quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

I ♥ Lei Básica



É Li Gang quem diz: Macau é um "modelo" para a Lei Básica, e quem não gosta da Lei Básica, "será desprezado como um rato de rua". Em vésperas da visita do presidente Xi Jinping à RAEM, onde vai assinalar o 15º aniversário da sua criação, o Chefe do Gabinete de Ligação da RPC recomenda aos jovens locais que "não pensem em fazer manifestações como as que têm ocorrido em Hong Kong" - só uma recomendação, portanto, nada foi dito de muito de concreto sobre uma eventual campanha de desratização. Aliás esta tradução deve ser literária, e não é muito fiel ao nosso português "rato do esgoto", pois é no esgoto que pertencem os ratos de que Li Gang fala. Se por "desprezar" ele quer dizer "ignorar", peço desculpa, mas algo que não consigo ignorar é um rato, ou ratazana, se estiver na rua, no mesmo espaço físico. Se andar lá por debaixo do chão, na companhia dos vermes e restantes protozoários que não servem outra função que não elaborar o fertilizante (blergh), ou servirem de hóspedes a parasitas microscópicos nefastos que de outra forma viam em nós um lar para habitar, tudo bem. Vivo sabendo disso da mesma forma que tenho consciência de que bastariam dois segundos para desencadear uma guerra termonuclear.

No fundo o que Li Gang está a fazer não é mais do que o seu trabalho, e nessa função corresponde à expectativa com a precisão de um relógio suíço. Quem já tem a experiência de escutar da boca dos chineses a tradução literária de algumas das expressões que utilizam entre eles no dia-a-dia nem vai dar importância ao assunto. Os que tomam pela primeira vez contacto com este riquíssimo léxico de agressão verbal vão perceber após lerem o ABC da retórica chinesa que "ser desprezado como um rato da rua" é daquelas coisas que se dizem a um parente próximo, a um amigo íntimo, como quem dá um conselho de amigo: "Tens a certeza que queres ires à festa de Natal da empresa com essa gravata horrorosa? Olha que vais ser desprezado como um rato da rua". A resposta poderá vir nestes termos: "Que parvoíce estás tu para aí a dizer? Desconfio que na escola andaste a ler fraldas cagadas, em vez de livros. Porque é que não vais lá para fora deitar-te no meio da rua até te passar um carro por cima?" - juro que esta conversa, mais palavra ou menos palavra, é comum entre amigos e familiares na China. Uma certo dia um estrangeiro, professor de inglês de centro de línguas em Macau, contou-me que uma vez um aluno seu trouxe para a aula um objecto volumoso, provavelmente uma encomenda qualquer. Quando lhe sugeriu que guardasse o volume na recepção para não ficar no meio do corredor da sala de aula, o aluno respondeu-lhe: "E porque é que em vez disso não o enfio pela tua cabeça abaixo?". Este aluno devia detestar o professor, certo? Nada disso, era um dos mais aplicados, mais bem comportados e com melhor aproveitamento; o seu único equívoco foi traduzir para outro idioma o que no dele não tem tradução possível.

Do recado de Li Gang podemos tirar uma conclusão ou duas, especialmente no que concerne ao rescaldo do "Verão Quente" a que assistimos nas duas margens do delta do Rio das Pérolas - e vejam lá vocês que foi mesmo o Verão com as temperaturas mais altas dos últimos 15 anos, quando cheguei a pensar que o minha aflição de calorento mais grave que o habitual se devia a uma espécie de andropausa precoce. O que o representante do Governo Central nos quer dizer é: "Com que então pensaram que se livravam de nós, não era? Aqui estou eu para vos dizer que ainda nos vão aturar muito mais tempo, e para mostrar que estou a falar a sério, tingi o cabelo com preto mais preto do catálogo, e da minha gaveta das metáforas escolhi a do "rato de rua desprezado", que guardo para ocasiões solenes como esta. Digam lá se não estão cheios de sorte, ah?". Os discursos com uma retórica mais inflamada foram um "best-seller" nos tempos da Revolução Cultural, e julgo mesmo que algumas centenas de palavras e expressões do vocabulário foram rebaptizadas para simplesmente "Camarada Mao", o que chegou a causar algum transtorno: - "Olha lá, tens um Camarada Mao que me emprestes?" - "Não te empresto mais nada até me devolveres o Camarada Mao que deixei na tua casa daquela vez que fui lá para Camarada Mao a tua mulher"> Nos tempos que correm muita coisa mudou, especialmente desde que o proletariado ganhou a noção de que a sua prole convertida em numerário e depois multiplicada várais vezes lhe dava acesso a bens e serviços da sua predilecção, e que afinal existia mais do que uma variedade de arroz, quando a única que ele conhecia era a "Camarada Mao".

Mas ainda há situações onde se pode "encaixar" uma certa dose de exaltação do espírito patriótico, e para agitar as hostes basta alegar que vem aí Genghis Khan a camelo, puxando uma carroça de comerciantes de ópio ingleses, escoltada pelo exército imperial japonês. Claro que tudo depende do local e do contexto, pois se um membro do Politburo, da ANP ou outro orgão do PC chinês desata a ser mais papista que o Papa, perdão, mais maiosta que o Mao (impossível! sacrilégio! macacos me mordam, literalmente!) há sempre o cotovelo de um fato da Ermenegildo Zegna que dá um toque no ombro do seu Desmond Merrion como quem diz "olha lá, não te estiques". Mas eu prefiro jogar pelo seguro, e como tal declaro já aqui e agora o meu amor eterno por enquanto e incondicional até novas ordens pela Lei Básica. A Lei Básica é para mim o que o Corão e a Bíblia são para os fiéis das religiões teistas: não sei o que está lá escrito, mas ai de quem diga mal dela. Sigo a Lei Básica ao ponto de esquecer à força todas e quaisquer palavras que não estão contidas no seu texto, e além de ser a minha única literatura, é o único filme que vejo: o "Lei 'Basic' Instinct". Portanto no dia 20, se os srs. ratos da rua não se importarem, evitem cruzar-se no meu caminho, está bem? Não me façam atirar-vos à tola com uma das várias cópias da Lei Básica que levo constantemente comigo. Porquê? Porque sim, é o que manda a Lei Básica. Procurem lá com cuidado, e caso não encontrem é porque não sabem interpretá-la. Seus...ratos de rua!

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