sexta-feira, 2 de maio de 2014

Lá poder podem, mas...


Ontem assinalou-se em todo o mundo mais um 1º de Maio, Dia do Trabalhador, ou para os religiosos, Dia de S. José Carpinteiro - é feriado, cada um comemora como bem entender. O significado deste dia está intimamente ligado aos acontecimentos de 4 de Maio de 1886 em Chicago, quando durante uma manifestação de trabalhadores que pediam o dia de 8 horas de trabalho e protestavam contra a morte de alguns trabalhadores pela polícia no dia anterior durante outro protesto, se deu uma carga policial e subsequentemente uma explosão que custaram a vida a sete agentes da autoridade, quatro civis, com dezenas de outros manifestantes a ficarem feridos. O dia 1 de Maio foi declarado Dia do Trabalhador pela Segunda Internacional Socialista, após uma reunião em 1891 realizada em Paris, e é hoje feriado em praticamente todos os países do mundo - nem quero imaginar como anda a situação laboral dos países onde não é, se os há.

Ao contrário de outros pontos do globo, onde os ânimos chegam a ficar exaltados e são frequentes os confrontos entre manifestantes e autoridades, em Macau o 1º de Maio é normalmente tranquilo, com a única excepção em tempos recentes a ocorrer em 2007. Tinham-se passado dois anos desde a liberalização do sector do jogo, e ocorreu uma massiva injecção de capital investido no território pelas concessionárias norte-americanas, ao mesmo tempo que a política de vistos individuais promovida pelo Governo Central, em Pequim, tornavam Macau uma espécie de "máquina de lavar oficial". Começaram a chegar mais turistas, mais investimento, e a população tomou consciência de que andava a entrar dinheiro que depois era mal distribuído. Após a detenção do ex-secretário para as Obras Públicas e Transportes, Ao Man Leong, em Dezembro de 2006, cresceu o sentimento de insatisfação, que viria a culminar nos incidentes do 1 de Maio seguinte, que ficaram marcados pelo momento em que um agente da PSP resolve disparar cinco tiros para o ar, com o pretexto de "acalmar os ânimos". A decisão do agente dividiu opiniões, se bem que nem os que apoiam a sua conduta conseguem explicar porque é que este "soldado desconhecido" veio de seguida a desaparecer completamente do mapa, como se tivesse sido engolido por uma fenda que se lhe abriu no chão, debaixo dos seus pés.

Tanto as autoridades como o Executivo tinham informações de que a manifestação seria infiltrada por "provocadores", e o braço-de-ferro entre a polícia e os organizadores do protesto nos dias anteriores aos incidentes por causa da proibição do uso da Av. Almeida Ribeiro dava a entender que não ia ser tarefa fácil manter a ordem. Após o sucedido a imagem do Executivo ficou ainda mais abalada, e os cinco meses que separaram a prisão de Ao Man Long e o 1 de Maio terão sido os mais difíceis do dois mandatos de Edmund Ho, que se arriscava a ver o seu nome e de colabodores próximos de si envolvidos no processo inerente à detenção do ex-secretário, e a "vox populi" não se inibia de apontar o dedo e acusar o Executivo de falta de transparência. Lá em cima Pequim olhava, e não gostava da onda de descontentamento, que feria de morte o princípio da harmonia implícito na política de "um país, dois sistemas". O que pensariam os chineses do continente se soubessem do que se andava a passar em Macau? Um "de fartar vilanagem", só que ao contrário deles, sujeitos ao rigoroso controlo do partido único, em teoria seguidor da doutrina marxista-leninista, deste lado havia muito dinheiro prontinho a que alguém lhe deitasse a mão.

No ano seguinte, em 2008, pouco antes do 1º de Maio, Edmund Ho dá um golpe de cintura, e naquilo que muitos entenderam como um acto de "realpolitik", promete cheques de cinco mil patacas para os residentes permanentes, e metade desse valor para os residentes temporários, com o pretexto de "ajudar a suportar os efeitos da inflação", e do respectivo aumento do custo de vida. Qualquer pessoa com dois dedos de testa entendeu que este "rebuçado" era uma espécie de "tranquilizante" para os ânimos mais exaltados, e simultaneamente um aviso: "olhem que agora podem queixar-se, mas a alternativa é bem pior". A verdade é que os cães raivosos ficaram na casota nesse 1 de Maio, e os mais simplórios riam dos que sairam à rua nesse Dia do Trabalhador: "então têm dinheiro de borla, sem precisar de mexer um dedo, querem mais o quê?". No momento em que Edmund Ho anunciou as tais compensações pecuniárias, deixou uma batata quente nas mãos do seu sucessor, que logo a partir do ano seguinte tomou posse dos destinos da RAEM. Chui Sai On, à beira da eleição para um segundo mandato, tem gerido tranquilamente esta despesa complementar para os cofres do erário público, e tudo indica que liquidez para que o continue a fazer durante o seu segundo mandato será coisa que não vai faltar. O senhor que se seguirá que se preocupe com o futuro a médio prazo; "passa a outro e não ao mesmo", parece ser a regra de ouro. Entretanto já ninguém pensa que os cheques anuais - e este ano serão 9000 patacas para os residentes - resolvem seja o que for, pois o preço dos bens de consumo continua a desafiar as bolsas das famílias, e o preço da habitação passou de "excessivamente elevado" para "criminoso".

Mas com ou sem cheques, com inflação a mais ou a menos, ou com o preço do pé quadrado a subir desregradamente, todos os anos há 1 de Maio, todos os anos é feriado, e com mais ou menos participação, as manifestações acabam por se realizar. Este ano a participação foi na ordem das mil pessoas, segundo as autoridades, e as medidas de segurança continuam a ser exarcebadas ao ponto do ridículo, com restrições de vária ordem, exigência da identificação completa dos organizadores, ao ponto de ser considerado intimidatório para quem já não seja referenciado como "rebelde", inclusão de agentes à paisana no meio da multidão, que chegam a filmar os manifestantes, e um aparato policial que simplesmente não se justifica, pelo menos a meu ver. O direito à manifestação está contemplado na Lei Básica, mas é desencorajado. Tenho a certeza que o descontentamento vai muito além da expressão da manifestação, e que numa população de mais meio milhão, um milhar não representa esse descontentamento. O problema coloca-se nesta simples equação: "Não está contente com alguma coisa, é isso? Quer protestar? Está no seu direito, mas pense bem nas consequências. Ainda se quer manifestar? Então assine aqui". Podem manifestar, quem disse que não podem? Podem ainda mandar o vosso chefe à fava, se quiserem, têm essa liberdade. Depois não venham é chorar.

Na edição de hoje do Hoje Macau foram recolhidas as opiniões de duas figuras tidas como do lado do "contra-poder", se existe tal coisa, realmente: Bill Chou, professor universitário e recentemente elemento "de facto" da Associação Novo Macau, e António Katchi, também professor, conhecido pelas suas posições críticas em relação ao Executivo, mesmo que do ponto de vista meramente teórico-político. O último prevê que "os protestos se vão tornar mais frequentes"; talvez, mas em número, e nunca em conteúdo ou em efeito. De facto existe descontentamento, existe a percepção de que se acentuam as diferenças entre ricos e pobres, de que a vida se vai tornando mais difícil e mais cara, enquanto se vai perdendo em qualidade, mas "so what"? O Governo vai anunciando com um sorriso nos lábios os planos de empurrar tudo o que não é lucrativo ou possa ser considerado "problemático" para a Ilha da Montanha, teima em não resolver os problemas mais urgentes, como o da habitação ou do acesso aos cuidados de saúde universais e gratuitos, e quando confrontados com esses problemas respondem apenas com um vago "estamos a estudar uma solução para o problema". Ufa, que alívio. O chefe sabe que "há um problema" e está a colocar os seus melhores homens a tratar do assunto. É este o ópio que vai mantendo a populaça inerte por estas bandas. E o que é isso de "capitalistas"? Para quê puxar desse assunto de no ano passado a própria população reforçou através do sufrágio directo a presença do sector empresarial na Assembleia Legislativa, desperiçando assim uma excelente oportunidade de se insurgir contra essas injustiças? Em Macau não temos um sistema social nem capitalista: temos o sistema "de Macau", que não é pior nem melhor do que aquele que tinhamos antes da II Guerra. É o que temos.

E ainda ontem gostei de ouvir o Paulo Azevedo no programa de entrevistas em inglês da TDM, convidado a propósito do 10º aniversário da publicação que dirige, a revista Macau Business. Falando da falta de mão-de-obra ou de quadros qualificados, disse que o ideal era que o Executivo encorajasse a vinda desses quadros por um período de 10 ou 15 anos, ou o tempo necessário, de modo a formar quadros locais que depois pudessem aplicar os conhecimentos adquiridos. Isto seria o ideal, o que se esperaria de uma sociedade que há década e meia iniciou um período novo da sua história, dotado de um "elevado grau de autonomia", ou lá o que é. Mas isto seria de esperar de pessoas que pensam, que olham mais além do que apenas o imediato. Em Macau a mão-de-obra importada serve apenas para realizar os ambiciosos projectos dos grandes empresários, solucionando assim a pouca vontade dos locais em passarem por macacos e trabalhar no duro a troco de amendoins. As únicas preocupações concretas que se viram expressas neste Dia do Trabalhador foram as dos "croupiers", que não querem a concorrência dos não-residentes - porque sabem que esta vai ter a preferência dos casineiros, pois trabalham mais, e por um salário mais reduzido. Aqui o jogo toca com tudo para a frente, o presente é que manda, e o futuro logo se vê. É um enorme aviário onde todos os dias se degolam as galinhas dos ovos de ouro, e enquanto houver galinhas, tudo bem, depois logo se vê. E depois é só sacar o mais possível, pois ele "logo se vê" é a palavra no dialecto local para designar o "amanhã". E você, pensa pela própria cabeça, e preocupa-se com o futuro de Macau? Diga de sua justiça, vá em frente e bata com o pé, e nada melhor que 1 de Maio para o fazer. Mas antes de se "sujar", pense duas vezes. Tem a certeza que é isso que quer? Lá poder, pode, mas...e sorria, que está a ser filmado por aquele indivíduo que passou o tempo inteiro a observá-lo enquanto gritava palavras de ordem.

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