sexta-feira, 12 de julho de 2013

Os ratos do campo


Mais uma semana que termina, e como é hábito deixo-vos com o artigo de quinta-feira do Hoje Macau. Bom fim-de-semana!

Todos conhecemos mais ou menos bem a maioria daqueles contos infantis que passam de geração em geração sem que o tempo torne a sua moral obsoleta. Entre os que considero mais interessantes está o do “Rato do campo e rato da cidade”, que não sendo um dos mais populares, quase todos conhecemos pelo menos o essencial. Um conto simples que ilustra as diferenças entre os modos de vida rural e o cosmopolita, e da dificuldade dos nativos de cada um deles em adaptar-se ao outro, que consideram “hostil” à sua natureza, contrário à sua matriz. Transportando esta fábula para a realidade local, fico a pensar: seremos ratos do campo, ou da cidade? Macau e as suas gentes não são o que se pode incluir na definição generalista de “cosmopolita”.

Para os residentes do território aqui nascidos e educados que não viajam com frequência, ficam meio atrapalhados quando vão a Hong Kong, uma cidade maior que Macau em tudo menos receitas derivadas dos impostos sobre o jogo. Quem passa uma semana de férias noutra das principais cidades asiáticas fica perplexo com o movimento, com o vaivém de pessoas, com os transportes lotados, os restaurantes cheios à hora de almoço, a agitação do centro de negócios ou da baixa comercial, e tudo decorrendo com a normalidade com que o dia dá lugar à noite, com a precisão do mecanismo de um relógio. Fica-se com a noção de “hora de ponta”, e dependendo da cidade em questão, de como se comportar durante esse período do dia. Se por “hora de ponta” entendemos trânsito caótico e multidões aos empurrões no passeio, então em Macau temos “hora de ponta” praticamente todo o dia de segunda-feira a Domingo.

Passeando por Singapura, Kuala Lumpur ou até muitas cidades-vizinhas da China continental deparamos com a oferta de locais de comércio, restauração, entretenimento, diversão ou lazer, um pouco de tudo para todos os gostos, que nos deixa abismados, de boca à banda. Em Macau não existe uma casa de donuts ou um único restaurante russo, nem uma esplanada digna desse nome no centro da cidade (ou fora dele, quanto mais). Ao ficar alojados num hotel ou resort de quatro estrelas ou mais noutro país ou território à distância de duas horas de avião, basta cinco minutos com o comando da TV nas mãos a navegar pelos canais para perceber que qualquer país do sudeste asiático tem pacotes de TV Cabo superiores ao nosso. Mesmo na Tailândia ou nas Filipinas, os assinantes estão muito mais bem servidos, e só não tem uma ementa variada de canais à sua disposição quem não tiver condições financeiras para tal. Pelo menos essa é uma desculpa que se aceita.

Em Macau estamos na idade da pedra lascada no que toca à televisão por cabo, às telecomunicações e quejandos. Tecnologia ultrapassada, serviços medíocres, guerras de interesses e monopólios demasiado enraizados, tudo com prejuízo para o consumidor tanto na variedade, velocidade e qualidade dos serviços, que ainda por cima devem estar entre os mais caros do mundo. No conceito de “aldeia global”, ainda estamos encalhados na “aldeia”. Portanto só posso concluir que somos ratos do campo, sim, mas de campo temos muito pouco. Nem disfrutamos do sossego nocturno pontuado pelo som dos grilos, nem o ar que se respira é puro, são, perfumado de pinheiro e alfazema. O “campo” aqui não é um local aprazível onde se pode levar um estilo de vida saudável, como na fábula dos ratos. Este “campo” não é mais que um eufemismo de conveniência para o atraso, para o comodismo, para a estagnação civilizacional, tudo o que leva à brutificação em massa que parece dar jeito a certas elites. Pelo menos aqui o chão ainda vai dando batatas de sobra para deixar os campónios felizes. Mas seria muito pedir um pouco mais de “cidade” que desse outro sentido a tudo isto?

IIOs leitores que acompanham o blogue “Bairro do Oriente” já devem saber que mudei recentemente de casa, dando assim o meu modesto contributo a essa roda-viva que é encontrar um tecto mais ou menos decente em Macau. Depois de uma incessante busca (três dias) e muitas moradias visitadas (duas), encontrei uma raridade: uma casa de um andar com janela e sótão, com acesso através de um pequeno lance de escadas de madeira e localizada num pátio! É a primeira vez na minha vida que moro num pátio, e já posso riscar esse ponto da “lista de coisas para fazer antes de morrer”.

A casa é sofrível em termos de habitabilidade, com todos os problemas inerentes a uma construção centenária, mas a relação preço/qualidade justifica o risco. A melhor parte é mesmo a localização: enfiada num pátio algures na cidade velha, rodeado de outras casinhas e uma vizinhança sorridente, que ainda vai deixando a porta aberta durante o dia quando está alguém em casa.

Cum ‘camano, não há nada melhor que dormir longe do barulho dos carros e dos motociclos, da recolha do lixo, das oficinais de serração, da loja de ferro-velho onde um grupo de amigalhaços com um ar suspeito e sem camisa bebem e jogam “mah-jong” noite fora, não se inibindo de manifestar a sua “alegria” através de urros e obscenidades. Tinha saudades de arrumar tralhas num sótão, de pendurar roupa no varal para secar e ir correr para apanhá-la quando chove. Pode não ser bem a mesma coisa, mas ao abrir a janela do quarto de manhãzinha, depois de mais uma maratona de sono imperturbável (há anos que não dormia tanto), fico a imaginar o campo. O autêntico, lógico. Não este.

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