sábado, 10 de maio de 2014

Doçi ganham em casa - com ou sem casa


Os Doçi Papiáçam di Macau levaram hoje a cena a sua nova peça de teatro, "Vivo na Únde?", inserido no 25º Festival de Artes de Macau. É o regresso do grupo liderado por Miguel Senna Fernandes, que hoje comemerou ainda o seu aniversário, e por isso está duplamente de parabéns. A ideia este ano era brincar com um tema sensível: o preço e a qualidade da habitação em Macau. Já o tinha dito aqui antes que não seria fácil rir nem fazer de situações como esta, que mexem directamente com a qualidade de vida da população, ou nesta caso, a falta de qualidade de vida. Há pessoas, incluíndo casais com filhos pequenos, que se vêem obrigadas a andar com a casa às costas devido ao inflacionamento - exagerado e na maior parte dos casos completamente injustificado - do preço das rendas. Verificam-se mesmo casos de gente que reside em Macau há cinco ou seis anos, e mudou de casa...cinco ou seis vezes. Quem opta por comprar, passa uma vida a "apertar o cinto" para amortizar as prestações da hipoteca, que chega a ser o equivalente a mais de metade do orçamento familiar. Contudo em "Vivo na Únde?", os Doçi conseguiram, e permitam-me agora uma pequena cacofonia, "desdramatizar o drama".

Os espectáculos deste grupo são sempre um evento aguardado com enorme expectativa. Tive pena de não pode ir assistir ao último, em finais do ano passado, que serviu para assinalar o 20º aniversário do grupo, mas não tenho perdido qualquer das peças desde 2007, e se antes não ia, isso deveu-se sobretudo à minha "falta de agressividade" na hora da aquisição dos bilhetes. Entretanto "acordei para a vida", e faço questão de adquirir os ingressos no mesmo dia em que são postos à venda. Este ano no entanto o melhor que conseguiu foram quatro lugares na primeira fila, mesmo em frente ao palco, no "snake pit", e dois na segunda, logo atrás. Não foi tão mau como seria de esperar, e até tive oportunidade para poder observar alguns detalhes que os lugares do meio ou da rectaguarda não permitem visualizar. A maior motivação para ir assistir a este espectáculo anual é sobretudo tomar o pulso ao que se faz em termos de humor e sátira em Macau, e apesar da exiguidade do território, há muita coisa para se dizer - um ano dá para muita água correr debaixo das pontes Nobre de Carvalho, da Amizade e de Sai Van. Neste particular os Doçi continuam a ser um grito no deserto, ou pelo menos não tenho conhecimento de nada que seja feito no âmbito das artes que se assemelhe ao que eles fazem. Logo, e por isso mesmo, vale sempre a pena espreitar.

Este ano dou mais uma vez nota positiva à peça. É verdade que dou sempre nota positiva, e a única maneira que me levaria a reprovar seria caso o grupo descarrilasse por completo dos padrões a que nos têm habituado, e aparentemente ainda estão muito, muito longe disso. Não fiquei arrebatado, não foi o melhor que já vi dos Doçi, e vendo bem este foi um dos anos em que ri menos, e agora que falo nisso, foi a primeira vez que me lembro de não ter chorado a rir. No entanto, e como o riso não se mede ao metro nem se vende ao litro, há outros aspectos que gostaria de apontar como bastante positivos, e penso que o grupo ficou a ganhar com algumas das apostas recentes que fez em termos de acautelar o seu futuro. O guião estava bem escrito, e como já referi, conseguiu lidar bem com a problemática do tema, e foi suportado por algumas interpretações de elevado calibre, algumas delas que foram - pelo menos para mim - uma agradável surpresa. Sem querer aqui dar graxa a ninguém, gostaria de referir quatro nomes que se elevaram ao Olimpo e se sentaram do lado de Dionísio, o patrono das artes e do teatro: José Basto da Silva, Aleixo Siqueira, Leong Pui Leong, e como não podia deixar de ser, Marina de Senna Fernandes, a quem já começa a ser necessário pensar nalguma forma de a condecorar; inventa-se por aí uns oscares, sei lá? Menções honrosas ainda para o estreante Vítor Morais Lau, e nos vídeos para Filipe Chan e Hugo Silva Jr.. Isto, é claro, sem desprezo para qualquer um dos outros participantes, pois tudo funcionou como uma máquina bem afinada. Se tenho um ou outro aspecto a apontar que penso que devia ser melhorado, e isso é apenas normal, não foi por falta de empenho ou de qualidade de ninguém. Mas vamos então esmiuçar isto como deve ser.

O enredo: Américo (José Basto da Silva), "filho da terra" regressado recentemente a Macau porque em Portugal a situação "está complicada" (duh...), procura um emprego onde possa juntar algum dinheiro para casar com o seu "amôchai" (adoro esta palavra), uma tal Maria Albertina, nome quem sabe inspirado na canção de António Variações com o mesmo nome, e já agora encontrar uma habitação em condições para receber a sua mais-que-tudo quando esta se juntar a ele mais tarde. Para isso conta a ajuda do seu tio Apio (Alfredo Ritchie), que antes de mais nada resolve instalá-lo num apartamento, que precisa de partilhar com mais quatro pessoas: Juny (Vítor Morais Lau), Jofre (Carlos Cabral), Abú (Aleixo Siqueira), e a mulher deste, Bita (Rita Cabral). Acontece que a renda é de dez mil patacas, e cada um precisa de contribuir com duas mil, para que não "doa tanto no bolso". Só que cedo recebem a visita de Sap Sei Ku (Fátima Gomes), uma funcionária da agência, que lhes entrega um novo contrato onde a renda é aumentada para 25 mil patacas. Um exagero, é certo, mas em termos de aumentos desmesurados das rendas, que no fundo significam que se paga muito mais pela mesma coisa sem que nada o justifique, a não ser as regras não-escritas da mais da especulação, não é assim tão descabido. Posto isto Américo decide procurar emprego, e dirige-se à "Neverline" (penso que era esse o nome, mas posso estar enganado), uma caricatura da Centaline, a agência de fomento predial sediada em Hong Kong a quem muitos apontam o dedo como uma das principais culpadas pelo caos provocado pela especulação imobiliário. Ali encontra Judas (Sharoz Pernencar, numa estranha escolha de nome para o personagem), e o proprietário, Joselito (José Carion Jr.), que consideram um "fatalismo" precisar de ajudar um irmão maquista em dificuldades. Tudo se complica quando a mulher de Joselito, Marcelina (Marina Senna Fernandes) e a sua filha Mia (Angelina Assunção), ficam encantadas com o charme e os dotes de cantor de Américo, e insistem que este seja contratado. Entretanto Lúcia (Nair Cardoso, sempre encantadora) procura emprego na mesma agência, e cai nas boas graças de Joselito, que está disposto a contratá-la, mas com "contrapartidas".

Portanto temos aqui não um triângulo, mas um quadrado amoroso entre Marcelina e Joselito, que estão dispostos a trairem-se um ao outro com Américo e Lúcia, que entretanto se começam a apaixonar um pelo outro, à revelia da Maria Albertina, que ao telefone com o namorado só se preocupa que este encontre uma casa "com quintal", e mais tarde "uma casa no campo". Este foi, na minha opinião, um momento bem conseguido, pois é um facto que muitos portugueses chegam a Macau procurando os mesmos confortos a que estão habituados no seu país de origem, o que muitas vezes os levam a tornar-se presas fáceis para os agentes imobiliários, e por inerência para os especuladores. Outro momento de sátira bem conseguido envolve um enredo parelelo, onde Pang Sai Chat (Lou Pui Leong), um "boneco" que é "chapa" de alguns cidadãos locais que medram no mundo dos negócios, particularmente no ramo do imobiliário, arrogantes, que só vêem cifrões à frente, e que pensam que tudo se compra e tudo se vende; é tudo uma questão de combinar o preço. Assim Pang quer vender o apartamento onde vive Américo e os seus novos amigos a um comprador da China continental, Mr. Chap (Machi Chon), por 15 milhões de patacas. Entretanto Pang quer adquirir a moradia por 8 milhões da agência, e por sua vez Joselito tenta que a proprietária, Marta (Olívia Pereira), a venda por uma ninharia. Só que esta, mais "vivaça" do que aparenta ser, consegue um bom preço pela venda, Joselito não fica a perder muito, e no fim quem mais ficaria a ganhar seria Pang, não fosse pelo facto do Mr. Chap ficar a par do "esquema", e acaba tudo "à porrada". Esta cadeia de eventos é demonstrativa do que se passa na realidade: há casas que são vendidas por mais do que realmente valem, e até chegarem ao comprador final, passam pela mão de intermediários que a "valorizam" ainda mais, e todos comem a sua fatia do bolo oferecido por quem tem dinheiro a mais e não sabe como gastá-lo. Entretanto a população de Macau fica a olhar o comboio a passar, e nem umas migalhas caem de qualquer uma das carruagens.

José Basto da Silva excede-se no papel principal. Confesso que não me convenceu muito no ano passado no papel de Nené Serafim em "Amôchai Divoto", mas este ano mostrou saber representar, cantar, e saber estar, dando uma grande credibilidade ao seu "boneco". Só um pequeno conselho, se me permite: apague o ar "aflito", de bebé chorão, sempre "à rasca", e nesse aspecto, o da naturalidade, pode tirar notas da actuação de Vítor Morais Lau, que como estreante esteve muito bem, bastante à vontade, e é uma grande promessa da "cantera" dos Doçi. O outro papel que merece grande destaque foi o de Lou Pui Leong, que encarnou na perfeição o típico residente de Macau de etnia chinesa que descobre uma mina de ouro, e começa a perder a noção do que é certo e do que é errado, tudo em nome do lucro. A sua actuação curtou que nem uma faca, usou e abusou do calão, e no fundo mostrou mais uma vez que tem muita experiência nestas andanças. Aleixo Siqueira brilhou no departamento da comédia de situação, fazendo uso sobretudo da expressão cultural - penso que não terá dito uma frase durante toda a peça. Deixem-me dizer que torci o nariz perante a ideia do personagem do residente "traumatizado" pela "invasão" dos turistas, a quem chamava de "javalis", uma expressão local para designar os visitantes menos civilizados que nos chegam do continente. Contudo resultou em pleno, "sacou" o maior número de risos, e não sei se alguém concorda comigo, mas fez-me lembrar um pouco o actor Marty Feldman, que trabalhou em filmes de Mel Brooks, nomeadaente o Igor de "Young Frankenstein". E já que estamos numa de comparações, a personagem de Marina Senna Fernandes trouxe-me à memória a Lucia de "Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos", de Pedro Almodovar, interpretado pela actriz Julieta Serrano. Uma mulher apaixonada, cheia de energia, mas no limite da sanidade por culpa dos desvarios do seu marido. Isto mostra mais uma vez a versatilidade de Marina, que se adapta maravilhosamente bem a qualquer papel. De Nair Cardoso, repito o que já disse antes: é encantadora, e basta-lhe apenas ser ela para que o seu papel, seja ele qual for, dê certo, e Carlos Anok Cabral (que parece ter emagrecido) esteve igualmente muito bem, mas teve menos espaço para brilhar, "encalhado" num papel "colectivo" ao lado de Vítor Morais Lau e Alfredo Ritchie.

Das restantes interpretações, que não me canso de repetir, foram todas competentes, um pequeno reparo a Fátima Gomes: uns pontos mais abaixo no botão do volume, s.f.f.. Isto não é uma crítica, e foi-me dito por uma das minhas acompanhantes que a sua personagem requeria toda aquela extroversão, mas penso que distrai um pouco, e não nos deixa "ler" o personagem - quase nem precisa de microfone para ser ouvida. José Carion Jr., Alfredo Ritchie (que teve pouco tempo em palco desta vez) e Sharoz Pernencar, que já estão com os Doçi há alguns anos, parecem estar "presos" no mesmo personagem de sempre, e no caso do último é pena. Pernencar tem uma elasticidade como actor que me faz lembrar um pouco Rowan Atkinson (vulgo "Mr. Bean"), e podia ser melhor aproveitado. Machi Chon, de quem até gosto, parece no entanto ter apenas um ângulo, e interpreta sempre o mesmo personagem, com a mesma largura de gestos e expressões faciais. Olívia Pereira, que em tenra idade se tornou parte do grupo, e depois de alguns anos de ausência regressou, sofreu de um problema de caracterização; conheço a Olívia desde pequena, sei que é ligeiramente mais jovem que eu, mas parecia uma senhora de 70 anos - seria mesmo necessário usar a sua experiência desta forma? De Angelina Assunção vi pouco, mas gostaria de ter visto mais (quem sabe no futuro), e Rita Cabral desempenhou o seu papel habitual de "pivot", competente como sempre, nada a apontar a este elemento do núcleo duro dos Doçi.

Agora falemos dos vídeos, ou melhor, do vídeo. Gostei da ideia, gostei de alguns dos personagens, e Sergio Perez volta a ter nota vinte (de 0 a 20, entenda-se) no departamento da realização, mas confesso que não entendi muito bem a ideia. Prefiro o sistema de "sketch" curto e diverso do que o mini-filme, ou "trailer" alargado, não dá para perceber qual, neste caso. Não era grande fã da série "Panchico", apesar de achar-lhe graça, e posso dizer o mesmo deste, ahem, e isto tem piada só pelo nome, "Bichoman". Este super-herói é inspirado no Batman e no Spiderman - descaradamente, diga-se de passagem - com elementos de "Dick Tracy", "Sin City" e outros clássicos do género, e contou com Filipe Chan no papel de Bichoman. O Filipe esteve fabuloso, assim como esteve Hugo Silva Jr. no papel de "vilão". Sou amigo e colega do Hugo há mais de vinte anos, e ele sabe que não preciso de lhe "puxar o lustro", mas aquele papel foi feito à medida para ele. Só é pena que não se tenha juntado aos Doçi há mais tempo, pois seria muito útil na hora de criar um personagem que encontramos com facilidade na comunidade macaense: o "street smart", o "goodfella", o "tai-lou" com a mania das grandezas, mesmo assim respeitado por uma considerável fileira de "kai-chais". No entanto não posso deixar de fazer este pequeno reparo - ganhavam mais com diversidade, e algo mais curto que quinze minutos. Mais uma vez, é apenas a minha humilde opinião. Estão todos de parabéns, e amanhã há mais, às 19:30 no Grande Auditório do Centro Cultural, para quem hoje perdeu a oportunidade de assistir a mais este capítulo da expressão cultural por natureza da comunidade macaense.

1 comentário:

Pepe disse...

Apenas uma pequena correcção, Leocardo: a dita agência tinha o nome Evelyline.