E assim acaba mais um fim-de-semana de emissões no Bairro do Oriente, e para terminar com chave de ouro deixo-vos com o
artigo de quinta-feira do Hoje Macau. Na próxima quinta-feira, no último artigo do ano vou contar um episódio que aconteceu comigo ontem, e prometo que é só rir...de raiva. Boa semana de trabalho!
Concluo hoje aqui uma pequena série de artigos que dediquei especialmente a alguns aspectos da cultura chinesa que são para nós, ocidentais, de mais difícil “digestão”. Não quero com isto dizer que a forma de encarar o mundo, ou a vida, resolver os problemas e lidar com outros seres humanos seja melhor numa ou na outra cultura – é apenas “diferente”. Teríamos bastante em ganhar com alguns dos costumes locais, e na realidade acabamos sempre por assimilar qualquer coisa, nem que seja à custa de muitos equívocos, desilusões e mal-entendidos. No fim, mesmo que contrariados e com uma sensação de estrangulamento por não se aceitar a nossa reles condição de “bárbaros”, acabamos por ceder, nem que seja para nos fazer a vida mais fácil.
Do outro lado também existe algum desconforto, e nem sempre os chineses conseguem conviver bem com as imposições da tal “harmonia”, que acaba por servir melhor a alguns, muito poucos, deixando a maioria com nada mais que a pífia consolação de que “pelo menos estão vivos”. Pode parecer pouco para nós, povo de gente refilona, de sangue na guelra e pêlo na venta, mas é preciso recordar que estamos aqui a falar de um povo que praticamente só vive em tempo de paz e ordem desde há pouco mais de 60 anos – em cinco milénios de civilização .
Eles até concordam que alguns dos nossos preceitos são os mais indicados, e a certo ponto chegam a invejar a nossa “libertinagem”, que para nós é apenas “liberdade”. Há uma expressão regional, utilizada em Macau e Hong Kong, que reza assim: 人生没有捷徑 , ou seja, “na vida não existem atalhos”, e a aprendizagem requer sacrifícios, sendo que todas as experiências são válidas, mesmo as negativas. A esse respeito existe um provérbio, que nos diz甜, 酸,苦, 辣, 都必須品嚐, ou “doce, salgado, amargo e picante, é preciso provar de todos um pouco” – é uma combinação curiosa entre a culinária e a filosofia, o efeito placebo no tratamento paleativo.
Às vezes é necessário ser muito 禪, ou seja, muito “zen” para evitar entrar em desespero nessa atribulada caminhada pela estrada que levará à tão almejada “harmonia”. Se há algo que os chineses mantêm dos tempos do Império, é o mais rigoroso cumprimento dos protocolos impostos pela pirâmide hierárquica. A obediência e o respeito que se impõem chegam a colocar em causa os ditames da “dura lex”, e do próprio senso comum – todos bebem dessa imensa fonte que nunca parou de jorrar chamada “Confucionismo”. Por algum motivo a filosofia confucionista tem resistido a todas as etapas da História da China, desde a que temos hoje, até às mil e uma que existiram antes de se “atinar” com esta – portanto “serve”: o confucionismo é a sapataria Charles da filosofia chinesa, onde há de tudo para todos os gostos, e ninguém se pode queixar de calçar um meio número. Assim como nós portugueses consideramos D. Afonso Henriques o fundador da Nação, e Viriato o “paciente zero” dessa doença crónica, hereditária e incurável a que chamamos “lusitanidade”, é Confúcio o arquitecto de todo esse “chow mein” de contradições que é o povo chinês.
Quando nascemos e até à idade adulta devemos obediência aos nossos pais, que ao mesmo tempo têm o dever de nos alimentar, vestir e cuidar de nós, bem como garantir a nossa escolaridade. Uma vez na escola, devemos obediência ao professor, e este tem a responsabilidade de garantir que os seus alunos aprendem. O professor deve ser alguém dotado do saber e da capacidade de o transmitir, o子 , o “zí”, ou o “homem justo”, o mestre (no fundo isto é Confúcio, ele próprio um professor, a falar em causa própria) – “quando um jovem é mal alimentado, a culpa é dos pais, mas se é mal educado, a culpa é do professor”. Posto isto, na hora de enfrentar os desafios da vida adulta deixamos o lar, a tutela e protecção dos pais, e passamos a dever obediência ao chefe, pois do seu sucesso e prosperidade depende o nosso ganha-pão, e deste dependem a nossa mulher, que deve obediência ao marido, o provisor, e dos pequenos discípulos de Confúcio, descendentes dos outros agora grandes, e dos outros já idosos a quem se deve respeito, e de outros ainda que já partiram, mas a quem se deve o culto. Todos estes, mas todos, desde o avô até ao bebé, passando pelo operário e a mãe dos filhos, e sem esquecer as alminhas no além, que não se manifestam e por isso não discordam, devem obediência ao Estado, pois é este a força motriz que permite o funcionamento desta imensa engrenagem confuciana, e dentro desse Estado, a supremacia pertence ao líder, que será sempre incontestado e todo-poderoso, o supra-sumo dos “zí”, coberto de “zen” da cabeça aos pés.
Agora para fazer a gestão de tudo isto é muito simples: os que estão na situação de filho, esposa, assalariado e de alguma forma subordinados ao Estado lêem Confúcio; os que estão na posição de professor, patrão ou chefe de família mandam os outros ler Confúcio, até ao dia em que se chega ao topo da pirâmide, e passamos nós a ser Confúcio . Só nós, “bárbaros” a quem falta um Confúcio que nos oriente no ocidente, não encontramos uma roca para o nosso fúcio. Perdão, fuso.
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