terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Macau: é melhor que as Caraíbas!



Estou cada vez mais convencido que em Macau se vive uma espécie de vida ao contrário, num mundo ao contrário. Em Macau não se vive, "es-eviv". A TDM passou hoje depois do Telejornal uma reportagem sobre o preço da habitação no território, que pela 1265387ª vez nos diz que "é elevado" e não está ao acesso dos residentes. O surrealismo daquela peça deixou-me tão incrédulo que pensei estar a sonhar, e que tinha simplesmente alucinado tudo aquilo. Já tinha tirado tudo o que era alimento do frigorífico e dos armários para testar se houve alguma contaminação por LSD, quando a TDM repete o mesmo programa, na mesma noite, só para me beliscar e garantir que não estava a sonhar. Este programa devia ser declarado património inlegível pela humidade por parte da GROTESCO, que abriu uma representação dentro da cabeça de cada residente de Macau. Mas e então, o que leva a indignar-me deste jeito com a peça da TDM? Nada, e quem disse que estou "indignado"? A TDM não tem a culpa da distorção da realidade em que alguns daqueles personagens habita. Aquilo é que devia ganhar um prémio qualquer, tipo "jornalismo de alto-risco", ainda mais perigosos que qualquer cenário de guerra.

Esqueçam lá os desgraçados que vivem com menos de 4 mil patacas por mês e dividem a casa à meia dúzia deles de uma vez só, que esses já se habituaram a viver com a miséria que nós lhes pagamos, apenas com "condições mínimas de higiene", todos ali, uns em cima dos outros, que nojo. Mas e nós, que somos ocidentais, brancos e com cursos universitários, e pouco importa que eles também tenham, porque os nossos são melhores porque somos uma raça superior, tolerante e democrática. E se não tivessemos um orçamento familiar de pelo menos 30 mil patacas, como era? Onde é que iamos ter uma casa-de-banho em condições, com banheira ampla para os banhos de espuma e espaço para colocar pelo menos duas flutes de champanhe? Imaginem se não tivessemos entre doze e quinze mil patacas para dar por uma casa só para nós, sozinhos ou com o nosso "companheiro(a)", que não tivesse uma sala ampla e com condições para receber pelo menos meia dúzia de amigos para actividades de elevadíssimo interesse público, como "a prova de vinhos mais aleatória de sempre", por exemplo? É que para os animais que vivem com menos de quatro mil patacas qualquer vão de escada serve, mas e nós, onde é que guardamos as nossas "petit choses"?

Desta nave cheia de bizarras criaturas a caminho de um planeta estranho, numa galáxia distante da nossa, deixem-me primeiro resgatar os humanos. A dra. Ana Soares, por exemplo, demonstrou uma ingenuidade fora de série, característica que evidencia pertencer à nossa espécie. A causídica teve a coragem, imaginem só, de citar a lei com a finalidade de demonstrar que agentes imobiliários e empresários ignoram o cumprimento da mesma em nome do lucro que obtêm através da especulação. Já viram no que estamos metidos? No Irão era tudo enforcado, pá! Grandes homossexuais e apóstatas do imobiliário, é o que eles são. Mas no fim de contas, sendo a senhora umaa advogada, ia falar do quê, que não do cumprimento escrupuloso da lei? Dar dicas de como contornar as obrigações fiscais? De como abrir contas em "offshores" nas Caraíbas? Ui, mas não falemos já das Caraíbas, que têm muito mais que apenas "offshores". É que neste mundo do faz de conta que é Macau, onde tudo é apenas "a brincar", a lei só se aplica a pelintras, que se fazem às economias de uma velhinha tonta qualquer, ou arranjam um esquema para sacar umas massas que implica terem que ser eles a fazer tudo com as mãos e não sei quê, coisas de gente pobre e sem formação nenhuma. Quando os senhores doutores estão a tratar de negócios de centenas de milhões, faz favor de não vir com essa conversa parva de leis, que de fosse assim ainda estava tudo na fila para levar com um carimbo qualquer e não havia cheques de nove mil patacas para ninguém.

Falou ainda aquele senhor português cujo nome não me ocorre neste momento, e por esse facto peço desculpa, e que veio constatar o óbvio no planeta do aleatório e do alienado: as casas que são construídas têm um preço absurdo para o orçamento das famílias de Macau, e por isso "servem outro fim" - lógico, mas ainda há quem as compre, e depois passe o resto da vida a dar 90% do salário para pagar a hipoteca, e é bom que viva até aos 133 anos. Disse ainda uma coisa muito interessante: se o Governo diz que não pode intervir na especulação para "evitar condicionar o mercado", e que sentido isso faz, se os terrenos onde se constrói pertencem ao Governo, que atribui as concessões, aprova os projectos, estabelece os prémios e por ele passam todos os restantes trâmites legais? Pode ser que para nós, terráqueos, seja assim, mas no Macau dessa galáxia tão distante, os prédios são construídos nas nuvens, onde também estão os tais taxistas malandros, à "pesca" dos anjinhos. Outro paradoxo interessante foi abordado no programa por uma residente de Macau de etnia chinesa, e tem a ver com a atribuição de moradias pelo Governo aos residentes com menos rendimentos, funcionando desta forma: quem não tem habitação própria e aufere um rendimento superior a certo montante, não tem direito a essa habitação do Governo, e quem tem direito fica com outro problema, pois estando habilitado, isso significa que praticamente não tem dinheiro para viver na casa que lhe foi atribuída. Sim, eu sei que já foi muito pior, e se bem me recordo em 2008 o valor máximo era de 13 mil patacas por agregado familiar - praticamente o preço de uma renda "numa casa decente", como vamos ver a seguir.

Agora preparem-se para entrar no mundo do irreal e do ilusório. Esqueçam tudo o que haviam aprendido até hoje, pois preparam-se para entrar no planeta Macau. Sim, até o vosso próprio nome, pois no planeta Macau, cada um chama-se aquilo que as pessoas com autoridade para produzir tal afirmação quiserem. Sim, diz-me que é António, Francisco, Joana ou Maria, mas sei lá se não me está a tentar enganar, fazendo-se passar por uma trisavó minha e com isso surrupiar-me um rim para transplante? Acredito ser quem diz que é quando ouvir isso da boca de um juíz de Direito. 2+2=4? Talvez, mas não sendo você um professor de matemática, só acredito quando ouvir isto da boca de um deles, e de preferência Arquimedes, ou Copérnico. É assim Macau, meus caros, e onde as "top-models" não têm dinheiro para comer e quem aufere 400 euros mensais ou menos "não toma banho", há um problema ainda maior. Sim, porque à luz da lógica de Macau, quem ganha 20 mil patacas mensais tem problemas cinco vezes maiores do que quem ganha apenas 4 mil. Vamos lá a falar a sério, então? Mau...

Uma das entrevistadas naquela reportagem vive uma drama terrível, coitada. Chegou a Macau o ano passado, e já mudou de casa umas duzentas vezes, e tal, e tudo porque "uma casa em condições custa os olhos da cara". Por "casa em condições" aqui entende-se um apartamento de um prédio recém-construído, de preferência com três quartos, mas se tiver só dois não faz mal se for para IR VIVER PARA LÁ SOZINHO - mas só desde que a sala tenha as dimensões oficiais de um campo de futebol, caso contrário, isso é viver pior do que um rato. A menina, que juro não conhecer nem nunca lhe ter posto a vista em cima até ontem, veio com o ar mais grave e indignado do mundo afirmar que por causa do preço da habitação ser variável conforme a área onde se pretende residir, sendo o centro da cidade a zona mais cara - algo que também só acontece em Macau, portanto - foi OBRIGADA a ir viver para o gueto da Ilha Verde, onde "não existe nada" - apenas vacuo. Ora, vá você! Para quem não sabe, a Ilha Verde não é uma ilha, e muitos menos é verde. É um dos bairros da zona norte da cidade onde o preço da habitação ainda é mais ou menos acessível, pois há ainda umas caixas de fósforos onde reside o equivalente em número à população de Queluz de Baixo. É uma zona que se desenvolveu exponencialmente nos últimos anos, e está bem melhor que há vinte anos, quando já lá morava muita gente. Dizer que "não há nada" ali só pode ser interpretado de uma forma: não há casas de fado...marisqueiras...praias para se fazer "surf"...castelos e palácios...enfim, não há nada.

Esta Ilha Verde fica situada numa cintura habitacional onde estão ainda os bairros da Areia Preta, T'oi San e Fai Chi Kei, terminando na Praça das Portas do Cerco, perto da fronteira. Existem ali complexos habitacionais com fracções amplas e condomínios bem catitas que ficam por mais de 10 milhões de patacas, e onde vivem muitos destes portugueses. Coitados...a certo ponto a menina faz uma cara como de que acabou de ver a morte à sua frente, e diz que "há casais a viverem juntos, para assim partilhar a renda" - não é bem o mesmo que "I see dead people" mas fica lá perto: "I see couples living together". Há coisas que só têm explicação inseridas no contexto de Macau; nos anos 90 punha-se os tais casais a viverem uns com os outros, uma música de introduação que entrasse logo no ouvido, e um título como "Friends" ou algo que valha, e era só rir e ganhar prémios para melhor tudo e mais alguma coisa. Hoje é uma tragédia pior que um funeral. E já que falei de Portas do Cerco, conhecemos ainda um rapaz que tem um problema ainda maior: vive em Zhuhai, pois só ali pode pagar um apartamento onde dê para jogar ténis na sala de estar, e para vir trabalhar todos os dias para Macau apanha um autocarro que demora meia hora - e ainda se queixam, aqueles sortudos que trabalham em Lisboa e vivem na margem sul, que demoram hora e meia a fazer aquele percurso. Este desgraçado teve que ir morar para a China! Não, não é para perto do restaurante "China" em Alcabideche, é na China mesmo. O tal cavalheiro que antes analisou a situação dos preços disse que "o Governo quer os residentes de Macau a viver do outro lado da fronteira", e transformar o território em "um bairro de Zhuhai onde se pode ir jogar". Eu como tenho casa própria, só estou à espera que venham até aqui a S. Lourenço apontar-me uma pistola à cabeça e obrigar-me a sair.

Mas guardei o melhor para o fim. Um casal que julgo ser norte-americano, não apanhei essa parte, vive em Macau há dois ou três anos, também considera as rendas exorbitantes, mas gostam de viver cá, e até tiveram uma filha para comemorar a integração. Acho bem que gostem, tudo bem, mas a certo ponto a senhora do casal diz que "antes viviam nas Caraíbas", mas em Macau existe "melhor qualidade de vida". Bom, enquanto estou aqui sentado na minha secretária neste último dia do ano em frente ao PC, enquanto escuto o calipso produzido pelo som do camartelo pela minha janela, e depois de ter andado a dançar a versão local do limbo aos encontrões com as pessoas na rua, permita-me que discorde. É que a ideia que tenho das Caraíbas é a de um local idílico, com praias de areia branca e mar a perder de vista, e mesmo que não se tenha dinheiro no bolso basta passar pela beira do mar e apanhar um crustáceo para o jantar. Acredito que em Montego Bay ou em Punta Cana se passa um dia melhor do que em Macau - a não ser que a senhora estivesse a viver no bairro mais problemático de Port-au-Prince, e mesmo aí os motoristas de taxi são mais prestáveis.

O que temos aqui são pessoas gastar balúrdios em algo que não lhes faz falta. Para quê 100 m2 para se ir viver sozinho, ou com o namorado? E no resto do mundo, nas cidades mais caras, não há casais a viverem juntos e a partilhar rendas? Tenho a certeza que em Macau há apartamentos - antigos, é certo - perto do centro cuja renda é inferior aos novos de Zhuhai, e não vão cair em cima da vossa cabecinha, garanto. É claro que o senhorio aumenta a vossa renda de 10 para 15 e depois para 20 - já vos tirou a pinta, e aprecia patos com penas e tudo. Com a facilidade com que as pessoas que chegam a Macau, mesmo as aparentemente mais inteligentes, se prestam a certas figuras com tanta facilidade, ainda me levam a pensar que ainda vão receber uma chamada dos perdidos e achados do terminal do Jetfoil, ou do aeroporto, a pedir que venham reclamar o juízo que lá deixaram quando aqui chegaram. Podem crer, esta foi preciso (re)ver para poder dizer: já vi tudo.

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