A série britânica "The Office", de 2001, que celebrizou o actor Ricky Gervais, foi um enorme sucesso. A tal ponto que surgiu uma versão norte-americana ainda mais bem sucedida, está a ser produzida uma versão alemã, e fala-se até de uma versão chinesa. O sucesso deve-se a uma fórmula bastante simples: o dia-a-dia de um escritório, igual a tantos outros que conhecemos, e os seus coloridos personagens, cujos traços de carácter nos fazem lembrar alguém que conhecemos. No fundo "The Office", ou "o escritório", é o local onde trabalhamos, mesmo que em vez de um escritório seja uma fábrica, um supermercado ou um centro comercial. Os ingredientes são os mesmos, e só muda o método de preparação.
Para quem trabalha num escritório, um daqueles empregos jeitosos onde se passa o dia sentado num ambiente salúbre e abrigado dos rigores do clima, sabe como é difícil conviver durante a maior parte do dia durante a semana de trabalho com um grupo de desconhecidos que chamamos de "colegas". A diferença entre um colega e um amigo é que ao primeiro não devemos qualquer tipo de satisfação, não temos confiança para lhe contar os nossos problemas, e a distância cria uma barreira que nos leva a desconfiar de algum movimento mais suspeito. Temos colegas que se podem tornar amigos, outros para quem nos estamos nas tintas e pouco ou nada sabemos sobre eles, e outros que gostávamos que nunca tivessem nascido.
Além dos colegas temos o chefe, ou os chefes, no caso de quem trabalha para uma grande empresa onde a pirâmide hierárquica é bastante extensa. Mas mesmo nesse caso, no topo da pirâmide está sempre "o chefe", o manda-chuva, o "tutti-coppi". Aquele que tememos e pretendemos venerar, ou mesmo que gostemos dele temos que lhe demonstrar reverência, ou pelo menos "respeitinho". O que proponho em mais este capítulo desta rubrica é analisar o tipo de gente que passa o dia connosco no tal escritório. É impossível abranger todos os perfis psicológicos, mas vou tentar falar daqueles que conheço melhor, ou que mais facilmente encontramos no escritório-tipo. Mais uma vez recordo que aquilo que eu digo não se escreve, ou neste caso, aquilo que escrevo não tem qualquer pretensão a que se aceite como os Dez Mandamentos II. Vamos começar por cima, pelos chefes:
O Passivo: Este é o tipo de chefe mais consensual entre os seus subordinados. Vai ali ganhar o seu, não está para se chatear, e reduz ao mínimo a interferência na gestão dos recursos humanos, que delega a dois ou três imediatos da sua confiança. Escuta os problemas dos seus subordinados com meia-atenção, e caso sejam banais vai respondendo com "hmmm, hmmm, hmmm" enquanto se concentra no trabalho. É justo quanto baste e até algo tolerante, mas não admite faltas de respeito e detesta mentirosos. Resolve os conflitos entre o pessoal com um murro na mesa: "não me façam perder tempo com parvoíces, pá!", e pouco lhe importa quem tem ou não razão. Contudo perante as injustiças procura um consenso, e é sensível às tragédias. Manda flores quando morre o pai de um funcionário, abraça-o e dá-lhes os mais sentidos pêsames, e oferece um whisky aos convidados. Tem dias que é um grande filho da puta, mas a maior partes das vezes é um tipo porreiro. É homem, claro.
O Monarca: Pode ser um homem ou uma mulher, mas é normalmente uma mulher. Agrada-lhe a posição em que tem o poder de decidir, aprecia os elogios, e gosta de funcionários obedientes que não pensem muito pela própria cabeça. Desconfia daqueles com mais iniciativa, e "arruma num canto" os mais rebeldes ou discordantes. Teme quando os subordinados estão unidos, e por isso diferencia-os quanto ao tratamento, cometendo várias injustiças: premeia alguns que não merecem, ignora os mais esforçados, castiga outros sem razão aparente. O seu lema é "dividir para poder reinar", e fez a sua escola na Universidade dos Burocratas Sacanas.
O Bonzinho: Escuta os funcionários, é solidário com os seus problemas, deixa-os sair mais cedo quando estão mal dispostos ou lhes dói um dente, sem se preocupar com a inconveniência para o serviço, ou em lhes pedir uma justificação para a ausência do seu posto. Evita qualquer tipo de atrito, e pensa que mais vale torcer mil vezes do que quebrar uma vez. Os funcionários abusam da sua generosidade, e caso sejam unidos, fazem dele gato-sapato. Normalmente é homem.
O Vilão: Trabalho é trabalho, conhaque é conhaque. O escritório é trabalho, e como tal não há conhaque para ninguém. Não se emociona, não escuta, está-se nas tintas para os problemas e faz tudo pelo livro. Aprecia quem trabalha bem, mas é o primeiro a dar-lhe com a moca quando pisa o risco. Para ele não há bestial que não possa passar a besta de um dia para o outro. Se dois dos seus subrodinados entram em conflito, dá um repreensão ou um processo disciplinar a ambos. Pode ser homem ou mulher, tanto faz, o mau génio não escolhe género.
Estes são apenas quatro dos casos mais extremos de "chefe". Depois temos os colegas, aqueles que como nós lutam pela vida. Aqui a fauna é mais variada, pois ninguém tem pretensões a substituir o chefe, mas apenas em cair nas suas boas graças. Uns levam isto mais a sério que os outros, e a forma como se encara o ganha-pão tem tudo a ver com a personalidade de cada um. Atentemos a alguns exemplos:
O Mordomo: Se o chefe é o Sherlock Holmes, este é o Dr. Watson. Se é o D. Quixote, ele é o Sancho Pança. Senta-se ao lado do chefe em todos os jantares da empresa, concorda tudo o que ele diz e segue rigorosamente as suas instruções. Quando o chefe aparece na televisão, é ele quem está atrás a abanar a cabeça, como que a validar tudo o que ele diz. Nas reuniões repete sempre a última parte de cada frase do discurso do chefe, e quando sai com os outros colegas vai pelo caminho a perguntar: "ouviram o que o chefe disse?".
O Mediador: Este é um pouco como o mordomo, mas com mais de dignidade, mais autónomo e até com alguma utilidade para os seus colegas. É o homem de confiança do chefe, o seu braço direito, mas mantém uma relação sóbria e cordial com os colegas, e pode fazer de ponte entre eles e o chefe. É na maior parte dos casos um homem, ao contrário do caso seguinte.
A Secretária: Como o nome indica é uma mulher, e acha-se acima dos restantes colegas devido à sua intimidade com o chefe, que para ela é o "senhor doutor". Ela é que sabe o que "sr. dr." gosta e não gosta, o quer ou não quer, o que pensa, e se está no gabinete ou se saíu para uma reunião. Os colegas não a desprezam tanto como têm pena. Para eles é uma pobrezinha com lodo no lugar de massa cinzenta, com rabo espetado e um decote a revelar metade dos seios.
O Capitão: Este não é o chefe mas tem a mania das grandezas. Auto-intitula-se pessoa de confiança do chefe, age como motivador, dá sugestões em jeito de ordens aos colegas, mas ninguém sabe muito bem o que faz. Para ele receber uma instrução do chefe é como encontrar um diamante, e transmite à sua "equipa" a mensagem começando por dizer: "o chefe disse que...", para que ninguém se atreva a questioner a sua legitimidade. Está receptivo às sugestões dos outros, mas acaba por decidir que as suas ideias são as que melhor servem os interesses do escritório. Se o chefe não for nenhum tontinho, este chico-esperto acaba sempre arrumado a um canto a separar os clips de plástico dos de metal.
O Autómato: Chega ao escritório e cumpre apenas as tarefas que lhe são confiadas, nem mais, nem menos. Faz o expediente exactamente como o ensinaram, não decide, não inventa, não improvisa. Perante uma situação nova, não toma a iniciativa, mas pergunta a alguém mais experiente ou a um superior. Para ele não existe o conceito de analogia, e cada caso é um caso. É um pobre inútil que só se lembra para o que lhe pagam no dia de receber o cheque. O chefe gosta dele, porque é obediente, manipulável e não pensa pela própria cabeça, e por isso não constitui uma ameaça.
O Lambedor: O engraxador, o lambe-botas, o puxa-saco. Existe quase sempre um em cada escritório. Este é o tipo que compensa a falta de outras qualidades (quase todas) com uma reverência incondicional à chefia. É a versão masculina da secretária, mas sem jeito para dactilografar ou tirar anotações. Os colegas detestam-no, e a sua taxa de sucesso depende do chefe. Infelizmente há ainda muitos chefes que gostam de um saco bem lustrado e reluzente.
O Alpinista: Este está preparado para conquistar o mundo, e leva as hierarquias muito a sério, como uma montanha a escalar até ao topo. No início dá-se bem com todos, mas cedo começa a selecionar quem melhor serve os seus fins. Vai desprezando os que vão ficando para trás, e só olha para o lado e para cima. Respeita os seus iguais como rivais, mas não lhes mostra o jogo. Bajula os superiores, até ao dia em que estiver ao mesmo nível. Quando chega ao topo começa a receber envelopes-bomba, telefonemas com ameaças de morte e cadáveres de pardais na caixa do correio, com os cumprimentos das pessoas que espezinhou no decurso da sua escalada. Pode ser um homem ou uma mulher, mas sendo a última torna-se num caso sério.
O Estratega: Este é o espertalhão ou a espertalhona que segue à risca um manual de sobrevivência, onde está escrito exactamente como se comportar conforme cada caso, como reagir a cada situação ou como responder a cada comentário. Para ele - e habitualmente é uma ela, uma mulherzinha complexada - não existem relações humanas. É cada macaco no se galho, e no fim do dia vai cada um à sua vida.
O Indispensável: Para este o escritório não funciona sem ele. Está sempre bastante ocupado, corre para mandar um simples fax como se dez segundos a mais ou a menos fizessem alguma diferença, e qualquer tarefa que o chefe lhe incumbe deve-se sempre ao facto de ser "a pessoa indicada para o desempenhar" - nem que seja lavar a escada. Queixa-se de ter muito trabalho, mas fica uma pilha de nervos se não lhe dão nada para fazer. Pode ser um homem ou uma mulher, mas as mulheres têm uma ligeira predominância.
O Anónimo: Este quer passar completamente despercebido. Não quer assumer qualquer responsabilidade, assinar qualquer documento, tomar qualquer decisão, responder a ofícios ou atender telefonemas. Na eventualidade de precisar de atender um cliente ou um utente e tem dúvidas, pergunta a um colega e responde com "ele disse que...". Nas reuniões com o chefe esconde-se atrás dos outros, e se este pede um voluntário para qualquer tarefa encolhe-se atrás da gorda da contabilidade. Se circular um abaixo assinado para consertar um sanitário entupido, só assina depois de todos os outros assinarem primeiro, e caso alguém se tenha recusado a assinar, prefere também ele abster-se. Mais vale jogar pelo seguro. É quase sempre um homem, pois as mulheres gostam de dar nas vistas.
O Conspirador: Este é o invejoso do grupo. Não se esforça por aí além para se valorizar e faz muito pouco para obter uma promoção, mas se alguém lhe passa à frente reúne-se com os outros preteridos para elaborar uma teoria da conspiração. Passa mais tempo a conspirar, a meter intrigas e a sussurrar nos ouvidos dos outros do que a fazer aquilo para que lhe pagam: trabalhar. Se o chefe lhe chama a atenção faz-se de vítima, chora (se for mulher) e faz ver aos seus aliados que tinha razão, e que foi obra "do outro", que é mau bicho e anda a querer tramá-lo.
O Problemático: Chega atrasado, falta com frequência, arranja conflitos com os superiores e com os outros colegas, a quem pede dinheiro emprestado e depois não paga. Aparece embriagado, adormece no posto e entretém-se com qualquer coisa menos com o trabalho. O chefe não o despede porque uma vez atropelou a sua mãe velhota na passadeira e deslocou-lhe uma anca, e prometeu um emprego ao filho para evitar uma acção judicial.
O Amigalhaço: Este é o tipo de quem todos gostam e que se dá bem com todos. É homem, e exerce um cargo inferior, como de contínuo, mensageiro ou motorista, e torna-se infoensivo devido à sua falta de ambição. O chefe pode gostar dele ou não, dependendo da utilidade que alguém como ele pode ter.
Quanto maior o escritório, mais destes coloridos personagens encontramos. Não sei de identificaram algum colega ou se vocês próprios se identificam com algum deles. Eu pessoalmente conheci, trabalhei ou ainda trabalho com cada um ou vários destes "cromos" ao mesmo tempo. É assim o escritório: uma fogueira de vaidades, uma pista de carrinhos de choque dos egos.
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