terça-feira, 3 de setembro de 2013

No escurinho do cinema, parte VII: a ficção imita a realidade


Há filmes que nos tentam contar um episódio ou episódios da vida real, um veículo muito útil para quem não presenciou os acontecimentos nem ficou a saber deles pelo Telejornal das 8, mas gostaria de “ficar por dentro”. Existem três géneros que nos prometem contar como foi, o que se passou, quem eram estas pessoas que gostaríamos de ter conhecido mas não tivemos a oportunidade, ou de perceber porque tantos os amam ou odeiam, o que fizeram para que merecessem um filme sobre eles. Assim temos os filmes históricos, os documentários e a ficção baseada em factos reais. Dentro deste último encontramos histórias que tentam ser o mais fiel possível aos acontecimentos originais, outros que são apenas baseados na realidade, ou ainda remotamente baseados ou apenas inspirados, e finalmente os biópicos.

Os filmes históricos são um género praticamente extinto. Foram um tremendo sucesso até aos anos 60, e eram normalmente baseados em episódios bíblicos: “Ben-Hur” ( o filme mais premiado da História do cinema), “Quo Vadis” ou “Os dez mandamentos” são alguns dos mais conhecidos. O último grande filme deste rol terá sido “Spartacus”, de Stanley Kubrick, realizado em 1960. Vinte anos depois o canal Playboy lançou “Caligula”, considerado um dos piores filmes de sempre. O protagonismo pertencia a actores espadaudos, esbeltos, musculosos e broncos. Em plena segregação racial nos Estados Unidos, aos negros era reservado o papel de escravo. Charlton Heston, Kirk Douglas ou Victor Mature têm alguns destes filmes no seu currículo.

Um dos personagens recorrentes destes filmes histórico-bíblicos era Jesus Cristo, e deverá haver um sem número de películas que seguem a fórmula Salvador anunciado/todo misericordioso/o mais sábio entre os homens/morto pelos nossos pecados/ressuscitado. Nos últimos tempos os poucos filmes sobre Jesus são objecto de controvérsia. O musical “Jesus Cristo Superstar” causou a ira dos mais puritanos, que não gostaram de ver Cristo e a música rock de mãos dadas. Os Monty Python fizeram humor com a vida de Jesus com “Life of Bryan, mas foi com “A última tentação de Cristo”, de Martin Scorsese, que caíria o Carmo e a Trindade. Foi difícil de engolir a interpretação que Scorsese fez dos evangelhos, nomeadamente da hesitação de Cristo na noite antes do seu sacrifício, que o fizeram mudar de ideias e dizer ao sei Pai que encontrasse outro para ser pregado na cruz. Mesmo para quem não entendeu a imagem, o filme continha uma cena de intimidade entre Jesus e Maria Madalena, o que por si era já suficiente para aborrecer os Torquemadas desta vida.

Outro bom exemplo de “brincar com coisas sérias”, ou seja, atrever-se a questionar a linha histórica oficial que a Igreja deu da vida de Cristo, o seu pensamento ou as suas intenções, é “O Código da Vinci”. O filme foi baseado num “best-seller” de Dan Brown e passado para o grande ecrã com grande fidelidade, e apesar de ser 100% ficçional, isso não impediu a censura dos religiosos mais conservadores. Com que então Cristo casou com Maria Madalena e teve filhos. Caso completamente diferente foi “A Paixão de Cristo”, de Mel Gibson, uma super-produção que retrata o calvário de Cristo, tão ambiciosa que os diálogos eram em latim e aramaico, as línguas originais dos personagens. Os fiéis ficaram tão comovidos com a forma gráfica que os castigos impostos a Jesus foram apresentados, que lhes passou ao lado a agenda anti-semita do realizador, um conhecido racista que conduz sobre os efeitos do álcoole bate nas mulheres. Jesus dispensava este tipo de elogios, vindos de quem vêm. Digo eu.

Os documentários são um tipo de longa-metragem bastante complexo, e que raramente consegue reunir consenso do público em geral. Há sempre quem questione a veracidade dos factos, desminta os entrevistados, conteste as teses apresentadas, e há mesmo casos que acabam nas barras dos tribunais. O interesse dos documentários é relativo, e varia de pessoa para pessoa. Nos últimos anos um dos poucos que mereceu grande destaque foi “Supersize Me”, sobre os perigos da “fast-food”, que causou grandes embaraços à multinacional McDonald’s – embaraços, mas nunca prejuízos, e parece não haver documentário, rato morto na fritadeira ou empregados a limpar o rabo ao pão que abale a empresa dos arcos dourados.

Para se fazer um documentário de sucesso não basta limitar-se a apresentar os factos. É preciso dar um certo colorido ao filme, alguma teatralidade da parte dos interventes, e até recorrer a animação ou efeitos visuais. O maior especialista da actualidade em filmes de documentário é o canadiano Michael Moore, premiado com um óscar pelo seu “Bowling for Columbine”, que expôs os perigos da posse de armas de fogo na América. Moore é venerado por alguns liberais e odiado por outros, e ainda pelos mais conservadores. Ficou famosa a sua guerra de palavras com o president Bush, e a forma aberta com que criticou a sua administração, nomeadamente a guerra do Iraque e contra o terrorismo islâmico. Quer se goste ou no dele, Michael Moore é a grande referência do género, talvez a maior de sempre.

Os filmes baseados em factos verídicos ou pessoas reais são uma formula de bastante sucesso. Fica mais fácil passar para o grande ecrã uma história interessante do real do que escrever uma completamente nova. Mesmo Steven Spielberg, um dos maiores criativos da indústria cinematográfica, não conseguiu resistir à tentação, sendo “Schindler’s List” e “Munich” dois dos seus filmes de maior sucesso, e ambos relatando factos que constam dos livros de História. Quanto maior for a credibilidade que se dá ao relato e maior o investimento, maior o sucesso. A Academia tem por hábito premiar este tipo de producões, e algumas bem conhecidas como “O último imperador”, “Titanic” ou “Out of Africa” são bons exemplos disso.

Os biópicos são outra categoria "preguiçosa". Basta contar a vida de alguém remotamente interessante, investir na produção, e voilà!, sucesso. O melhor exemplo sera "Gandhi", de Richard Attenborough, que venceu oito óscares. Nem sempre é necessário que o personagem do biópico seja indiscutivelmente famoso para se ter sucesso, e por vezes basta contar uma boa história. Foram os exemplos de "Lawrence of Arabia", o já referido "Schindler's List", ou ainda "The English Patient" e "The Pianist", todos filmes aclamados que contavam a vida de personagens reais praticamente desconhecidos do grande público. O maior especialista deste sub-género será talvez o realizador húngaro-americano Milos Forman, que entrou com o pé direito em "Amadeus", e ainda conta no seu reportório como "The People vs. Larry Flint", sobre o fundador e proprietário do magazine para adultos "Hustler", e "Man on the Moon", sobreo o controverso e irreverente comediante Andy Kauffman, onde a interpretação de Jim Carrey foi para além de sublime.

Existem personagens que certamente dariam um excelente biópico, mas ainda ninguém teve a iniciativa. Talvez para não ferir sensiblidades, em alguns casos. Hitler aparece em muitos filmes, mas nunca foi feito um filme sobre a sua vida. Che Guevara foi alvo de dois biópicos; um bastante fraco, nos anos 70, com Omar Shariff no papel principal, e outro demasiado longo por Oliver Stone, que poucos terão visto. Spike Lee foi audaz ao fazer "Malcolm X", mas os cinéfilos ainda esperam um clássico que conte a vida de Mao Zedong, Stalin, e já agora, porque não, Osama bin Laden? Nada como o grande ecrã para reproduzir o passado, para fazer justice à história, para nos transportar ao passado. E parece mesmo tão fácil, às vezes.

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