quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Estou sim? Atenção aos períodos!


Desde que me conheço que tenho telefone. Reparem que digo “telefone”, e não telemóvel. A geração que cresceu nesta era dos celulares provavelmente nunca viu um daqueles telefones quadrados, pretos, com um disco no meio de onde se marcavam, ou “discavam”, os números. Era um desses que eu tinha lá em casa, em cima da credência do corredor, mesmo à entrada de casa. Já agora vão procurar também “credência” e “corredor” no dicionário, que fica complicado explicar aqui, e não se situa no contexto.
Quando era puto, e refiro-me à década de 80 do ano passado, não era toda a gente que tinha telefone em casa, pelo menos em Portugal. Tinha um colega de escola que vivia na Jardia, uma freguesia do concelho do Montijo, e estávamos separados apenas por vinte minutos de autocarro. Como ele não tinha telefone, quando precisava de o contactar durante as férias, escrevia-lhe uma carta! Outro colega que tive no sétimo ano não tinha rede fixa, e quando ia à minha casa ficava maluco quando via o telefone, agarrava-se a ele e começava a discar aleatoriamente, como se aquilo fosse um brinquedo novo e ele tivesse dois anos de idade.

Quando nos juntávamos na casa de um colega, o seu passatempo favorito era fazer chamadas falsas para a Praça de Táxis, e depois divertia-se a espreitar pela janela e ver o pobre homem a andar às voltas, procurando o potencial cliente que nunca chegaria.
Naqueles tempos fazer um telefonema era uma coisa séria. Em Portugal as chamadas eram contadas por “períodos”, um espaço de tempo que era pago, e quanto mais tempo demorasse a chamada, mais se pagava. Recordo-me com ternura do meu pai a chamar-me a atenção quando ficava ao telefone com os amigos ou as namoradas na conversa: “olha os períodos!”. Ninguém diz mais isto nos tempos que correm. Que saudades. Havia mesmo uma anedota parva que se contava a este respeito: “- Olha lá, telefone é masculino ou feminino? – Masculino, ora, o telefone… - Com tantos períodos???” Oh, oh, oh…períodos…período, sacaram? Fossem os CTT tão espirituosos naquela época e mandavam a conta do telefone contabilizando as “menstruações” daquele mês.

Para nós, pobres e atrasados tugas, os telemóveis eram uma miragem. Mesmo aqueles telefones domésticos sem fio que se podiam levar para a sala, cozinha e casa-de-banho eram um luxo, uma tecnologia de ponta. Quando viamos nos enlatados americanos os tipos a falarem de um telefone instalado nas traseiras de um automóvel caía-nos o queixo de espanto. Ainda me lembro de quando apareceram os telemóveis em Portugal. Estaríamos no ano de 1992, se não estou em erro, e no primeiro anúncio da rede móvel (Portugal Telecom?) via-se uma idosa num barco da Transtejo a falar no telemóvel e a berrar: “Uolha, estou a atravessari o Teijo!”. Era uma novidade revolucionária. Falar ao telefone sem ser de casa, da cabine ou do café da esquina? Como sempre os mais velhos reagiram com desprezo: “qual telemóveis qual carapuça”. Foi a mesma coisa com a internet; os velhos sentem-se ameaçados pelas novas tecnologias porque pensam que sabem tudo e têm receio de não as saberem usar. Depois de lhes passar a casmurrice aderem, e no início comportam-se como crianças que acabaram de aprender a atar os sapatos.

Quando cheguei a Macau em 1993, os telemóveis eram muito mais utilizados do que em Portugal, muito por influência de Hong Kong, sempre na linha da frente da modernidade. Os aparelhos eram do tamanho de tijolos e as chamadas custavam os olhos da cara, mas quem tinha um telemóvel não se inibia de o ostentar. Qualquer banalidade era pretexto para sacar daquela engenhoca que fazia lembrar um “walkie-talkie”, e espetá-la no ouvido com a anteninha em riste, que se assemelhava ao espinho de um ouriço. Quem adquiria um telemóvel, duas semanas depois considerava-o “indispensável”. E aí nasceu a espécie de indivíduos que alega “perder milhões” quando fica sem rede durante dez minutos. Alguns anos depois o uso do telemóvel era tão comum que acabaram os “pagers”, também conhecidos localmente por “PPQ”. Não era lá muito prático, mas pessoalmente achava encantador ligar para a central e deixar uma mensagem ao portador do “pager”, e tantas vezes o texto que recebiam em inglês era hilariante.

Quando fui às Filipinas pela primeira vez em 1998 e passei duas semanas no interior rural, senti-me como se tivesse viajado no tempo. As localidades tinham apenas um ou dois telefones por centenas de habitantes, e telemóveis, nem vê-los. Estes telefones fixos ficavam normalmente situados numa mercearia, e cuja proprietária conhecia toda a vizinhança como a palma da mão. Quando recebia uma chamada destinada a um dos aldeões, lá ia ela a arrastar os chinelos pelo chão de gravilha, qualquer fosse a hora, fizesse chuva ou fizesse sol, até à casa do receptor da chamada. Esta merceeira era a guardiã do templo, a emissária encarregada pela civilização em estabelecer o contacto com os confins do mundo.

Foi aí que percebi a estranha relação dos filipinos com os telefones. Em Macau passavam horas a tagalerar com os compatriotas, em alguns casos residentes no mesmo prédio. Para eles era um luxo. Ficar horas ao telefone sem chatear ninguém ou sem que ninguém os chateasse era uma autêntica novidade. Alguns senhorios bloqueavam o IDD da sua rede fixa, de modo a evitar que os seus inquilinos filipinos fizessem chamadas para a terra e depois não pagassem a conta, levando à suspensão do serviço. Até há alguns anos existiam duas farmácias no centro da cidade onde se podia usar gratuitamente o telefone, e onde estava um telefone grátis, estava um filipino. O que lhes valia é que as chamadas locais são gratuitas, e os tais “períodos” só contam nas chamadas internacionais.

Com a banalização da rede móvel, qualquer dia a rede fixa fica apenas reservada aos espaços comerciais ou às repartições públicas. De facto é muito mais cómodo falar no nosso próprio aparelho que podemos levar para toda a parte dentro do bolso em vez de encostar as beiças num telefone que centenas de desconhecidos conspurcaram com saliva, ou encostar o ouvido onde quem sabe antes de nós esteve alguém com uma otite. Só aderi ao telemóvel em 2006, quando tive obras em casa e fiquei incomunicável. Fui um dos últimos a cair, mas reconheço a utilidade desta tecnologia. Por outro lado, e como a memória não é curta, recordo-me como se fosse ontem do tempo em que não existiam, e nem por isso éramos menos felizes, ou as pessoas deixavam de se comunicar. Quem afirma que “não consegue viver sem telemóvel”, deixou de usar telemóvel, e passou a ser usado pela máquina. É um pobre escravo.

Quando os telemóveis passaram de tijolos a uma engenhoca mais portátil, começou a reduzir drasticamente de tamanho. Começaram mesmo a aparecer no mercado aparelhos que cabiam na palma da mão. Antes que a moda chegasse aos celulares que se podiam levar debaixo da unha do dedo mindinho, eis que surgiram os “smartphones”, os telemóveis inteligentes, “da última geração”. Estranhamente estas “gerações” sucedem-se de meses em meses, e os tansos gastam fortunas nos últimos modelos, que surgem no mercado ao ritmo de duas ou mais vezes por ano. Estes “smartphones” são como um computador, com acesso à internet e mil e uma aplicações encantadoras, que levam os consumidores a poder fazer tudo menos…chamadas telefónicas. Ah sim, também servem para isso, claro, que parvoíce. Mas não tem importância, pois o que se pode dizer com a voz fica mais fácil nas redes sociais.

Sem dúvida que progredimos muito no campo das telecomunicações. Das pinturas rupestres aos papiros, passando pelos sinais de fumo, até ao código morse e aos primeiros telegramas, a humanidade sempre se esforçou em tornar o mundo mais pequeno, encurtar as distâncias, ou como se diz naquele bordão muito catita, “ficar à distância de um clique”. Longe vão os tempos em que o carteiro era aguardado religiosamente, ou em que os jornais davam as notícias com dias de atraso e era o melhor que tinhamos para andar informados. Hoje não há um peido que uma celebridade dê e que o mundo não fique todo a saber em menos de cinco minutos. O que diriam Graham Bell e Guillermo Marconi se fossem vivos e tivessem um “smartphone”? Nada…verificavam o e-mail, e depois passavam o dia a jogar “Candy Crush”. E porque haviam eles de ser diferentes de nós?

1 comentário:

Unknown disse...

por acaso tenho o mesmo pensamento. desde que me lembro de ser gente que ja havia telefone la em casa, daqueles enormes como na imagem. e o meu pai ate comprou aquele telemovel que vinha numa mala... na altura aquilo ea o boom tecnologico :) evoluiu tudo tao depressa

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