quarta-feira, 18 de março de 2015

Direito: do Pac On à Montanha, sempre a descer


O meu camarada e colega José Rocha Dinis assina hoje (quinta-feira) no seu Jornal Tribuna de Macau a sua habitual coluna de opinião que desta feita dedica a um tema que tem muito a ver com a presença portuguesa (ou o que resta dela) em Macau: o ensino do Direito de matriz continental e em língua portuguesa, nomeadamente através de um curso administrado desde 1991 pela Universidade de Macau. Tem razões para ficar aborrecido, o director do JTM, que até é uma pessoa que gosta de ver as coisas a correrem "nos eixos", recorrendo a uma expressão mais familiar. Neste seu artigo chama atenção para o facto do referido curso ter deixado de ser reconhecido automaticamente em Portugal, como o foi durante mais de 20 anos, e teoriza sobre as razões desta mudança. Pode ser que tenha razão, e que haja quem queira (e esteja) paulatinamente a querer introduzir em Macau um Direito mais próximo da "common law", mas quanto à qualidade desse curso, bom, não vou afirmar ou sequer sugerir que não tem qualidade, pois não é esse o problema. Há no entanto um historial de "escorregadelas" que poderiam ter sido evitadas. Já que JRD deu o mote, resolvi fazer uma pequena dissertação sobre aquilo que me foi sendo dado a saber sobre o tema, mas sempre como mero observador.

Sem estar muito por dentro dos currículos, à primeira vista dá-me a entender que o curso de Direito em língua portuguesa da Universidade de Macau é adequado à realidade do território, e preenche os requisitos mínimos na formação de operadores locais nesta área. Basta olhar para a página do curso, onde podemos encontrar a sua descrição e conteúdo, bem como os nomes que compõem o corpo docente, tudo gente acima de qualquer suspeita no que diz respeito à sua capacidade de transmitir com competência os conhecimentos necessários. Tudo bem, mesmo que não consiga entender porque diabo a página se encontra praticamente toda disponível apenas nas versões em língua chinesa e inglesa - será que a "common law" não perde tempo e começa o seu "ataque" logo pelo idioma? Contudo pode-se afirmar com relativa segurança que este curso será o mais completo da área do Direito de entre toda a oferta existente no território. Essa questão foi o mote para uma divergência de pontos de vista entre o presidente da Associação de Advogados de Macau (AAM), dr. Jorge Neto Valente e uma instituição de ensino superior local que oferece um curso de Direito que segundo aquele causídico "é insuficiente" para atender às necessidades do contexto jurídico de Macau. Tenho a certeza absoluta que o dr. Neto Valente tem toda a razão, e nem ousaria questionar a sua autoridade nesta matéria. Dou também por garantido que a sua preocupação, que é perfeitamente legítima, prende-se com a sua vontade em garantir a qualidade do Direito que se produz e que se aplica na RAEM. É uma pessoa que alia os conhecimentos nessa área a uma longa experiência de décadas a residir em Macau, e a juntar a isto tem a noção das realidades, quer a local, quer a da China , e em termos de credibilidade é completamente insuspeito. Ponto.

Posto isto abro um parêntesis - e agora falo do todo, e não apenas do dr. Neto Valente ou de alguém em particular - para expressar o que sinto sobre aquilo que as pessoas que estão de fora do Direito esperam dele e dos seus operadores. Existe uma tendência, que eu considero pouco ou nada producente, de se considerar que quem é licenciado em Direito, e especialmente quem exerce um profissão nessa área, está acima dos comuns mortais em TUDO o que tem ver com o tema, ou seja, é o "dono da razão". De facto existem aspectos sensíveis do Direito que requerem conhecimentos técnicos, e posso dar o exemplo das leis e da sua interpretação. Por um lado temos leis cujo texto (ou "letra da lei") deixam um leigo meio baralhado, e requerem uma análise mais cuidada, mais profissional. Por outro lado existem outras que são o que são, e o que lá está é que toda a gente percebe da mesma maneira: "não atirar lixo para o chão" não tem muito que se diga em matéria de interpretação. No entanto, e pegando neste exemplo, não seria de todo surpreendente que em defesa de um porcalhão qualquer existam advogados que tentariam provar que latas vazias e cascas de banana são "arte urbana, e não lixo", enquanto nos tentavam convencer que o Maserati novinho em folha na garagem do vizinho do lado era "um perigo para a saúde pública", e sem se entender bem como nem porquê, faziam um juíz assinar uma ordem para que se rebocasse o veículo até à sucata. O que quero dizer com isto é que temos que ter a noção de que as leis foram feitas para servir o Homem, e regular a vida em sociedade, e não para alguns homens delas se servirem para assim satisfazerem a sua saciedade. Esta uma questão tão relativa quanto a da origem da galinha e do ovo, mas em suma diz muito da desconfiança que muita da opinião pública tem a respeito da Justiça e das decisões judiciais.

Voltando ao curso de Direito em Língua Portuguesa da UMAC, este formou durante mais de vinte anos muitos dos quadros que temos hoje na RAEM, bem como foi de lá que saíram muitos advogados inscritos hoje na AAM - penso mesmo que a maioria. Conheço muitos deste "alumni", tudo gente de bem, e que só tem a dizer bem do curso, que consideraram "exigente" em termos de aplicação e número de horas de estudo. O curso em si não faz milagres nem transforma sapos em príncipes encantados, e claro que a formação jurídica que se transmite a um dado indivíduo produz resultados positivos ou negativos, conforme a personalidade do mesmo e a forma como os aplica. Por fim mas não menos importante, há quem tenha adquirido um nível de conhecimentos razoável, e quem tenha lá ido apenas "para passar". De todas as gerações de licenciados desse curso há uma ou duas que o frequentaram porque "ouviram dizer" que proporcionava saídas profissionais lucrativas. Quem se ficou apenas pela ambição ficou também pelo primeiro ano, e quem se esforçou, mesmo não tendo o Direito como uma "paixão", conseguiu pelo menos acabar a licenciatura. Esse é um aspecto que considero perverso: fazer o que não se gosta simplesmente porque "dá dinheiro". Não vou aqui referir outra profissão onde isto acontece, que tem o "handicap" de ser bastante menos digna, pois penso que para um bom entendedor meia palavra basta, mas bem vistas as coisas, o panorama jurídico de Macau ficaria a ganhar mais com operadores de Direito que gostam do que fazem, interessam-se pelo tema e procuram sempre que é necessário fazer uma "reciclagem", de modo a adaptar a "bagagem" às novas exigências trazidas pela evolução da sociedade com a passagem do tempo.

Outra coisa que não ferindo de morte, ou sequer arranhando o verniz à qualidade do curso, tem a ver com o horário, em regime pós-laboral. Parece uma "minhoquice" da minha parte estar a referir este aspecto, mas penso que todos concordarão que um aluno que se dedica a tempo inteiro a um curso tem uma base mais sustentável para conseguir um melhor aproveitamento - é senso-comum, apenas, e claro que a capacidade de cada e a capacidade de gestão das tarefas faz o resto, podendo dar-se em muitos casos o inverso dessa situação. Mas isso leva-me a um ponto mais importante, que tem a ver com o grau de exigência do próprio curso em dados momentos dos períodos pré e pós-transição. Baseando-me nos casos de que tive conhecimento, fiquei com uma ideia de que inicialmente existiu uma certa "folga", visto que se estavam a poucos anos do "handover" e era necessário dotar o segundo sistema de um corpo jurídico num número que pelo menos desse para se poder falar de "quadros locais". Depois começou a existir um excedente, mais ou menos por altura de 2002/2003 e deu-me a entender que o grau de dificuldade aumentou, e mais tarde com o excesso de inscrições no estágio para a advocacia, passou a ser a própria AAM a fazer o grosso da triagem, e actualmente oiço desses candidatos opiniões no sentido de que o estágio da AAM "é mais difícil que o próprio curso de Direito". Penso que isto não será em prejuízo de qualquer um dos cursos em termos de qualidade, e são organismos independentes um do outro, portanto terá mais a ver com o gosto e a capacidade de cada um.

Para terminar, há que referir ainda os pequenos "senãos", que apesar de consistirem de casos episódicos, são em alguns casos sintomáticos de alguma "distracção", chamemos-lhe assim. Recordo-me por exemplo do caso do professor que comentou no seu blogue um incidente que ocorreu com um aluno, que mesmo não tendo sido feita menção do seu nome apresentou queixa contra o académico. A Faculdade agiu então de uma forma que se pode considerar desadequada para quem dá formação jurídica, pois de "justa" não teve nada. É um pequeno detalhe, e uma situação que me recordo de repente sem pensar em outras que certamente não terão sido benéficas para a imagem do curso. Quem quiser poder dizer de peito feito que é esta a via indicada para quem quiser obter este tipo de formação em Macau não pode baixar assim a guarda. Dessa forma só se vai dar razão a alguns causídicos locais que só contratavam advogados formados em Portugal, por não acharem a "Cantera" do Direito em Macau merecedora de confiança. Mesmo esses se foram adaptando, note-se, e rendidos à evidência que é a necessidade de ter juristas que dominem a língua chinesa, foram buscar estagiários aos cursos de Direito ainda mais "suspeitos" que este - no seu entender, lógico. São arestas que precisariam de ser limadas, mas se a decisão de anular o reconhecimento do curso em Portugal e por inerência dentro do espaço da UE foi puramente política, então o caso assume contornos mais bicudos. Se há ainda alguém pior que um advogado sem escrúpulos, só pode mesmo ser um políticos com as mesmas valências. E quando calha serem as duas coisas ao mesmo tempo? Ui...

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