Quando tinha os meus sete ou oito anos tinha por hábito acompanhar a minha avó maternal ao Mercado Municipal, ou “praça”, como lhe chama o povo. Foi graças a essas excursões de compras que desenvolvi uma certa dureza de estômago, que me permite encarar certas opções alimentares que custa a muito boa gente aceitar. Tratava por tu as iscas de porco, as morcelas, o bucho – estômago de porco, que quando cru exala um cheiro pestilento – torresmos, enguias e tudo mais. Foi graças a este estímulo que não me incomoda o cenário dos mercados de Macau, com o peixe, as aves e as rãs a serem executados, escamados e depenados a pedido do freguês, de modo a garantir a frescura. Para mim, que assisti ao meu pai a degolar centenas de galinhas e patos e esfolar dúzias de coelhos, isto não é nada. Aliás, já cheguei a fritar um peixe que ainda mexia enquanto o óleo a ferver lhe começava a conferir uma côr bronzeada.
Voltando às idas à “praça” com a minha avó. Numa dessas viagens passámos pela secção das frutas, e a boa velhinha compra meia dúzia de um fruto desconhecido, semelhante ao tomate, mas com uma cor alaranjada. Perguntei-lhe o que era aquilo que de início julguei ser um legume, e ela respondeu-me “dióspiros”. Tivesse já eu dotado do meu sentido de humor incisivo e mordaz e tinha-lhe respondido “santinho”, mas a verdade é que demorei algum tempo a memorizar aquele nome – ainda hoje não sei bem onde fica a sílaba tónica, se no “o” ou se no “pi”. Chegados a casa, já pela hora de almoço, deixámos aqueles estranhos frutos no frigorífico, e pela tardinha despertou-me a curiosidade e resolvi provar aquele primo do tomate. Foi uma autêntica festa dos sentidos. A doçura, a textura suave, a sensação de frescura, a própria experiência que foi descobrir o dióspiro. Primeiro a casca fina que permite abrir o fruto ao meio sem recurso a qualquer utensílio, a polpa semelhante a uma papinha, o centro gelatinoso, o facto de não ter caroço (algumas variedades têm um pequeno caroço, contudo inofensivo), tudo perfeito. Foi amor à primeira dentada, e a partir desse dia e até hoje, o dióspiro passou a ser o meu fruto favorito.
Não é fácil explicar a um estrangeiro o que é um dióspiro. Em inglês diz-se “persimmon”, e apesar da maioria dos povos anglófonos saberem do que se trata, poucos provaram, ou têm-no como uma fruta de eleição. Não me recordo de nenhum filme ou série de televisão onde tenha aparecido ou sido mencionado, e não creio que constasse qualquer dióspiro do turbante de frutas na cabeça de Carmen Miranda. E já que falamos de Carmen Miranda, os brasileiros chamam o dióspiro de “caqui” – assim como os espanhóis e os alemães. O nome científico desta fruta, que tecnicamente é uma baga, é “dyospiros kaki”, portanto não vale a pena entrar numa discussão sobre quem está correcto, se os portugueses, se os brasileiros: estão ambos certos. Curiosamente o dióspiro é originário da China, onde se chama “shizi” (柿子), existindo outra variedade exclusiva do Japão. Na Polónia chama-se “hurma”, e na Roménia é conhecido por “sharon”. Memorize esta informação útil para que nunca lhe faltem dióspiros quando viaja.
Analisando o seu nome científico dado pelos gregos, “dyospiros” significa “fruta dos deuses” (“dyos”, adivinharam, é “Deus”), e numa tradução mais exacta, “o trigo de Zeus”, sendo que Zeus era o deus dos deuses. Não me surpreende que os deuses se deliciassem com dióspiros lá no Olimpo, chupando os dedos cada vez que comiam um “à unha”. Existem dois tipos de dióspiro mais comuns no mercado: o astringente, e o não-astringente. O primeiro é aquele mais duro, mais claro, que provoca uma sensação horrível na boca, como se algum antraz nos estivesse a devorar as mucosas, e o outro é aquele docinho, mole, delicioso. Claro que este é o meu preferido, e do tal astringente diz-se que tem aplicações médicas, mas estou-me nas tintas. Para mim o dióspiro tem que ser maduro, e quanto mais, melhor. Os melhores dióspiros são aqueles já rachados, quase podres, tão moles que basta um pequeno apertão para começar a largar sumo. Quando o cálice no topo da fruta sai com facilidade, é sinal que está pronto para ser consumido.
O dióspiro, que felizmente encontramos em Macau em bastante quantidade e de boa qualidade, é rico em glucose, potássio, ferro e vitamina C. Aliás basta comer dois ou três para se atingirem os valores diários recomendados desta vitamina. É mais delicioso, fácil de comer e menos ácido que a laranja, e não deixa aquele cheiro irritante nas mãos, que se topa à distância. Quatro ou cinco dióspiros custam qualquer coisa como dez patacas (um euro) em qualquer mercearia, e isto é uma ninharia comparado com a satisfação que um dióspiro geladinho proporciona depois das refeições, ou a qualquer altura do dia. Há sempre uma desculpa para comer dióspiros. Agora que chegou a época destas delícias redondinhas , aproveitemos e apanhemos uma caganeira de dióspiros, que depois no Inverno vamos ter saudades. Dióspiros: a oitava maravilha da natureza. Se até Zeus aprova, quem somos nós para dizer o contrário?
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