quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Canção do beijinho


Nós portugueses somos por natureza um povo beijoqueiro. Nós e os brasileiros, os espanhóis, os italianos, enfim, deve ser uma característica dos latinos, dos povos de sangue quente. A verdade é quando um amigo e uma amiga se encontraram, trocam beijocas na face, e mesmo quando são apresentados, apresentam-se com um beijinho, como que para selar a nova amizade. Muitas vezes faz-se por educação, como quando encontramos as amigas da mãe ou da avó, em muitos casos senhoras obesas e com quilos de maquilhagem no rosto, que nos deixam a boca a saber a desodorizante do ar durante o dia todo. Para nós não cumprimentar alguém conhecido com um beijo na face chega a ser entendido como um sinal de má educação, e até de desprezo. A ordem é para beijar, e ponto final.

Já em Macau, as coisas mudam um pouco de figura. Os locais não vêem isto dos beijinhos com bons olhos, e a maioria rejeita esta demonstração de afecto. Alguns acham piada e não se importam de todo, e tratando-se de um português, aceitam esta especificidade cultural, e uma vez que os portugueses estiveram cá por mais de quatro séculos, não lhes é de todo estranha. Já se um chinês tentar beijar uma menina chinesa, mesmo que apenas no rosto, é visto como alguma espécie de tarado. Para eles cumpriementar uma menina com um beijinho pode ser entendido como um excesso de intimidade, e até uma ousadia, especialmente quando se trata da namorada de alguém. Mas sobretudo é visto como uma coisa “suja”; um hábito que facilita a transmissão de bactérias. Pensando bem até são capazes de ter alguma razão. Sabemos lá onde é que o tipo ou a tipa com que trocamos uma beijoca andou com a boca? Ou se lavou a cara nesse dia? E o que dizer da sua higiene oral? Se calhar gostamos de partilhar as nossas bactérias com os amigos, tal como gostamos de partilhar o lanche.

Os chineses não são dado a demonstrações físicas de afecto, especialmente se for apenas entre amigos. Um beijo, um abraço, uma mão dada entre um homem e uma mulher significa quase sempre que são um par amoroso, um casal de namorados. Escusado será dizer que cumprimentar uma menina chinesa com um beijo no rosto na presença do seu namorado é pouco recomendável, e se o tipo não souber que este é um hábito nosso, pode mesmo dar lugar a um mal-entendido. Em suma, a regra de ouro é muito simples: no tocar. “Do not touch”. Só é permitido ao namorado tocar na menina, e se a cachopa, mesmo que solteira, embarcar facilmente nestes costumes estrangeiros, é considerada uma leviana, uma badalhoca, e se está sempre disposta a andar aos beijinhos e aos abraços com os “kwai-lous”, com um ou dois copitos a mais ainda se consegue levá-la a “rodar” pela malta toda.

Neste aspecto os chineses são muito parecidos com os islâmicos. Só não tapam as mulheres dos pés à cabeça, mas vontade não lhes falta. Qualquer homem gosta de ver uma mulher atraente com uma indumentária que dê a revelar um pouco de chicha, mas o caso muda de figura se for a namorada a usar uma saia acima do joelho. Numa sociedade patriarcal como esta, não resta às meninas senão cumprirem os preceitos, por muita vontade que tenham de cumprimentar os amigos estrangeiros com um beijo no rosto. No fim de contas, como se diz lá na nossa terra, “não arranca nenhum bocado”. Para os homens chineses mais conservadores – que diabo, quase todos eles, mesmo os mais jovens! – beijar ou abraçar alguém do sexo oposto são os preliminares antes da penetração completa. Mesmo entre eles, quando um homem gosta de uma menina, não o demonstra, pelo menos até ter conquistado a sua confiança, o que às vezes pode demorar meses. É um protocolo que requer muito sangue frio…e piça mole.

Para nós, que vivemos deste lado e convivemos com estas diferenças culturais, não nos resta senão aceitar e cumprir as regras, fazer em Roma como fazem os romanos. Custa-nos bastante não poder dar um abraço a alguém que custamos, mesmo sem segundas intenções, mas depois a gente habitua-se. Eu próprio já me habituei a cumprimentar toda a gente com um aperto de mão, mesmo as senhoras. E mesmo assim por vezes sou mal interpretado; basta um sorriso mais longo ou uma demonstração de simpatia com o sexo oposto para que alguns cabeçudos pensem logo que lhe quero saltar para a cueca. Aceito as regras do jogo, mas não esperem que fale com uma mulher do mesmo jeito que falo com um homem. As senhoras requerem um trato mais dócil, sejam elas jovens, idosas, feias como o susto ou boas como o milho. Se não concordam, paciência, mas isso já parece ir um pouco mais além das diferenças culturais. Dá mesmo para desconfiar.

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