terça-feira, 3 de setembro de 2013

Banho turco


O jogador Bruma vai representar os turcos do Galatasaray nas próximas cinco temporadas, como noticiei aqui ontem. O clube de Istambul é o mais conhecido da Turquia, e o único a conquistar um título europeu. Em 2000 o Galatasaray venceu a taça UEFA, derrotando na final os ingleses do Arsenal nos “penalties”, numa final disputada em Copenhaga sob apertadas medidas de segurança. A meia-final contra o Leeds ficou manchada pela morte de dois adeptos ingleses no jogo da primeira mão, na Turquia.

O futebol turco evoluíu bastante nos últimos anos, com os seus maiores clubes a dar cartas nas provas europeias, e a selecção a participar amiúde em fases finais de europeus, e no único mundial que disputou depois de 1954, obteve um terceiro lugar, no Japão e na Coreia, em 2002. Antes disto os clubes turcos eram conhecidos por serem um adversário complicado quando jogavam em casa, mas acessíveis na generalidade. Nos jogos em casa os adeptos turcos demonstravam o seu fanatismo criando um ambiente intimidador no estádio, por vezes como forma de compensar pela sua inferioridade técnica. Mesmo até há poucos anos recorriam a outros expedientes, como ligar para os quartos de hotel dos jogadores da equipa adversária durante a madrugada, para os “desconcentrar”, e são comuns as ameaças a atletas, técnicos ou adeptos visitantes nos dias que antecedem os jogos.

Para quem da Turquia apenas conhece o futebol, fica com uma imagem muito má dos turcos. O país foi durante séculos visto como uma presença incómoda, um inimigo do Ocidente: foi contra os turcos que se fizeram as cruzadas. Com o fim do Império Otomano e a I Guerra mundial – onde foram novamente os maus da fita – Ahmed Ataturk operou uma revolução nos costumes, adoptando o secularismo, que separava estado e religião, e os turcos enchiam-se de orgulho. A fidelidade aos princípios do secularismo idealizado por Ataturk esteve mesmo na origem dos protestos dos últimos meses, com milhares de manifestantes a demonstrar a sua reprovação pelas reformas do governo conservador, que queria “islamizar” o país. Curiosamente o mesmo secularismo que defendem com unhas e dentes no seu país é levado menos a sério em países como a Holanda ou a Alemanha, onde existe uma significativa comunidade turca. Os imigrantes turcos nestes países da Europa ocidentali não admitem sequer que se questione a presença das mesquitas que descaracterizam as suas cidades, nem toleram as críticas dos nativos, gritando de viva voz “racismo” se for preciso.

Considerados durante anos um povo de feios, porcos e maus, a Turquia foi considerada durante a grande parte do século XX um local pouco recomendável. Nada ajudou a má publicidade dada pelo filme “Midnight Express”, de 1978, inspirado no livro de Billy Hayes no ano anterior, que descrevia os horrores de uma prisão turca. Os turcos ficaram indignados, e Hayes veio mais tarde a pedir desculpas e a admitir que “exagerou numas partes e mentiu noutras”. Apesar de estarem cobertos de razão neste caso, os turcos demonstraram ser ainda um povo orgulhoso e complexado com o seu passado. Já um tema tabu é a invasão de Chipre em 1974, e a criação de um estado autónomo no norte da ilha, apenas reconhecido pela Turquia. Eles até sabem que estão errados, e por isso perferem não comentar o tema.

O futebol é o escape ideal para os turcos se afirmarem aos olhos do mundo; em competição contra outros países, é como a guerra que os seus antepassados otomanos travavam, mas sem derramamento de sangue. Na qualificação para o Euro 2000, a Turquia bateu a Alemanha por 1-0 em Bursa, curiosamente num estádio baptizado de...Ahmed Ataturk. Os turcos radicados na Alemanha saíram às ruas, agitando banderias e tentando provocar os seus hóspedes alemães com gestos e palavras. Cada vez que a selecção da Turquia ou um clube turco chegam longe numa competição internacional, os adeptos dizem-se "os melhores do mundo".

Além do fanatismo, os turcos são etnocentristas quando se trata do futebol. O nosso conhecido Mário Jardel jogou uma época no Galatasaray, que pagou 40 milhões ao FC Porto pelo jogador. Os seus adeptos incharam de orgulho por ter nas suas fileiras um jogador tão apetecido por outros clubes, e troçaram dos adeptos portistas, por terem "roubado" a sua maior referência. Curiosamente uma das razões que levou Jardel a não se conseguir adaptar ao futebol turco foi o facto de o quererem obrigar a aprender a língua. Reparem que estamos aqui a falar de Jardel, que mal domina a sua língua materna, o português.

Para os adeptos turcos, a vinda de um jogador mais ou menos conhecido é recebida com euforia. Nunca passou pela cabeça ao português Ricardo Quaresma ser recebido em êxtase no aeroporto pelos adeptos do Besiktas. Para estes Quaresma "escolheu" o Besiktas porque "é o melhor clube do mundo". O mesmo se passou agora com Bruma; para os fãs do Galatasaray o jogador foi "roubado" aos grandes pretendentes europeus. Já existe mesmo um vídeo no YouTube a dar as boas vindas ao jogador. Caso Bruma se transfira no final desta época para outro clube e se torne num dos maiores jogadores do mundo, dedicam-lhe uma estátua em frente do estádio, e claro, "foi no Besiktas que aprendeu tudo o que sabe".

Estando inscrita na UEFA, a Turquia defronta adversaries europeus, e para eles isto tem um sabor especial. Mesmo as negociações para a entrada do país na União Europeia são vistas como uma afirmação do povo turco. Muitos não sabem o que implica a entrada na UE, mas para eles é ponto assente: só pode ser uma coisa boa. Numa manifestação a favor da adesão da Turquia via-se um manifestante segurando um cartaz onde se lia: "Europe here we come" - Europa, aqui vamos nós. Para eles é como uma disputa, um jogo de futebol. Quando se pergunta a um turco se se considera europeu ou asiático ele responde: "nem um coisa nem outra: sou turco". E porque fazem tanta questão em aderir ao mercado comum europeu se não se consideram europeus? Sá para chatear, provavelmente.

Quem visita Istambul, Antalya, Ankara ou Bursa encontra cidades modernas, limpas, cheias de parques, zonas de lazer, nem um papel no chão. Os turcos fazem questão de mostrar ao mundo que não são os mouros bárbaros e sifilíticos, das casas-de-banho onde se defeca de cócoras ou do café rançoso. Com recursos humanos e económicos para se afirmar como uma das grandes potências mundiais do século XXI. Só lhes falta livrarem-se do peso do passado. Quem quer saber se há não sei quantos séculos eram os inimigos do Ocidente?

Sem comentários: