sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Temei, pecadores


Muito ao jeito do que nos tem habituado durante o seu ainda curto pontificado, o Papa Francisco quis auscultar os católicos, e saber a sua opinião sobre temas fracturantes que a própria Igreja Católica se tem recusado a discutir: aborto, divórcio, contracepção, casamento "gay" e a própria homossexualidade. Isto insere-se na imagem progressista que este Papa tem revelado desde que ocupa a cadeira de Pedro, mas poucos acreditam que qualquer que seja o resultado desta "pesquisa", o Vaticano altere a sua posição quanto a estes assuntos que ainda trata como tabú. Podiamos especular sobre uma "revolução" a operar pelo Papa Francisco no sentido de furar a casca dura da igreja quanto a estes temas e trazê-la para a modernidade, fazer regressar os fiéis alienados, e apresentá-la como uma alternativa moderna e convidativa para as novas gerações de crentes. Mas não. Uma ovelha não faz um rebanho.

A propósito de tudo isto, perguntou-se ao bispo de Macau, o emérito José Lai, o que acha da iniciativa do Papa, e a reportagem de Rita Marques Ramos no Hoje Macau de hoje deixa bem claro o que pensa a entidade máxima da Igreja Católica na RAEM. Podia dizer que fiquei chocado com as opiniões de José Lai, que fiquei boquiaberto com os seus comentários, mas nada disso: não disse nada que não se esperasse dele. Em Macau pratica-se o catolicismo cegamente obediente à bitola mais conservadora da Santa Sé, com uma cláusula que prevê evitar pisar os calos à Igreja Patriótica Chinesa, e manter-se alheio às diferenças entre Pequim e o Vaticano. No fundo José Lai até é boa pessoa, é um bispo "vintage", a pessoa certa no lugar certo. A sua cassete é aquela que todos esperam ouvir. Foi programado para não pensar, não agir, não discordar e não sentir. Está ali para fazer de bispo, pronto. Da Igreja Católica. Querem mais o quê?

Podia ter ignorado a reportagem, mas a capa do Hoje chamou-me a atenção: "Os gays são nossos irmãos com mais dificuldades". O quê? Dificuldades? Quais? Querem ver que Macau se tornou um daqueles estados como a Arábia Saudita ou outros onde os "gays" são perseguidos, detidos, torturados e enforcados? Agora a sério, será que os "gays" estão a ser descriminados em Macau? No acesso ao emprego, à educação ou à saúde? Não disfrutam dos mesmos direitos civis que toda a gente? São apontados na rua, apedrejados e obrigados a usar uma estrela cor-de-rosa no macacão, ao estilo dos campos de concetração nazi? Bem, só me resta abrir na página 6 e descobrir. Respirei de alívio. É só o nosso bispo a ser...bispo. Nada de especial.

A retórica do bispo José Lai é tão previsível que fosse ele a tômbola que deita as bolas do "Mark-Six" todos apostavam e ganhavam sempre. O bispo de Macau não vê quaisquer sinais de abertura por parte do Vaticano quanto às questões que o Papa Francisco quer perguntar aos católicos. É só perguntar, e perguntar não ofende. Claro que se vai continuar a desaconselhar o aborto, a contracepção, as uniões civis entre pessoas do mesmo sexo, e até as uniões civis, ponto final. Interessante a opinião de José Lai sobre os casais que optam por viver juntos sem casar; para ele estas uniões duram "um mês", ou "uma semana", e o casamento é para sempre, e tem como finalidade "o homem e a mulher ajudarem-se um ao outro", e com vista à "procriação da humanidade" - como se a espécie humana estivesse em risco de extinção. Podem até chatear-se um com o outro de quando em vez, claro, é normal, e a Igreja admite uma separação "para poderem reflectir". "Take a break, have a Kit Kat", estão a ver? Mas divórcio? Nem pensar, que é coisa do demo.

Estas opiniões sobre fornicação, divórcio, camisinhas ou desmanchos são apenas o aperitivo para o prato principal: a homossexualidade. O Papa Francisco teve a ideia peregrina na Igreja Católica ao dizer que os "gays" também são seres humanos como os outros, apenas com uma orientação sexual diferente. Agora pergunto eu: diferente do quê? Quem escreveu as regras sobre qual a orientação sexual correcta, e qual a "diferente". Ah já sei, aquela que não dá bebés é a resposta errada. Pelo menos o Papa Francisco teve a coragem de sair da caverna e olhar mais longe, mesmo que ainda não tenha largado a clava. Já o nosso bispo, mantêm-se na retranca, a desenhar cenas de caça nas paredes da gruta. Os "gays" são pessoas, tudo bem, dá-lhes isso, mas "precisam de ajuda", coitadinhos. Estão "confusos" quanto ao que entra e onde entra. Enfim, perderam-se no caminho da longa estrada desse destino final, aquilo que todos viemos ao mundo para fazer: bebés. Mas casados, ouviram?

José Lai não condena os "gays", mas sim "a atitude", aquela, vocês sabem qual é. É como chegarmos perto de alguém e dizermos: "gosto de ti como membro da minha espécie, mas todo o resto relativo à tua existência enoja-me e leva-me a que te despreze". Claro que devemos admitir os "gays" na igreja, porque não? Para ensiná-los, para que encontrem o caminho certo. São um pouco como os cães que nos mijam na alcatifa: é preciso ensiná-los a pedir para ir à rua. São doentes, no fundo, coitados. Deixemo-nos de rodeios, sr. bispo, são loucos não é? São maluquinhos e deviam ser enfiados numa camisa de forças, e já agora um cinto de castidade. A igreja tem o dever de os curar, certo? Vamos lá ver, já os assaram na fogueira, já tentaram as sanguessugas, os electrochoques e a lobotomia, falta mais o quê? Agora são "gays", mas com alguma orientação (a da igreja, claro), podem ficar curados. São um pêssego podre, mas com um caroço bom.

Os "gays" são pecadores, diz o senhor bispo. O que eles fazem, ao trocar o xixi com o outro xixi pelo xixi com o mesmo cócó estão a desobedecer a Deus, que criou um homem e uma mulher para que não houvessem confusões. Devia ter ficado por aí, se calhar, pois ao deixar que destes dois originais saíssem tantas cópias, existia uma forte possibilidade de quererem, sei lá, tentar qualquer coisa de diferente? Nas palavras dos Monty Python, "and now for something completely different". Talvez isto se explique com um erro de engenharia da parte do criador. Se Ele não queria que estes comportamentos "contra-natura" sucedessem, porque deu a ambos uma tomada? O mais grave é que esta promiscuidade vai acontecendo, e nem um ralhete de Deus para ver se todos se começam a portar bem. Nem um trovãozito a cair na cabeça de um sodomita. É pecado? Está bem, diz o senhor, mas o que diz o Senhor?

Jesus entra na equação. Segundo José Lai, a parábola da mulher adúltera exemplifica a aversão de Cristo pelo pecado, mas o problema é que de tudo o que se sabe daquilo que Jesus disse, não existe uma única referência directa à homossexualidade. É melhor aguardar por uma segunda vinda do Salvador para deixar tudo em pratos limpos. Mesmo na Bíblia o Antigo Testamento, o tal que os cristãos rejeitam por o considerarem "demasiado violento" - foi um período em que Deus andava especialmente irritado - é bastante gráfico quanto à condenação dos homossexuais: o Levítico, o terceiro livro das escrituras, condena a homossexualidade como "uma abominação". Este é o mesmo livro que determina que as mulheres adúlteras devem ser apedrejadas até à morte e as crianças desobientes degoladas pelos sábios do concelho. Na Génesis temos o exemplo de Sodoma e Gomorra, no livro de Samuel os casos específicos de David e Jonatás, e no livro de Rute o seu envolvimento ilícito com Naomi. No Novo Testamento, a Nova Aliança, todas as referências são ambíguas e passíveis de interpretações diferentes, e até de traduções diversas.

Se o senhor bispo José Lai considera que os "gays" são "infelizes", porque são "pecadores", é possível que esteja enganado. Eu conheço muitos que não só são felizes, como ainda se divertem bastante, e não se preocupam muito com o que pensa outro homem da sua conduta, se os outros pensam que eles estão a pecar ou não. Se a Igreja não quer aceitar os homossexuais ou as restantes facções cujos comportamentos são ainda reprováveis à luz dos cânones, isso é com eles. Nem a Igreja os obriga a lá ir, nem eles os podem obrigar. Se a intenção do Papa Francisco é mesmo boa, estará a pregar no deserto, pois esta obsessão do Vaticano com a sexualidade, e com aquilo que as pessoas podem ou não podem fazer com a sua vida, é suspeita. Podem tentar ligar para Deus e pedir-Lhe para que intervenha, mas todos sabemos que não têm o número. E nem Deus lhe daria. Para quê?

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