Quarta-feira, 13 de Novembro, fim da tarde. À saída do trabalho passo pelo Mercado da Mitra e compro legumes para fazer sopa. Chegado a casa, seleciono uma cenoura pequena, e corto algumas lâminas que deixo no pratinho com a imagem do Templo da Barra - o prato do sr. rato, o meu imprevisível mas habitual visitante nocturne, o meu misterioso inquilino. Mais tarde nessa noite, depois de um jantar composto pela tal sopa e meia dúzia de rissóis de pescada, deixei o repasto inteiramente composto por cenoura no lugar do costume, à espera do sr. rato. Estou em frente ao computador a fechar o dia no blogue; passava da meia-noite, e já corria contra o sono, com a pálpebras a pesar e pressa de "arrumar a casa". Já conseguia escutar do quarto o canto da sereia que era a cama, quando os meus sentidos foram subitamente alertados para um ruído vindo do sótão. O mexe e remexe, o som de quatro patinhas no soalho de madeira, só podiam estar a anunciar a chegada do sr. rato, regressado das suas actividades de praga urbana, prefiro nem imaginar quais. Era de cima que fazia a sua entrada triunfal nessa noite.
Foi até à escada que dá para o sótão para confirmar, e vejo um vulto esconder-se por trás do alçapão. Era o sr. rato, sem dúvida. Aguardava que eu me fosse deitar para poder circular à vontade pela cozinha, e quando se desligassem as luzes, era o sinal para a sua entrada, era como se eu lhe estivesse a dizer "a costa está livre, podes vir". Vinha mais cedo esta noite, especialmente cedo. Ainda não eram uma da manhã. Se calhar pressentiu o meu sono à distância. Talvez tenha um radar, e seja bisneto de um qualquer morcego que lhe passou esse ADN. Voltei a sentar-me em frente ao computador, fingindo-me distraído, para ver se ele respondia ao convite. Poucos momentos depois, oiço-o a descer pelas escadas do sótão, deslizando pé ante pé, produzindo pequenos "clac" com as suas pequenas unhas em contacto com o metal. Viro-me e dou com ele já no terceiro degrau, ele apercebe-se disso, dá um pequeno pulo para cima do frigorífico, ganha balanço e salta até ao topo da escadaria, segurando-se na lateral do primeiro degrau, e enfia-se de novo no sótão. Não me parecia muito decidido, ainda hesitou. Devia estar à espera que o convidasse a entrar. Fui espreitá-lo, e ele espreitava-me também, primeiro com a cabeça de fora, como quem sondava a eventualidade de perigo. Ficámos a olhar um para o outro por instantes, e os seus olhos pareciam querer dizer "vai dormir, então, já está na hora".
Durante aquele pequeno encontro, aproxima-se mais do degrau, e pela primeira vez o vejo de baixo para cima. Já o tinha observado rastejando pelo chão da sala, a escapar-se pelo buraco do ralo da casa-de-banho, e esconder-se por trás das caixas na cozinha, a sair de dentro do caixote do lixo, mas do topo e de frente, este era a primeira vez. E para ele isto era igualmente uma novidade; depois de dois meses de encontros fortuitos, rato olhava para o homem de cima para baixo, tirava-lhe as medidas, estudava o potencial inimigo. O que senti quando fiquei a saber da sua presença deve ser mais ou menos o que ele sente por mim agora. Pode ser que o sr. rato tema que o quero comer, fazer dele "satay", ou assá-lo no grelhador, como fazia a minha saudosa avó com as codornizes com que me deliciava na minha infância, uma das suas especialidades culinárias da minha predilecção. Como podia ter o sr. rato garantias de que só quero a sua amizade? De que podemos viver os dois em paz? É verdade que lhe tenho deixado comida todas as noites, mas quem é que lhe garante que não o estou a engordar para mais tarde esfolá-lo e deixá-lo a marinar em vinha de alhos? Tenho um longo caminho pela frente para conquistar a sua confiança. O sr. rato não entrega facilmente os pontos.
E o que mais me foi dado a conhecer do sr. rato, durante aqueles instantes que o observei de baixo para cima? A visualização deste novo perfil revelaram uma característica física do sr. rato que deconhecia: o pêlo branco que cobre o seu peito, bem como toda a sua região inferior. Branquinho, branquinho, do pescoço até à área mais estimada pela sra. rata, se alguma há. A luz da sala a reflectir sobre a entrada do sótão tornavam o castanho do resto do seu pêlo ainda mais claro, brilhante, liso e bem cuidado como o de um pequeno cavalo de raça. Sempre que o encontro parece-me mais pequeno, mais inocente, mais inofensivo. A cauda, que abanava como um leque enquanto me observava, é ainda mais fina do que parecia. É cada vez mais evidente que se trata de um rato castanho comum, o "ratus norvegicus", e nem de longe nem de perto se assemelha o temível e nocivo o "rattus rattus", portador de pulgas e transmissor de doenças horríveis. Lembra mais o ratinho de "Ratatouille" do que o Ranulfo, aquela ratazana das revistas Disney que quer roubar a namorada do Mickey, a Minnie. Não tem nada a ver com o rato daquele desenho que vemos nos autocolantes que o IACM espalha um pouco por toda a cidade a indicar o local onde colocou veneno anti-rato. Se quisessem um rato para fazer de modelo para os "lai-si" do próximo ano do rato, podiam escolher o sr. rato.
Aquele impasse acabou por não dar em nada; nem eu apagava as luzes, nem o sr. rato acedia ao meu simpático convite para descer até à sala, mesmo na minha presença. O sr. rato foi-se esconder, literalmente, e durante alguns minutos ainda o escutei a andar pelo sótão, a mexer e remexer. Depois de toda esta "adrenalina" passar, começou a voltar-me o sono, e achei por bem ir descansar, e dar ao sr. rato a oportunidade de usufruír da parte da nossa centenária casa que timidamente evita quando estou lá eu. E ainda por cima tinha cenoura no prato à sua espera. Na manhã seguinte acordo ainda antes das 8, e depois de retomar o contacto com o mundo dos acordados, lembro-me de "ir ler a crítica gastronómica", que é como quem diz, ver se o sr. rato aprovou a cenoura. Infelizmente a "crítica" foi negativa, pois apesar de ter remexido e provado um pouco, a maior parte da cenoura tinha lá ficado. Pensei em algo de original para a noite de quinta, mas esse é tema da próxima aventura do sr. rato. Fiquem atentos!
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