O dia 1 de Março marcou a abertura das inscrições no ensino pré-escolar do território. A partir das 3 da madrugada de quinta-feira, pais, encarregados de ecucação e outros familiares já faziam fila à porta de Jardins de Infância para tentar garantir uma vaga para o seu benjamim. É um cenário que se repete todos os anos, não é novidade nenhuma. O futuro destes jovens entre os 3 e os 6 anos começa a ser definido agora, e um lugar numa das instituições de ensino mais afamadas é considerado uma vantagem. As escolas Pui Cheng e o Colégio Santa Rosa de Lima são normalmente as mais concorridas.
Este é uma dos aspectos mais singulares da cultura chinesa. Para nós, ocidentais, não faz muito sentido que o infantário possa ter uma importância decisiva a longo prazo. Afinal tratam-se de crianças com menos de 5 anos, com um longo caminho pela frente, e não é o facto de iniciar a escolaridade num estabelecimento com “pedigree” que os vai tornar em adultos geniais. A luta pelas vagas chega a ser resolvida nos bastidores, e vigora mesmo um sistema de “cunhas”. Quem tem um familiar, amigo ou outro tipo de influência garante sem dificuldade colocação numa das escolas mais requisitadas. Se me permitem a ousadia, até penso que esta não é uma lição de vida que os pequenotes deviam aprender. É um mau exemplo.
Mesmo os pais que se contentam com pouco não se livram de uma grande dor de cabeça: existe uma evidente falta de vagas no ensino pré-primário. O problema tem uma tendência a agravar-se num futuro próximo: existem normalmente cinco mil vagas por ano nos jardins de infância em Macau, e o número de nascimentos em 2012 foi superior a sete mil. Muitos casais aproveitaram o Ano do Dragão para produzir “dragõezinhos”, e caso não aumentem o número de vagas nas escolas, vai ser o caos daqui a dois anos. Vamos ter os pais a acampar à porta dos infantários pelo menos uma semana antes do período de inscrições.
Mais do que garantir uma educação propriamente dita, o jardim de infância serve sobretudo para os jovens terem um lugar para ficar enquanto os pais trabalham. As famílias chinesas contam normalmente com a ajuda dos mais velhos, normalmente os avós, ou contratam uma empregada, enquanto as crianças têm apenas um ou dois anos. Mas quando chega a hora da alfabetização, torna-se necessário recorrer aos profissionais. O facto da grande maioria das escolas serem privadas torna as coisas mais complicadas e caras. Em Macau a educação é sobretudo um negócio, quando devia ser um direito. O ensino público é aqui muito mal visto. É uma opção reservada aos mais pobres ou às famílias disfuncionais.
A forma como o ensino é estruturado nas escolas chinesas é considerado “pragmático”, mas eu chamar-lhe-ia simplesmente cruel. Existem “rankings” de alunos determinado pelo desempenho, e os piores classificados arriscam-se a ser despromovidos – é um pouco como no futebol. Não surpreende portanto que os pais se empenhem tanto na educação dos filhos, e no período de exames os jovens entram numa espécie de “estágio”. Alguns dos meus colegas tiram férias para acompanhar a preparação dos filhos, e são suspensas todas as actividades que não tenham a ver com os estudos. É uma competição feroz, e naturalmente que nem todos podem entrar nos “top-5” ou nos “top-10” da sua turma. Os que persistem na cauda da tabela são encorajados a sair para uma escola considerada “inferior”, e um eventual regresso fica-lhes vedado. O sistema é implacável, e impera a lei do mais forte.
Um pouco à margem de tudo isto está o ensino de matriz portuguesa. Para a nossa cultura a escolaridade é entendida de uma forma mais descontraída, e na prática apenas os resultados a partir do ensino secundário complementar é determinante para uma eventual colocação no ensino superior; até ao final do 9º ano não se pede mais que a simples aprovação. Não passa pela cabeça de ninguém que um aluno seja impedido de se inscrever na Escola Portuguesa simplesmente porque reprovou no ano lectivo anterior, ou obteve apenas resultados sofríveis. Mesmo a cerimónia que anualmente premeia os melhores alunos da EPM é suspeita para alguns – menos para os pais dos alunos meritórios, claro. É uma daquelas coisas “à moda de Macau”.
Mas voltando ao problema das vagas nos jardins de infância, são exactamente os estabelecimentos de matriz portuguesa que podem beneficiar com toda esta loucura. Há pais de etnia chinesa que começam mesmo a considerar inscrever os filhos no Costa Nunes ou na Flora, onde é menos complicado conseguir uma vaga. Além disso, o ensino em português é considerado de qualidade, sendo o único senão a vertente cultural. Mesmo entre os pais macaenses, portugueses de Macau, existe ainda o preconceito de que apenas a via de ensino em chinês ou as escolas internacionais que privilegiam o ensino do Mandarim são opções com futuro. Quanto a isto vou recorrer a um chavão: “o futuro a Deus pertence”. Não vai ser o domínio de uma língua que vai garantir um emprego ou uma carreira de sucesso. Isso depende de uma série de factores, muitos deles abstractos, e todos sabemos muito bem que nem sempre uma educação de topo garante um bom emprego. É um pouco como obter uma vaga num jardim de infância de topo: às vezes é preciso ser vivaço e “espertalhão”. E quem disse que este mundo é justo?
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