quinta-feira, 5 de setembro de 2013

No escurinho do cinema, parte VIII: e as crianças, senhores?


Quando um filme é "para todos", sabemos bem o que vamos encontrar: cinema infantil. "Para todos" é um eufemismo que significa "este filme é para criancinhas, portanto não espere encontrar violência, sexo, erotismo, obscenidades ou qualquer tipo de imagens e linguagem ofensiva". Nem sempre isto é assim, e muitos pedagogos acham discutível considerar alguns filmes ditos "infantis" próprios para crianças. A violência que implica à morte da avózinha às mãos do Lobo Mau na história do Capuchinho Vermelho, os pais que abandonam os filhos na floresta ou o canibalismo latent da bruxa em "Hansel & Gretel" (Joãozinho e Maria na versão portuguesa) ou o imaginário psicodélico de "Alice no País das Maravilhas" pode ser difícil de digerir para alguns pequenotes.

Se falamos de filmes infantis, falamos da Disney. A Disney é a mafia que controla os delírios cinematográficos dos pequenotes. Ninguém está autorizado a ter uma infância sem a autorização expressa da Disney. Mesmo a Pixar, a DreamWorks e outras companhias recentes de animação que nos trouxeram os maiores sucessos dos últimos anos são subsidiárias da Disney, que fica encarrega da produção, da distribuição e da publicidade - e escusado sera dizer, arrecada uma boa parte dos lucros. Algumas produtoras independentes ainda ousam rivalizar com a Disney, mas são tão poucas ou tão irrelevantes que preferem juntar-se à Disney, que guarda a sete chaves o segredo do sucesso. Um monopólio como poucos, que não deixa a concorrência pôr um pé em ramo verde.

O fundador da Disney foi um tal de Walt Disney, que apesar de ter dedicado a carreira aos filmes de animação, é o cineasta mais premiado da História, com 22 óscares em 59 nomeações, entre 1932 e 1969, três anos depois da sua morte. Muito se fala da personalidade do homem - afinal era ele quem ditava o que viam as crianças de diferentes gerações - e há quem diga quer era mau como as cobras. Morreu aos 65 anos de cancro do pulmão, resultado dos quatro maços de cigarros diários que consumia, e correm rumores de que o seu cadáver ficou preservado numa câmara criogénica para futura ressuscitação, que era uma ambição sua. Rumores sempre desmentidos pela sua família. Durante a "caças às bruxas" durante os primeiros tempos da Guerra Fria, fundou dentro da Academia um grupo que se dedicava a identificar e denunciar cineastas simpatizantes do comunismo, e foi várias vezes acusado de ser racista e anti-semitista. Apesar da sua controversa vida privada, deixou uma companhia que apenas em 2010 teve lucros de 36 mil milhões de dólares (36 000 000 000, todos estes zeros). Se o seu corpo está mesmo mumificado, deve ser venerado diariamente pelos gerentes da Disney.

Com ou sem Disney, os filmes para crianças têm o seu lado bom, apesar da sua previsibilidade e um certo sabor "insonso", que muitas vezes se distancia da vida real. São inúmeros os casos de películas que encantam os mais novos, adequados para a sua idade cerebral, mas que matam de tédio os adultos que os acompanham. Animais ou carros que falam, histórias de princesas, países fabulosos e criaturas imaginárias nem sempre bem conseguidos, contos com uma moral de bradar aos céus, encontra-se um pouco de tudo, do melhor e do pior. A animação é sem dúvida o género mais apreciado pela pequenada, pois permite-lhes escaper mais facilmente do mundo real, e permite aos produtores possibilidades infinitas, ideias que seriam impossíveis de concretizar com actores de carne e osso. Enquanto Walt Disney conseguia milagres com a velha técnica de desenhar directamente para a fita, encantando a geração dos nossos pais e avós, os animadores actuais recorrem aos computadores, a essa mina de ouro que é a imagem gerada por computador (CGI, na sigla em ingles), por detrás dos maiores sucessos do que se tem feito nos últimos anos em termos de animação.

Graças aos milagres do CGI e das novas tecnologias, a animação passou para o 3D, e "ficou mais próxima da realidade". É uma espécie de realidade virtual, o que se torna um paradoxo, atendendo que o propósito original sda animação é o distanciamento da realidade. Os filmes de animação mais premiados dos últimos anos e/ou maiores sucessos de bilheteira são super-produções, e na maior parte dos casos as vozes dos personagens são feitas por actores de renome: Tom Hanks, Mike Myers, Jack Black ou até Woody Allen (a voz da formiga principal em "Antz") constam do rol de pagamentos das produtoras. Para eles é óptimo poder receber um chorudo cachê sem precisar sequer de representar, bastando-lhes ler um texto em frente a um microfone, e dificilmente recusam um convite desta natureza. Confesso que não sou um grande fã destas ambiciosas produções; passei ao lado de filmes como "Shrek", "Cars" ou "Toy Story", e os únicos que realmente me deixaram a sonhar (e sorrir), foram "The Incredibles", que vi acidentalmente, e "Ratatouille", que tem um argumento delicioso. O resto deixo para os miúdos, e já quem em Macau os cinemas insistem na dobragem para cantonense, oferece-lhos o DVD e depois podem ver sozinhos.

Existe ainda animação que não é "para todos", e muito menos para criancinhas - longe disso. O regime soviete recorria amiúde à animação para se auto-promover e denunciar os vícios do capitalismo ocidental, e o classic "Animal Farm", de George Orwell, foi transposto para desenho animado. Foi nos anos 70 que se cometeu a última ousadia, com "Fritz the Cat", um "cartoon" pornográfico - e a indústria dos filmes para adultos tomou-lhe o gusto, especialmente no Japão, com o "anime" e o "hentai". A série de animação "The Simpsons", conhecida pela sua forte componente satírica, produziu em 2007 uma longa-metragem que muitas crianças de seis anos poderão não ter entendido muito bem. Mas o maior e mais delicioso exemplo é "Team America", de 2003, uma sátira à Guerra do Iraque feita em marionetas por Trey Parker e Matt Stone, os criadores da blasfémica série de animação "South Park". Já em 2000 a série tinha dado origem a uma longa-metragem que ficou muito longe de ser "para todos", mas "Team America" foi o mais louco dos delirios dentro deste género. E porque não? Ninguém disse que a animação era exclusivo das crianças...

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