domingo, 14 de julho de 2013

Em busca do bom tom


É já no próximo mês que passam vinte anos desde que cheguei a Macau, e apesar de me sentir gratificado com a experiência e ter adquirido o sentimento de pertença a este local onde já passei a maior parte da minha vida, há algo que me deixa incompleto. Refiro-me mais precisamente ao domínio deficiente do dialecto cantonês, utilizado pela esmagadora maioria da população no dia-a-dia, e que por muito que me esforçe não consigo atinar. Aliás adjectivar o meu domínio deste idioma como “deficiente” é lisonjeiro, e pode ser interpretado como um insulto aos deficientes. Se quisesse personificar a qualidade do meu cantonense, seria um nado sem braços e sem pernas, cego, surdo e mudo com paralisia cerebral. É mesmo mau, e penso que deve existir algo de errado comigo, pois não se justifica que ao fim de vinte anos não me consiga exprimir numa língua que escuto diariamente em toda a parte, enquanto há quem tenha conseguido aprender pelo menos o essencial poucos meses depois de chegar ao território.

Não creio que o problema tenha a ver com a pouca queda para as línguas estrangeiras da minha parte, uma vez que domino o inglês, estou mais ou menos à vontade com o francês, dou uns toques no alemão, e mesmo de entre a Babilónia de idiomas falados pelas várias comunidades aqui residentes, consigo entender boa parte de uma conversação em tagalog, o idioma oficial das Filipinas, e sou familiar com muito do seu vocabulário. O que acontece com o cantonês deve explica-se com uma provável incompatibilidade. Eu e o cantonês não conseguimos encaixar um no outro, estamos de birra, eu não falo e ele não é falado por mim, e estamos bem assim. Mas é pena, pois dominar o maldito tornaria a minha vida muito mais fácil, alargando os horizontes da experiência que Macau tem sido para mim.

Mas exageros à parte, não estou assim tão mal. Consigo dizer algumas frases, exprimir algumas ideias, e estou a par da panóplia de obscenidades e outras vulgaridades que podem ser usados como auto-defesa. Ao fim de vinte anos muito mau seria se não tivesse aprendido qualquer coisinha, e na verdade os últimos cinco ou seis anos foram de considerável progresso. A este ritmo, quando chegar aos 110 anos de idade vou conseguir manter uma conversação de cinco minutos com o servente lá do trabalho. Esperem só e vão ver. O meu maior problema tem a ver com a tónica, pois a mesma palavra pronunciada num tom ligeiramente diferente tem outro significado, e é esta “musicalidade” do cantonês que me lixa. “Tong” pode querer dizer açúcar, frio ou dor, conforme o tom, e “san” pode querer sete ou oito coisas. Assim é complicado, e sinceramente não tenho pachorra nem engenho para decorar a cantilena a que corresponde cada monossílabo que para mim soa exactamente ao mesmo.

Caso conseguisse atinar com o cantonês, a comunicação seria mais fácil até com colegas de trabalho ou amigos, mas infelizmente não só não recebo destes qualquer tipo de encorajamento, como ainda sou objecto de troça quando pronuncio erradamente um dos tais tons. Não terá havido uma única vez em que tenha tentado pronunciar o número “sete” sem provocar risadas. Sete diz-se “chat”, que mal pronunciado é uma das piores obscenidades que existem. Vivi a paredes meias com a minha mulher chinesa durante mais de dez anos, e ela sempre achou mais produtivo fazer troça da minha inaptidão para o idioma do que me ajudar a contornar o problema. Olha, obrigadinho e um grande “chat” para ti, já agora. Há quem tenha aprendido rapidamente por necessidade, incluído num meio em que aprender rapidamente o idioma seria a única maneira de se fazer entender. No meu caso uso diariamente o português no exercício da minha profissão, e em último recurso o inglês, com os colegas não-lusófonos. Não fui dotado com o tal instinto de sobrevivência dos que aprendem a nadar em menos de um minuto quando caem ao rio.

No que toca à escrita, o caso muda de figura, e apesar de não poder dizer que consigo ler um texto ou uma frase comprida na sua totalidade, o processo de aprendizagem através da identificação dos caracteres não depende tanto do jeito como da memória e alguma prática. Tenho o nível 2 de Mandarim incompleto, o que chegou para adquirir alguns conhecimentos mais básicos sobre a composição da grafia chinesa. Hoje consigo identificar cerca de 500 caracteres, fazendo uma estimativa generosa, e grande parte deles foram “entrando” graças à frequência com que apareciam no meu dia-a-dia. O mesmo não se pode dizer quanto à escrita, que requer uma prática e uma disciplina que nunca adquiri. Alguns caracteres são compostos por mais que um radical e vinte e tal traços, e a omissão de um deles pode alterar o seu significado ou fazer com que não queira dizer nada. Não surpreende portanto que os chineses aprendam a escrever logo desde os três anos, para que na idade adulta conheçam milhares de caracteres que aos olhos de um leigo não passam de gatafunhos.

Um estrangeiro que pretenda aprender a dominar a escrita chinesa precisa mais do que muitas horas de prática diária. Precisa de uma grande dose de paixão, de procurar entender a génese do caracter, a sua história, o significado da sua composição. Não basta apenas acordar um dia e decidir ir aprender a ler e escrever chinês porque “pode vir a dar muito jeito”. Não é para quem quer, é para quem pode. Neste particular gostava de prestar uma singela homenagem à Dra. Ana Cristina Alves, uma sinóloga por excelência, uma apaixonada dessa escrita que é também uma arte. Pelo menos para quem não começa a aprender aos três anos como parte de um mero processo de alfabetização. Eu próprio assumo a minha total ignorância, pelo menos no essencial, mas às vezes dou por mim a ler o nome completo de uma rua, edifício, destino de uma carreira de autocarro, o nome completo de alguém, ou a identificar no menu de um restaurante o número suficiente de caracteres que dê para entender do que se trata. E aí fico a pensar: como é possível? Bem, sempre são vinte anos a olhar para os “bonecos”, pelo menos algo tinha que ficar. Afinal não sou assim tão burro. Que alívio.

1 comentário:

Anónimo disse...

O problema e que o cantonense tem dois significados para cada palavra.
O significado normal, se pronunciarmos bem, e o palavrao, se pronunciarmos mal.
Para alem disso, a gente daqui ri-se sempre, ou entao nao percebe, se tentarmos falar cantonense.
O que leva ao fim de algum tempo,a chatearmo-nos com o cantonense, e aprender mandarim, que e mais simples, e nao se riem nem tem tantos palavroes a corresponder.
Alem disso, da algum gozo ver os cantonenses a aprender mandarim , a falhar os tons todos e nao saber peva do pinyin.
Depois disfarcam, e dizem que o cantonense e mais interessante.