terça-feira, 24 de setembro de 2013

De carne e osso, como nós


Um casal de Hong Kong foi condenado na semana passada a penas de prisão depois de uma série de abusos à sua empregada indonésia. Tai Chi Wai, de 42 anos, e a sua mulher Catherine Au, de 41, submeteram a vítima, Kartika Puspitasari, de 30, a uma campanha de terror durante dois anos, de violência e humilhação, considerados "cruéis e desumanos" pelo júri. As agressões incluíam ataques com x-actos, cabides e uma corrente de bicicleta, além de outros abusos físicos, como queimaduras com um ferro de engomar. Numa ocasião o casal foi de férias durante cinco dias, deixando Kartika amarrada a uma cadeira, obrigando-a a usar uma fralda onde fazia as suas necessidades (!). Tai, um comerciante, vai cumprir uma pena de prisão efectiva de três anos e três meses, enquanto Catherine, uma assistente hospitalar (!?) vai cumprir cinco anos e meio. O julgamento foi acompanhado de perto por associações de imigrantes de Hong Kong, que se manifestaram à porta do tribunal exigindo justiça. Após a leitura da sentença, muitos consideraram a pena "demasiado leve". Em Hong Kong trabalham 300 mil empregadas domésticas, predominantemente de origem indonésia e filipina, e os casos de abuso são comuns.

É um fenómeno curioso, este, que leva a que alguma gente leve a considerar que a empregada doméstica um objecto, um utensílio, e não outro ser humano com que mantém apenas uma relação laboral. Não me surpreende que a mulher deste casal tenha tido o castigo mais pesado; para algumas mulheres a que o dia corre mal, agredir a empregada é o mesmo que atirar um prato ao chão: "é minha e faço com ela aquilo que quiser!". Muitos destes casos de agressão, de violência física, coação psicológica e até abuso sexual são tolerados em silêncio. Muitas destas trabalhadoras migrantes dependem da parca remuneração que auferem para sustentar as suas famílias no país de origem. Os três ou quatro mil dólares de Hong Kong que lhes pagam podem não ser nada para eles, mas para estas mulheres e para os seus podem ser a diferença entre comer e passar fome. "Passar fome" é algo que os honconguenses que têm uma empregada que lhes faça o trabalho doméstico desconhecem. Certamente que existem lares na RAEHK onde as criadas são bem tratadas, em que lhes é reconhecida a utilidade, quando cuidam dos bebés, dos velhos ou levam as crianças à escola. Infelizmente nem tudo são rosas.

Este "luxo" que é ter alguém que faça os trabalhos domésticos tem muito que se lhe diga. Imagine-se o leitor a limpar a casa-de-banho alheia, a enfiar as mãos no cesto da roupa suja de estranhos, de aturar os filhos dos outros, e por vezes ter que lhes tolerar mil desaforos, de mudar a fralda e dar banho a um velho que não lhe é nada. E para isso é pago por mês o mesmo que provavelmente ganha em dois ou três dias, e ainda é obrigado a pernoitar numa casa onde se sente inferior aos restantes residentes, e tantas vezes rodeado de câmaras que filmam todos os seus passos. Imagine que a sua família depende de si, e um dia enquanto realiza o seu trabalho de rotina é assediado pelo patrão, que o ameaça mandá-lo embora caso resista às suas investidas e não guarde silêncio após o sucedido. Imagine-se nestas situações e provavelmente vai pensar: "preferia morrer". De facto antes a morte que tal sorte. No entanto há quem se sujeite a isto e muito mais. Repito: só em Hong Kong há 300 mil empregadas domésticas nestas condições.

Eu próprio nunca seria capaz de ter uma empregada doméstica em regime de "stay-in". Não me sinto à vontade na presença de estranhos, gosto de circular em casa por onde me apetece, quando me apetece e não me quero adaptar a circunstâncias que limitem a minha liberdade plena. Não vejo com bons olhos deixar a minha casa à mercê de uma empregada durante grande parte do dia, nem deixar os meus filhos a seu cargo - especialmente se forem tão pequenos que não se possam queixar caso sejam mal-tratados. Sim, há empregadas que são vítimas da maldade dos seus empregadores, mas nem todas são uns "anjinhos". É curioso que há quem teime em ter uma empregada em casa, mesmo não vivendo num palacete nem nada que se pareça. Em Hong Kong justifica-se que a empregada more com os amos, por causa das distâncias e do preço exorbitante das rendas, mas em Macau, por exemplo, há quem teime em dar gaurida a uma criada em apartamentos tão diminutos que mal cabe lá o agregado familiar. Em Macau a maior parte das empregadas domésticas - perto de 20 mil, fazendo uma estimativa - cumprem o horário diurno e depois vão para casa. Mesmo que por razões económicas partilhem o apartamento com sete ou oito compatriotas suas, isto garante mais autonomia tanto a empregadores como a elas próprias.

A vinda destas trabalhadoras do sudeste asiático para a região é um fenómeno mais ou menos recente, e ter-se-á intensificado apenas nos anos 80. Antes disso os serviçais das famílias chinesas, e das mais endinheiradas, que eram poucas, eram...outros chineses. Os ingleses em Hong Kong nunca tiveram problema em encontrar uma empregada, nem actualmente, nem há 20 anos, nem há 50 nem há 100. Nos anos 60 ou 70 era impensável a uma família chinesa da classe média ter uma empregada, e na pior das hipóteses arriscavam-se a ser as esposas ou as filhas dessas famílias a servir outras acima na pirâmide social. Com a chegada das filipinas e das indonésias tudo mudou, e nem é preciso ganhar bem para ter alguém a tratar-nos da roupa ou fazer-nos a comida, mesmo que apenas em regime de "part-time". Esta mudança nos costumes implica quase sempre uma dose de esnobismo, de "novo-riquismo". Há quem tenha a sensatez e a educação para encarar isto como uma comodidade qualquer, algo de normal. Outros como o casal do primeiro parágrafo "perdem a cabeça", não conseguem distinguir serventia de escravatura. Talvez o sr. Tai e a esposa tenham alguma trauma de infância, ou querem "vingar" algum antepassado que fora em tempos escorraçado pelos seus amos no exercício das suas tarefas domésticas.

Nós, portugueses, também temos a nossa quota de "maus hábitos" no tratamento dos nossos auxiliares domésticos. Hoje estamos muito melhor, mas ainda há dez ou quinze anos eram comuns os casos em que os nossos expatriados de Macau faziam gato-sapato das empregadas. Fazendo jûs à marialvice bacoca, muitos abusavam sexualmente das empregadas, ou assediavam-nas, e depois as esposas ciumentas punham as culpas na coitadas e despediam-nas. Fiquei a saber de casos de exploração, trabalho não remunerado de todo, horas a mais que não eram compensadas, e mesmo agressões atrozes, que contadas ninguém acredita. É um luxo termos uma empregada em Macau, quando em Portugal isso é um privilégio ao acesso de poucos, e com sorte arranjamos uma "mulher-a-dias" para nos dar uma mãozinha duas vezes por semana, e ainda custam os olhos da cara à hora. Aqui encontrámos estas imigrantes que se encontram abaixo de nós na tal pirâmide social, e digam lá se não é uma sorte? Lembrem-se que ainda há 50 anos muitos de nós tinhamos avós, mães, tias e irmãs em França, numa situação idêntica a estas filipinas e indonésias que nos prestam o seu serviço em Macau. Respeitemo-las, pois, porque antes de olhar para o pouco que temos por baixo, pensemos na imensidão que ainda temos por cima. E vamos esperar que um dia não nos empurrem para baixo, e nos esmaguem.

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