segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Não é defeito, é feitio


Artigo de quinta-feira do jornal Hoje Macau, desta vez um pouco mais atrasado que o habitual. Boa semana de trabalho!

Os escoceses costumam contar uma história antiga, que fala de um velho milionário de Glasgow que andava descalço “para economizar nas solas dos sapatos”. Os turistas sentiam pena do homem quando o viam, e muitos chegavam mesmo dar-lhes uns trocados, que o homem agradecia com um sorriso de orelha a orelha, e guardava as moedas religiosamente na bolsa de couro que levava à cintura do “kilt”. Não sei se esta lenga-lenga escocesa é mesmo verídica, mas desconfio que serve apenas para ilustrar a faceta de sovina de alguns dos simpáticos habitantes das terras altas da Grã-Bretanha. Quando conhecemos alguém muito forreta, sovina ou somítico lembramo-nos sempre do Tio Patinhas, um personagem da Disney que pretence ao nosso imaginário infantil. O Tio Patinhas era tão rico que nadava no dinheiro que guardava na sua caixa-forte, mas cada vez que gastava um tostão que considerasse mal gasto, sentia-se como se lhe tivessem arrancado as penas. Como nos divertíamos com as forretices do Tio Patinhas, que ainda por cima era de origem escocesa, o que vem dar alguma credibilidade ao conto do velho de Glasgow que nem as solas queria gastar. Menos piada têm os Tios Patinhas da vida real, tanto ou mais mesquinhos que o original.

Em toda a parte encontramos aquele tipo de pessoas que economiza, mesmo naquilo que consideramos o mínimo essencial para o nosso próprio conforto. Muitas vezes trata-se de gente com uma certa idade, que passou por dificuldades na infância e na juventude, que suou as estopinhas para juntar umas economias que o permitam dormir mais descansado. Dá valor ao dinheiro porque sabe quanto o custou ganhar. E de facto todos sabemos bem que é muito mais fácil gastar dinheiro do que ganhá-lo. A nossa relação com o vil metal é cruel, e só nos dá dores de cabeça. É como aquela mulher que adoramos e lhe damos tudo o que temos, e ela não só não retribui, como ainda nos é infiel. A poupança é um valor importante, um daqueles que devemos transmitir aos nossos filhos. No entanto há pessoas que levam este princípio tão válido a um extremo que se “esquecem” de viver. Se por um lado esbanjar é um vício pouco recomendável, o dinheiro foi feito para se gastar, e se for com sensatez melhor ainda. Partir da vida deixando uma fortuna no banco pode ser uma dádiva que os nossos descendentes agradecem, e com toda a certeza nos recordarão com carinho e respeito. Mas é preciso lembrar que deste mundo não se leva nada para seja onde for o destino final, e quem sabe se aqueles filhos ingratos ainda vão comentar um dia: “O velho era um sacana e um forreta, e ainda bem que me deixou umas massas para compensar pela maldade”.

Em Portugal tinha um vizinho que fazia quatro quilómetros de bicicleta todas as manhãs até uma padaria onde o pão saloio custava menos 50 centavos que na padaria da esquina. Achava-lhe imensa graça, talvez mais que a esposa e os filhos, que certamente se sentiam envorgonhados da sovinice do senhor. Em Macau recordo-me de um episódio que aconteceu comigo há alguns anos, quando ainda vivia na zona de S. Lourenço. Havia uma mercaria perto de casa onde comprava habitualmente cervejas, cigarros, bolachas e outros géneros mais curriqueiros, e a proprietária já me conhecia de gingeira, ao ponto de ter alguma confiança que nos permitia trocar dois dedos de conversa. Um dia comprei um gelado, uma daquelas barras de chocolate num pauzinho, que custava 15 patacas. A senhora disse-me então com um ar muito paternalista (ou maternalista, neste caso): “Quinze patacas…com este dinheiro podias comprar uma caixa de arroz”. Fiquei meio atordoado com aquela reação, e logo vinda de quem eu acabava de dar negócio. Poucos segundos depois, já recomposto, expliquei-lhe que não me apetecia uma caixa de arroz, mas sim aquele gelado, e que já tinha almoçado. Em todo o caso agradeci-lhe a dica, tão preciosa que posso sempre usar quando resolver começar a minha fortuna. A vida é mesmo assim: há horas para comprar caixas de arroz, e horas para comprar um gelado.

Em Macau, apesar do luxo e da ostentação dos hotéis de cinco estrelas e dos casinos, temos muitos exemplos de Tio Patinhas. Já perdi a conta das vezes que vejo no banco velhotes com aspecto de mendigo, mas que quando chegam à caixa abrem uma folha de jornal onde embrulharam centenas de milhar de patacas em notas – imagino quantos ainda devem guarder o dinheiro debaixo do colchão. Aliás e a esse propósito, já não me surpreende cada vez que leio aquelas notícias de idosos que caem num dos muitos contos do vigário feitos à sua medida, e que em muitos casos têm 500 mil patacas à mão de semear. Se calhar guardam um milhãozinho na lata das bolachas. É comum ver aqueles cidadãos a remexerem nas latas do lixo à procura de latas de alumínio e de cartão, que depois de uma manhã de esforço, debaixo do calor e da chuva, trocam por umas míseras 20 ou 30 patacas, e em muitos casos sem necessidade disso. No Largo do Senado está habitualmente uma senhora que aborda os transeuntes com um sorriso e de mão estendida, pedindo esmola. Apesar da idade avançada, não tem de todo aspecto de quem se precisa de rebaixar a esse ponto, até porque um olhar mais atento permite observar que ostenta um brinco de ouro em cada orelha. Para quem chega de fora e depara com este espectáculo, vai pensar que em Macau existe muita miséria.

E não são apenas os mais velhos que manifestam sintomas de avareza, que deve ser um mal hereditário. Quando os meus colegas descobrem que chego a gastar 100 patacas num almoço mais que uma vez por semana, entram quase em estado de choque. Se vou sair com amigos chineses e vamos a um bar onde uma cerveja custa 30 patacas, não resistem a comentar que “no supermercado custam apenas 6 patacas”. Limito-me a encolher os ombros. Tenho um colega que usa a internet na biblioteca, e apenas para ficar a par das oscilações da bolsa de valores. Em casa não liga o ar-condicionado, limitando-se a abrir uma janela, e se estiver mesmo muito calor, vai até ao McDonald’s mais próximo e passa lá a tarde inteira a ler um livro e a “embalar” um chá com leite que lhe custou dez patacas. Pois é, tal como o amor, a avareza não escolhe idades.

Este fenómeno explica-se talvez pelas próprias origens da população de Macau, segundas e terceiras gerações de refugiados da Guerra do Pacífico, gente sem eira nem beira que atravessou a fronteira para escapar aos horrores da ocupação japonesa, e que passou as passas do Algarve para ganhar a vida. Por isso regem-se pela máxima de “um tostão poupado é um tostão ganho” – curiosamente esse era também o lema do Tio Patinhas. A única excepção deve ser a batota, o jogo, que por estas bandas é quase uma religião, e que custa a muitos anos de poupanças e de esforço. O jogo é a armadilha do forreta, mesmo do mais militante e ponderado. É a árvore onde se encontra o fruto proibido no Éden da avareza. Diz-se que para os chineses, o mais importante “é ter casa própria”, e se tiverem duas ou três, é sinal de grande prosperidade, sintoma de uma gestão inteligente. O pior é que mesmo depois disso não deixam de acumular dinheiro e casas; ficam vicidados no veneno da forretice mais rasteira. Por isso não é por mal que depois nos cobram aquelas rendas que toda a gente sabe. Não é defeito, é apenas feitio.

Sem comentários: