Mais um fim-de-semana que acaba, mais uma semana que tem início, já com a estação da Primavera em "on" - mesmo que aqui em Macau isso não faça qualquer diferença. Mesmo assim, e se estiver para aí voltado, desejo-lhe uma feliz Primavera, que é sinónimo de renascimento, e um convite à esperança de que os frutos que virão das flores que ela nos traz sejam mais doces que os do ano passado. Ah pois, e mesmo a propósito deixo-vos aqui o
artigo de quinta-feira do Hoje Macau, que podia ser dedicado ao tema da Primavera, mas não é. Porque não me apeteceu, e fica mal a um homem escrever sobre a Primavera. Porque é piegas, mas isso é a minha opinião, e podem escrever sobre alfazemas e tutus cor-de-rosa também se quiserem, são livres de fazer as paneleirices que quiserem. Ora essa, de nada.
Começo por perguntar ao estimado leitor: acredita no azar? Não estou a falar aqui do azar como antítese da sorte, da falta dela. A sorte é relativa, tanto dá para explicar como se perde um voo pela primeira vez na vida para mais tarde ficar a saber que o avião caíu, ou quando a nossa equipa de futebol é massacrada pelo adversário, que manda bolas à trave e ao poste, falha um ou dois “penalties” e no fim marcamos o único golo do desafio da única vez que passamos da linha de meio-campo. Falo do azar-azar, aquele que tantas vezes tratamos com indeferença, ou banalizamos em expressões do tipo “já viste que azar?”, “logo por azar...” ou “é preciso ter azar”. Os chineses tratam o azar com deferência, respeitam o azar, e preferem estar de bem com ele, apaziguando-o em vez de levar o barquinho a remos da sorte para as águas revoltas da tempestade do azar. Reparem que entre as tradições respeitadas no período do Ano Novo Lunar são mais as que procuram afastar o azar do que aquelas que trazem sorte – em mais pitorescas, também. A sorte já está sempre presente, não é preciso chamá-la: a sorte está onde não há azar.
Macau tem sido fustigado por ventos fortes não de tufão, mas de azar. Eu diria que os nossos distintos governantes precisam de “ir à bruxa”, mas só precisava de dizer a palavra “bruxa” para os colocar em sentido, e arrancar deles um “choooiii...tai kat lai si, loh!”, que numa tradução livre é algo como “vira essa boca para lá”, ou “cruzes canhoto”, o equivalente português desta mezinha verbal para afastar os demónios da má sorte. Isto também serve para ajudar a explicar um pouco o carácter passivo – por vezes até demais – do povo chinês: mais vale ficar quieto e calado do que responder ao que pode muito bem ser uma armadilha do azar, que nos seduz para para o conflito, levando-nos a criar um ambiente de ... e agora preparem-se para o sorteio do primeiro Prémio ... desarmonia! Sim, onde há azar não pode nunca existir harmonia.
Desarmonia, e ... oops! esperem um instante. “Tai kat lai si”. Já está, pronto. Desarmonia foi o que tivemos na apresentação da obra de uma artista num dos casinos do território, algo que mistura a mitologia nórdica com os congelados da Pescanova. Excessivamente zelosos na missão de afastar o azar dos tentáculos das servas de Odin, os seguranças desse casino neutralizaram um elemento que mais tarde se viria a saber ser um ... jornalista. Ora bolas, que azar. O tipo tinha óculos, uma câmara na mão, cara de tótó, e se há algo que aprenderam com outros eventos formais onde participam figuras importantes ou de estado é que este é o tipo que corresponde à descrição de … de qualquer coisa que dá azar, pronto. Mas lá está, depois de lhe chegarem a roupa ao pêlo sem apelo nem agravo, um momento Kodak (para mais tarde recordar), o departamento de relações públicas do tal casino apresentou um pedido de desculpas ao profissional da comunicação social. Não acredito que estejam arrependidos, ou que não fariam o mesmo agora, sabendo o que sabem, mas para todos efeitos “não foi por mal”, enfim, pediram desculpa. “Tai kat lai si”.
O que também tem o seu quê de aziago é ser suspeito de um acto de censura, e logo numa sociedade onde se apregoa (sem grande firmeza) a liberdade de expressão, mesmo que na sua vertente de “existe, mas vocês abusam dela”. Diz-se por aí que o filme “Selma” foi censurado em Macau, tendo sido retirado da lista dos cinemas da UA Galaxy. Ora essa, mas porquê? Pelo título aparenta ter um enredo perfeitamente inofensivo. Seria esta “Selma” uma rameira, e a película de “hardcore”, daquelas em que até a tela onde é projectada começa a suar em catadupa? Nada disso, pois este filme em que o protagonista é o dr. Martin Luther King tem como temática as marchas entre a estação rodoviária situada na pequena localidade de Selma, no estado do Alabama – daí o título – até Montgomery, capital desse mesmo estado. Marchas essas realizadas em nome dos direitos civis, nomeadamente o direito ao voto dos cidadãos negros norte-americanos e … espera lá … “direitos civis”? “Direito ao voto”? Isso traz água no bico, pois uma das qualidades que tornam Macau num lugar tão único que às vezes parece que nem existe, é o de palavras como “direitos civis” ou “sufrágio universal” estarem carregadas de uma carga negativa de zica. “Tai kat lai si”.
O responsável pela tutela dos espectáculos já veio refutar tais acusações, dizendo que Macau “é uma sociedade aberta” (menos para os que são barrados nos postos fronteiriços, antes que alcancem a “abertura”), e que um acto desta natureza seria “impossível”, pois então. Claro que sim, tem toda a razão, chefe. Mas alguma vez Macau censuraria um filme, que é algo que dá trabalho, e é preciso ver o filme, e decidir que partes cortar? Basta não exibi-lo, pronto, atirando-o de uma das janelas abertas desta enorme sociedade aberta. E como é que vocês podem dizer que foi “censurado”, se não o viram? Essa mania de falar sem conhecimento de causa ainda vos vai trazer dissabores. Salvo seja, claro. “Choooiii … tai kat lai si, loh”.
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