sexta-feira, 22 de março de 2013

E se acaba o sumo?


Para quem ainda nãoleu, fica aqui o artigo da edição de ontem do Hoje Macau.

Um casal de vizinhos meus tem uma filha, uma jovem que praticamente vi crescer, e que depois de terminar o ensino secundário em Macau foi prosseguir os estudos em Taiwan. Quatro anos depois e com um curso em Saúde Alimentar e Nutrição regressou à origem com a mala cheia de sonhos, mas o que encontrou no início foram contas por pagar. Como não conseguiu emprego na área da sua formação, trabalhou por algum tempo num casino, e poucos meses depois encontrou uma posição de secretariado numa instituição de ensino, que mesmo não sendo aquilo em que investiu como carreira, sempre lhe garantia um horário fixo, e uma saudável distância do frenesim casineiro. Uma história banal, como tantas outras, sem contornos de tragédia ou sequer um final feliz. É assim com muitos jovens de Macau que entram no mercado de trabalho.

O território é visto como um caso de sucesso; o desemprego é residual, e com alguma vontade atingiríamos o pleno da empregabilidade. O drama é que as opções passam quase inevitavelmente pela área do jogo, directa ou indirectamente, e mesmo as restantes dependem das suas receitas para sobreviver. Há quem se adapte com facilidade a esta realidade, e há até quem considere a tal diversificação da economia de que tanto se fala mera “demagogia”. Enquanto a economia cresce acima dos dois dígitos e as receitas do jogo vão enchendo os cofres do erário público a um ritmo alucinante, vamos todos cantando e rindo. Encontrámos a receita do sucesso, a panaceia anti-crise, e não é à toa que outros países e territórios nos queiram imitar. Somos deliciosamente invejados por todos, e até Las Vegas precisa de olhar para cima para nos ver, qual dragão indomável em direcção ao infinito. Mas e se este “limão” do jogo que vamos espremendo e cujo sumo vai servindo jarro atrás de jarro de limonada secar um dia? E se o infinito que o dragão agora calcorreia tem na verdade um fim?

Se os antigos gauleses apenas temiam que o céu lhes caísse em cima de cabeça, as nossas preocupações são bem mais válidas. Não há reservas acumuladas ao longo destes anos de lucros quase pornográficos que nos deixem dormir descansados perante as ameaças que pairam constantemente sobre o nosso ganha-pão. Trememos cada vez que se fala da possibilidade de um novo destino de jogo nos arredores, especialmente se for na China, engolimos em seco quando as receitas diminuem dois meses seguidos, e “corremos igreja” à boa maneira macaense, rezando a todos os santinhos que o Governo Central não nos abandone e mantenha a política de vistos individuais. Quantos mais melhor, mesmo que em prejuízo para a qualidade de vida dos residentes. Afinal, do mais ou menos. No dia em que a última gota de sumo pingar do limão, os nossos amigos americanos viram-nos as costas, e arriscamo-nos a ter uma versão moderna das Ruínas de S. Paulo, mas com muito mais que uma simples fachada: as Ruínas do Cotai. Duvido é que tenha o mesmo valor histórico ou apelo turístico.

Fico apreensivo quando escuto a população comentar sobre o facto de muitos empresários e mesmo alguns dirigentes da RAEM terem adquirido propriedade no estrangeiro, e na maioria dos casos têm um “segundo” passaporte. Mandam os filhos estudar lá fora, às vezes só com bilhete de ida, e os que regressam têm garantida uma carreira de sucesso. Assim se vão renovando os monopólios das “famílias tradicionais”. É triste entender isto como um “plano de emergência”, caso “qualquer coisa falhe”. Mas o que poderá falhar, se apesar de tudo “ eles sabem o que estão a fazer”? E para onde “fugimos” nós? Qual é o nosso bote salva-vidas, e caberemos lá todos? Se quem manda na tropa anda desconfiado, o que dizer de nós, o pobre povo rico?

Os bairros degradados, o trânsito caótico, a especulação imobiliária, o desordenamento urbanístico, o desrespeito pelo ambiente e tudo mais são problemas comuns a muitas cidades sem a mesma sorte de Macau. Temos dinheiro de sobra para tapar todos esses buracos e mais alguns, e se não existe vontade é porque talvez há quem entenda que somos um território a prazo, sem futuro, e a ordem é sacar o mais possível, antes que seja tarde demais. Qualquer dia chegam os pais a casa e o filho adolescente é obrigado a acabar com a festa e mandar embora os amigos – e ainda leva umas palmadas por cima. Pode ser que eu esteja enganado, e que um dia tenhamos uma cidade onde dê gosto viver, onde se respire confiança, e podemos finalmente dormir descansados. Só que enquanto isso ainda não acontece, o melhor mesmo é ir estudar Bacará em vez de Saúde Alimentar e Nutrição.

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