos e os mortos.

A tal casa mortuária gerida pela Associação de Beneficência do Hospital Kiang Wu - e vou adiantando que não sei muito mais do que isto, par me salvaguardar de algum disparate que esteja aqui a escrever - foi notícia há um par de anos por motivos que tinham a ver com a sua gestão, ou algo semelhante. E sendo mesmo assim, caso não é para menos, pois uma cerimónia completa com tudo a que se tem direito fica sempre para cima das cem mil patacas, e dependendo da "fé", pode ir até às 200, ou mais. A área que a Casa Mortuária destinada às cerimónias de acordo com os costumes chineses será do tamanho de duas fazendas, com pelo menos dois andares destinados à versão local do velório: rés-do-chão e primeiro andar. As vigílias de corpo presente são feitas em divisões, com um espaço de cerca de 50 m2 onde se faz o culto propriamente dito e a recepção aos amigos da família, e ao fundo está um pequeno quarto com cerca de 10 m2 onde repousa o "de cujus", que pode ser visto uma última vez por qualquer pessoa, mesmo que não seja da família. Tudo depende da intimidade que se tem com os parentes vivos do defunto, e suponho que do próprio estado de conservação ou da aparência do cadáver. Há um serviço de maquilhagem incluído no "pacote", e creio que as cerimónias podem ser privadas, a pedido das famílias. Caso contrário, qualquer um pode passar por lá e apresentar cumprimentos, se quiser. Convém que seja pelo menos um conhecido da família enlutada, sob o risco de passar por um maluco, e penso que todos concordamos que não é um espectáculo bonito de se assistir.

No entanto não deixa de ser pitoresco, e como já referi antes, as circunstâncias que envolvem a morte do homenageado determinam a intensidade do pesar, e até o próprio programa da cerimónia. Pelo que me foi dado a saber, uma morte natural, ocorrida já numa idade avançada, é tratada de uma forma muito mais ligeira que uma morte por acidente, ou súbita, especialmente se for inesperada, e que tenha vitimado alguém ainda jovem, saudável, no pleno gozo de todas as suas faculdades. Cada família reserva uma sala, e algumas destas ficam a paredes meias com outras, identificadas pelo apelido do defunto, patente numa placa por cima da entrada. Como se pode imaginar, a reacção perante o falecimento de um ente querido varia de pessoa para pessoa, daí que se tornaria imperativo - existisse esse cuidado - separar as cerimónias conforme a sua natureza, e já agora quanto à natureza dos rituais. A família da minha esposa, por exemplo, optou por uma cerimónia seguindo os costumes budistas, muito simples, que consta apenas de uns monges recitando umas orações, uns papéis queimados, nada de extravagante ou excêntrico, mesmo que à dimensão da nossa cultura ocidental não deixe de ter o seu quê de exótico. Ao mesmo tempo, e na sala ao lado, realizava-se outra cerimónia, e esta "segundo os rituais taoistas", disseram-me, e que consiste num chinfrim, com uma banda de metais onde se destaca o som de uma gaita semelhante à de um encantador de serpentes. Contaram-me ainda que a cerimónia dedicada à avó da minha esposa é "uma novidade", e que antes a única que se encontrava disponível era a outra, a tal banda com o homem da gaita, que é também bastante mais dispendiosa. Recordo-me de ir a pelo menos duas dessas, que é a mais indicada quando se dá uma morte inesperada ou trágica, e de facto os familiares do falecido da porta do lado choravam baba e ranho, no que parecia ser uma prova dessa diferenciação.

Os funcionários da Casa Mortuária realizam o seu trabalho com uma dose de deferência, e um outro tanto de indiferença. Claro que não se pode exigir que sintam o mesmo pesar, ou que nutram simpatia pela mágoa das famílias, pois afinal vêem isto todos os dias, às centenas por ano. Tudo bem, compreende-se, mas podiam pelo menos adoptar um comportamento mais "formal", conforme a ocasião. Não se pede que chorem, ou ponham um ar de caso e olhos de passarinho mal morto, mas penso que daí a andarem por lá a esgravatar os dentes ou a cortar as unhas em cimas das cadeiras pode-se encontrar um meio termo. Já agora podiam aguardar alguns minutos para que terminasse uma cerimónia antes de trazer o escadote e começar a desmontar o estaminé da outra da porta ao lado, que acabou mais cedo. É um bocado esquisito estar a assistir às orações enquanto os tipos estão ali a desmontar placas com o berbequim, atirando-as de seguida para o chão, mas tendo em conta que naquele local se fuma em todo o lado, e vê-se mesmo funcionários a fumar dentro do próprio escritório, talvez seja um daqueles sítios onde o tempo parou. Mas de qualquer forma de nada adiantava tentar pelo menos respeitar a solenidade do momento, pois o som que nos chega do trânsito, dos autocarros e das motas que passam na avenida já é quanto baste para borrar a pintura. E nem estou a culpar ninguém, nem a pedir que a cidade toda pare quando morre alguém, é só o progresso, tout simplement. Estamos mais apertados, só isso, como num formigueiro, e não se surpreendia que com esta falta de espaço e de sítio para "encaixar", tenhamos que nos sentar por aí, num lugar qualquer. Olha, e que tal ali, ao lado do morto?

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