sábado, 14 de setembro de 2013

O sr. rato e eu


Quando decidi mudar para esta casa há alguns meses, ponderei os pós e os contras. Não há nada mais elegante que morar numa moradia de um andar construída há mais de 80 anos, em vez da sempre-mesmice de um bloco de apartamentos que é preciso partilhar com dúzias de outras famílias, por vezes separadas por paredes da espessura de uma folha de papel tamanho A4. Outras vantagens incluíam ser situada num pátio, onde não passa trânsito e por isso reina o sossego, localizar-se ao virar da esquina da minha antiga morada, o que facilitava a mudança, a renda, bastante acessível, e provavelmente a qualidade que me fez decidir sem pensar muitas vezes: tem um sótão! Quantos de vocês têm um sótão, uh? E os “duplex” não contam. Estou a falar de um só-tão. Daqueles à antiga, com tecto baixo e janelinha, mesmo por debaixo do telhado.

Dos defeitos, infelizmente, só me apercebi depois de me mudar de armas e bagagens. O chão da sala está ligeiramente inclinado – provavelmente devido a uma falha na trave mestra – a rede de telemóvel e internet é mais fraca que na anterior morada, e a casa estava necessitada de alguns pequenos consertos, algo que foi ficando resolvido passo a passo, e não há mais reparos urgentes a fazer. Mas o pior ainda estava para vir; o sistema de escoamento da máquina de lavar e do chuveiro da casa-de-banho consiste de um mero buraco num canto da parede. Um sistema arcaico, típico de uma construção antiga, nada que não tivesse à espera. Se por um lado o buraco permite que a água saia para um ralo localizado no tardoz da casa, por outro lado permite que entrem de fora visitas indesejadas. E não estou a falar de baratas, essas ignóbeis criaturas que nos invadem através dos buracos mais estreitos das canalizações. Falo de ratos, a criatura mais imunda e nociva do reino animal.

O leitor mais atento já deve saber o que penso dos ratos, e deixei-o bem claro neste post. Ficar em frente a um rato é uma daquelas coisas que me faz morrer de síncope cardíaca fulminante. Foi por isso que com grande apreensão recebi da minha sócia a notícia de que “tinhamos um rato”, e que ela o tinha visto na cozinha, numa manhã após ter voltado do seu turno da noite. Apressei-me a comprar veneno para ratos, que coloquei estrategicamente nas áreas por onde o infecto roedor poderia possivelmente entrar. Não estava muito confiante com esta solução, pois 13 patacas por um frasco de bolinhas vermelhas que se assemelham a comida de peixinhos de aquário parecia demasiado barato como forma eficaz de desratização. A verdade é que resultou! Não porque o bicho tivesse comido o veneno e depois aparecesse morto no meio da sala – e ainda bem – mas porque passou a evitar a minha casa.

Entretanto passou-se mais de um mês, nunca mais me lembrei do rato que nunca cheguei a ver, e deixei de colocar o veneno nos tais locais estratégicos. No meu subconsciente tudo não tinha passado de um sonho mau, que nunca chegou a pesadelo. Foi há alguns dias, penso que enquanto assistia ao jogo entre o P. Ferreira e o FC Porto, que me caíu o coração aos pés. Durante o decurso da partida, abri o frigorífico para tirar um refresco, e é aí que escuto um som vindo de debaixo da bancada da cozinha, detrás das caixas de cartão onde guardo os materiais de limpeza, e estão acomodadas a bilha do gás e o caixote do lixo. “Será chuva, será gente? Gente não é certamente e…ah foda-se, é o cabrão do rato!” Não sosseguei mais essa noite, e cada vez que me aproximava da cozinha, lá se mexia o intruso, como que se escondendo de mim. No dia seguinte foi um toca a espalhar mais veneno junto do tal buraco de escoamento da água da máquina de lavar. Tiro e queda, nunca mais tive notícias do dentuço rabudo, portador da peste. Até um dia.

Foi na última quinta-feira que se deu o terceiro episódio desta saga, e provavelmente o mais aterrador, com uma conclusão hitchcockiana no dia seguinte. Preparava-me para dormir com os anjinhos, e quando passo pela cozinha a caminho da casa-de-banho, eis que ouço novamente a criatura a esconder-se por entre o estaminé da cozinha. Que diabo, pensei eu, enquanto tomava consciência de que o veneno se tinha acabado. Fui dormir com a porta do quarto fechada, pelo sim pelo não, e no dia seguinte a minha parceira resolve vedar a saída da máquina de lavar, após verificar que o rato não dava quaisquer sinais da sua presença. Tinha voltado a casa após mais uma noite passada no seu clube nocturno de eleição: a minha cozinha. Desta vez deixou uma pista; uma maçã que deixei à mão de semear em cima da mesa da sala tinha a marca de uma pequena dentada. É evidente que sendo eu e ele os únicos seres vivos presentes nesta casa essa noite, e eu dormia o sono dos justos e com a porta fechada, foi o sr. rato que mordiscou a maçã. Achei estranho que a mordida fosse tão pequena, e que se tivesse limitado a dar apenas uma, visto que teve a noite toda para devorar a maçã inteira a seu bel-prazer. Mais tarde fiquei a saber a razão desta timidez.

Sexta-feira, passavam alguns minutos da meia-noite. Em frente ao computador, escrevia as notas finais da campanha eleitoral, estupidamente tranquilo, confiante de que nessa noite o rato ia esbarrar com o tijolo colocado na sua porta de acesso ao meu lar, e procurar outro abrigo para passar a noite. A certa altura escuto um barulho estranho, semelhante a um guincho…de um rato! “Impossível”, pensei eu. Devia ser fruto da minha vívida imaginação, aliado a outro som qualquer que vinha da televisão ou da rua, de lá do baixo, do pátio. Afinal moram ali outras pessoas. Ignorei e continuei a escrever, e não tinham passado nem três minutos quando estabeleço finalmente contacto visual com o sr. rato, o meu hóspede indesejado. Vejo-o a passar a menos de um metro de distância, ligeiro, aparentemente assustado, em direcção à escadaria que dá até à porta da rua. Dois segundos, foi todo o tempo que tive para olhar para ele. Castanho escuro, franzino, perninhas curtas, cauda não muito comprida, ao contrário dos ratos que habitam os meus piores pesadelos. Não seria maior que um maço de cigarros, o infeliz. Não era uma voraz ratazana, ou sequer um rato doméstico. Era um ratinho. Um rato júnior.

Rato, ratinho ou ratão, a sua presença provocou-me de imediato uma arritmia que me deixou paralizado durante uns bons dois minutos. Durante essa comatose consciente, o meu raciocínio atingia a velocidade de ponta, mil à hora. Era este o invasor que tanto cheguei a temer? O que aconteceu, afinal? Aparentemente tentou sair por onde havia entrado, e enquanto a minha assistente bloqueava a sua porta, havia-se escondido noutro lugar da cozinha. Se calhar passava pelas brasas depois de uma noite de farra às minhas custas, e terá dado o tal guincho quando se apercebeu que tinha ficado preso. Optando por sair pela porta da frente, passou por mim quase como um raio, tímido, mais borrado de medo de mim do que eu dele, e se falasse pedia-me desculpa pelo incómodo, e implorava que o deixasse ir à sua vida. Esta era uma amostra de rato, e foi então que percebi porque se limitou a uma tímida mordidela naquela maçã: a fruta era maior que ele! Sabendo que entre a escadaria e a porta da rua não havia qualquer escapatória, julguei-o encurralado. O que fazer agora? Considerei ferver uma panela de água que depois jogaria pelas escadas abaixo, escaldando-o, como afirmação do meu ódio por estas criaturas, mas detive-me ao pensar nos bramidos agudos de dor, das queimaduras, do cenário digno de Hiroshima. Hesitei. Precisava de encontrar outra solução.

Tendo o sr. rato encurralado entre a porta da rua e da escadaria que dá até à sala, e podendo controlar a entrada da secretária do computador, preferi continuar a escrever, como se nada fosse. Depois logo se via. Seriam umas três da manhã, hora em que se começou a manifestar o sono, que decidi tomar medidas definitivas. Vesti-me, calcei as botas da K-Swiss, e armei-me com o varão da roupa. Enchi o peito de ar, e acendi a luz da escadaria. Esperava uma reação imediata do animal, mas nada. Desci cuidadosamente cada um dos dez degraus, certificando-me que o bicho no se escondia debaixo de um dos vãos, e cheguei à porta da rua. Para meu espanto, nem pista do rato. Como é possível? Não há ali um buraco por onde ele pudesse sair, nem o do contador da água, e seria improvável que saísse por debaixo da porta, onde mal passa um envelope. Foi aí que me apercebi: o rato foi…rato. A sua ratice fê-lo escapar, como, não faço ideia. Por um lado fiquei satisfeito por não precisar de lhe ceifar a vida.

Hoje voltei a restabelecer o estoque de “snacks” para rato da Anaconda, e espalhei alguns pelo chão junto à máquina de lavar. A primeira vez que soube que havia um rato, pensei no antídoto mais natural: um gato. A minha companheira não acha bem, e disse-me que “ou o gato ou eu”. Eu já lhe disse um sem número de vezes que escolhia o gato, e que ela deixasse a chave em cima da cómoda do quarto quando saísse, mas acho que ela não me leva a sério. A verdade é que não desejo mal ao sr. rato. Já percebi que ele não me quer mal, não é uma ratazana malvada à procura de me mordiscar as nádegas enquanto eu estiver a dormir. É um ratito comum, que tenta fazer pela vida, coitado, à procura de uma bucha na casa dos humanos para matar a fome. Sempre é melhor do que comer lixo dos caixotes. Gostava de o conhecer melhor, de travar amizade com ele, mas a natureza não o permite: ratos e homens não são compatíveis.

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