segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Provedor do leitor



Hoda Saber, jornalista e activista iraniano falecido na prisão após uma greve de fome em protesto pela prisão e tortura de intelectuais, jornalistas e opositores ao regime de Teerão.

A respeito do artigo Joshua e a larica (democracia, a quanto obrigas...), do último Sábado, recebi o seguinte comentário da parte de um(a) anónimo/a:

É pena é que sejam quase só estes miúdos a dar a cara e lutar pelo seu futuro quando os adultos metem o rabo entre as pernas...

O artigo em questão, e como é fácil de perceber, é uma pequena sátira à forma que o activista Joshua Wong, de 18 anos, encontrou para chamar a atenção para...esperem, fiquemos por aqui, por enquanto: "chamar a atenção". Em relação a Joshua Wong, devo dizer que a sua ascenção no "ranking" do activismo pró-democracia e anti-Pequim foi meteórica, e como tudo o que sobe acaba eventualmente por cair, a queda foi deu-se à mesma velocidade. Antes que me acusem de menosprezar o rapaz, vou já dizer que isto não significa o fim da sua carreira como activista, pelo menos em termos de credibilidade, nada disso. Teve o seu mérito em liderar aqui há uns anos o movimento escolarista, que protestou contra a introdução da disciplina de Educação Patriótica em Hong Kong, e encontrou aí uma falange de seguidores - não foi complicado, tratando-se de uma causa de fácil adesão. Depois disso "fez carreira", e agora surge nos protestos ligados ao movimento "Occupy Central", onde primeiro se tentou a "desobediência civil", e depois numa iniciativa tão inédita quanto ousada, Joshua parte para a "greve de fome" com duas amigas. Uma delas resistiu menos de dois dias, enquanto o promotor da iniciativa entrou para a História com o recorde da greve de fome mais curta de sempre, após cinco dias alimentado "apenas" com glucose. Pode ser que tenha aprendido qualquer coisa com a experiência, pelo menos.



Orlando Zapata, activista dos direitos humanos cubano que morreu na prisão em Havana após 85 (oitenta e cinco, não cinco) dias em greve de fome, período durante o qual lhe foi negada água.

O movimento pró-democrata em Hong Kong tem um problema: corre a alta velocidade em direcção a parte alguma. O sufrágio universal parece uma boa ideia, e considero mesmo que ao contrário de Macau, a população de Hong Kong tem a maturidade cívica suficiente para decidir os seus líderes, mas o problema é o mesmo que a solução: os líderes. De um lado temos o actual círculo da governação, composto por elementos assumidamente pró-Pequim, e na oposição um saco de gatos presos pelo rabo, e mais nada. Quando oiço os democratas em Hong Kong falarem em democracia, ocorre-me sempre o exemplo de Portugal, onde durante quase meio século vigorou uma ditadura, mais tarde derrubada por gente que não sendo da mesma cor ou ideologia política, remou sempre na mesma direcção enquanto lutaram pela mesma causa. Em Hong Kong, por outro lado, os três grupos que organizaram o "Occupy Central", levando os protestos muito para lá do seu prazo de validade, acabaram desavindos e os líderes já nem falam uns com os outros. Quando é a hora de trazer para o nosso lado as massas, é preciso pelo menos demonstrar alguma união, caso contrário qualquer pessoa com dois dedos de testa percebe que a ideia é substituir o actual "reino de terror" por outro igual, mas com outros personagens. E é tudo muito simples, na verdade: sufrágio universal, era essa a ideia inicial. Pequim deu, mas reserva-se ao direito de aprovar os candidatos ao cargo de Chefe do Executivo. Pronto, satisfeitos? Não, não, queremos que Pequim não interfira. Ai sim? Olha que bem. Deixem-me perguntar aos residentes de Macau de nacionalidade portuguesa: vocês viam com bons olhos se ao Governo Regional da Madeira concorresse um separatista com planos para alienar a ilha do território nacional. Comparação parva? Eu sei, eu sei, nem dá para imaginar uma coisa destas, pois não? Mas é mais ou menos essa a situação que temos em Hong Kong, e a diferença entre Portugal e a China é que os últimos têm um regime totalitário e o maior exército do mundo.



Joshua Wong recusou-se a comer a sopa toda, porque achou que era "a única solução", e quase ia morrendo. Coitado.

Esta ideia da greve de fome, que só chegou a ser uma dieta purgatória, é nitidamente tirada de um qualquer livro de receitas da democracia. Não sei em que exemplo do passado entre os que fizeram greve de fome emm nome de uma causa o jovem Joshua se inspirou, mas não conheço nenhuma situação em que a razão fosse tão - e agora preparem-se para um palavrão - fútil. "Fútil?!?!" - dirá o leitor adepto das democracias enlatada - "eles estão a lutar pelo seu futuro", como referiu o/a anónimo/a do comentário. Ao contrário dos restantes jovens da sua idade, Joshua não estará a "lutar pelo futuro", com toda a certeza. Pelo menos não estará a lutar pelo seu. Num território como Hong Kong onde não existe censura, não há um único preso político e os cidadãos gozam de liberdade de reunião, associação e expressão, fazem uso dessas liberdades mais do que em Macau, onde existe o mesmo sistema, os jovens da sua idade pensam em tirar um curso superior, ir ganhar maçaroca e ir viver a vida numa sociedade onde podem fazê-lo sem que ninguém os aborreça. Contam-se pelos dedos os regimes na Ásia onde não faz sentido adoptar uma forma de protesto tão extrema, mas perde-se a conta de quantos precisavam de um exemplo como o de Joshua Wong. Se não têm, é porque não podem, porque têm medo. Joshua Wong não tem medo - tem lata. Deu a cara, sim, mas como eu lhe disse na resposta ao seu comentário, a cara estava pintada e completa com um nariz vermelho. Melhor sorte para a próxima vez, mas eu não vou por um caminho sem me dizerem qual é o destino final.

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