Vinha eu um dia destes do supermercado Welcome onde comprei uma caixa de caracóis (obrigado ao Pedro Daniel Oliveira pela sugestão), e a meio da Avenida do Ouvidor Arriaga cruzo-me com uma ex-colega dos anos 90, a dona Esmeralda. Fazia uns dois anos que não a via, que saudades dos tempos em que trabalhámos juntos no registo comercial. A dona Esmeralda optou pela desvinculação, vulgo “bolada” em 1999, céptica quanto ao que a projectada RAEM poderia trazer, e foi viver para Portugal com a família. Disse-me que agora passa mais tempo em Macau, na companhia da filha e dos netos, mas seja qual for a desculpa, “Macau filo” a casa torna.
Tinhamos muito “papo” para colocar em dia, com toda a certeza, mas iamos em direcções opostas, portanto a conversa reduziu-se a três ou quatro minutos. Durante esse curto período em que conversávamos ali no passeio, foi praticamente necessário gritar ao ouvido um do outro, tal era a sinfonia de buzinas, motociclos, o roncar dos camiões e dos autocarros, e isto para não falar dos encontrões das pessoas que passavam, que não conseguíamos evitar mesmo que nos encostássemos à parede. Comentei com a dona Esmeralda como “isto está cada vez pior”, e ela, com um ar pesado e triste desabafou “este já não é mais o nosso Macau, está tudo diferente...”. Despedimo-nos com a promessa de nos vermos por aí, pois sabe sempre bem encontrar uma cara conhecida que nos recorde dos tempos em que os cabelos ainda eram pretos e disfrutávamos da plenitude dos vinte e poucos anos.
A dona Esmeralda é uma senhora, e conhece melhor que ninguém a Macau de que todos temos saudades. Dizer que uma cidade “está diferente”, nem sempre tem uma conotação negativa. Ficamos para trás se rejeitamos o progresso, se não aceitamos a evolução e mudança. Só que esta mudança foi para pior, o progresso é discutível, e em muitos casos onde devia ter existido evolução, deu-se um retrocesso. Duvido que quem tenha conhecido Macau há dez, vinte ou mais anos diga que hoje se vive melhor nesta terra. Claro que há mais dinheiro, mas quando chove ainda é água que cai do céu, e o verde das árvores ainda é o das folhas. Com tanta pressa de crescer sem ter por onde o fazer, Macau tornou-se uma espécie de mala que uma vez cheia, ainda lhe enfiamos mais bagagem, e sentamo-nos em cima para fazer o peso de maneira a fechá-la. Apertados, apertadinhos, uns em cima dos outros, e não é no bom sentido.
De um lado temos a cidade dos casinos, do luxo, da roupas,dos sapatos e das malas de marca. Andamos pelo NAPE e deparamos com as “mui muis” do continente carregando os seus sacos da Gucci, da Chanel ou da Louis Vuitton. Se calhar não conseguiram apanhar uma limousine que as levasse os 200 metros que as separam das lojas até ao hotel. Do outro lado, o da cidade real, temos os alienados, os que caminham para o emprego agarradinhos ao “smartphone” desde as oito da manhã até à meia-noite, hora que vão para a cama recarregar as baterias do autómato. Os tintins, os que andam ao cartão, os estivadores, os homens do lixo, os cidadãos anónimos que vão dando um pontapé numa lata até decidirem se devem começar um passatempo na recolha de alumínio que lhes garanta 20 ou 30 patacas suplementares por dia, os que se enfiam nos latões do lixo quando ninguém está a ver, ou pensam que ninguém está a ver, pouco importa, desde que encontrem algo de valioso que alguém deitou fora e que lhes possa valer uns trocos no ferro-velho que lhes garanta o próximo almoço, uma caixa de arroz com fatias de “char-siu” e uma perna de galinha cortada em pedaços com uma colher de chá de gengibre e coentros. Não é porque tenham necessidade ou porque sintam fome. É a economia parelela de Macau. Aqueles a quem não deram uma concessão de jogo.
Com os táxis associados à forma de pirataria que se pratica no Golfo de Adém, ao largo da Somália, e os autocarros mais lotados que uma lata de atum Tenorio, aquelas que os nossos pais e avós abriam com uma pé-de-cabra, para quem não tem carro ou não se quer sujeitar a pagar 40 patacas por hora pelo estacionamento num baldio improvisado, o melhor é ir a pé. Andar a pé já foi mais fácil, mas hoje tem muito que se lhe diga. Requer arte e destreza, apela aos mais básicos instintos de sobreviência, uma pequena distração pode significar a morte do artista. Além dos já referidos “zombies” que caminham na via pública a mandar um SMS ou a tentar passar para o próximo nível do Candy Crush a esbarrar nas pessoas que se limitam a olhar para a frente, coitadas, que não sabem mais, temos os tipos que levam os motociclos pela mão ou com o motor desligado por vias pedonais de trânsito proibido, os autocarros que fazem a curva por cima do passeio, os “shuttle bus” dos casinos que fazem o que querem, e os turistas distraídos que andam pelas lojas do centro da cidade aos safanões no povo, e que repetem “soly” de trinta em trinta segundos. Um pouco mais de atenção e respeito pelas mais básicas regras do civismo poupavam-lhes um porção de “soly” que dava para viver dos rendimentos.
Já sabemos que os passeios são estreitos, os caminhos são centenários, desenhados para pouca gente, e nunca para 600 mil habitantes e não sei quantos milhões de visitantes por ano. Conscientes deste facto, que é uma chatice, o que leva a tantos residentes e turistas a pensar que a rua é toda sua, e que a podem usar a seu bel-prazer, indiferentes à presença dos outros? É nas zonas turísticas que é mais evidente esta indiferença, mas um pouco por toda a cidade vemos famílias a passear de mão dada, em passo de caracol, “coolies” a levar carrinhos de mão, sempre prontos a colher os tornozelos alheios, turistas a olhar para cima, a fotografar uma placa toponímica, residentes a usar o telemóvel enquanto andam, bancadas de petiscos fritos no meio do passeio, de tudo um pouco. Se nos aparecem pela frente – e sorte tenho eu de ser relativamente alto para os padrões locais – e fazemos uma placagem ao estilo do “rugby”, ainda se queixam, fazem cara de maus, como que a dizer que lhes devemos algum tipo de reverência, prostrar-nos perante suas altezas e deixá-los passarem-nos por cima.
A situação do trânsito engarrafado e engasgado e das ruas entupidas, com cada vez mais carros e mais gente e sem sítio onde os pôr. Na Rua 5 de Outubro, aqui perto de casa, não existe uma zona pedonal, e como ao longo da rua estão motociclos e automóveis encostados - não estacionados, que aquilo não são estacionamentos - os peões circulam pelo meio, carros, carrinhas e autocarros apitam, porque ainda não podem voar. Ali ao lado, na Rua do Teatro, entram e saem a toda a hora carrinhas de fruta, que se atrvessam na estreitissima saída da Rua da Tercena, e ficam ali a em manobras até conseguir fazer a curva, deixando peões e restante trânsito imóveis a assistir. Só falta bater-lhes palmas quando se endireitam e deixam toda a gente passar finalmente. O meu Macau, e antes desse o da dona Esmeralda, o de todos que ainda se lembram do tempo em que Macau ainda existia, foi substituído por nada, por um boneco feito de paus de fósforo, e virado do avesso.
1 comentário:
Leocardamigo
Já estive várias vezes em Macau, onde tenho Amigas e Amigos. Desde que o território passou a fazer parte politicamente da RPC nunca aí voltei, mas ainda espero fazê-lo. Cos diabos, são só 72 aninhos e parece que dentro do prazo de validade... :-) :-)
Por iso passei por aqui e tenho de dizer, plagiando o Júlio Césa: Cheguei, vi e... gostei"
Gostei, sobretudo, deste textículo que retrata as modificações de um território minúsculo que dá pelo nome de Oumun onde estive pela última vez em 1996, integrado na comitiva do Ministério das Finanças, chefiada pelo ministro Sousa Franco.
Tivemos a oportunidade de almoçar com o general Vasco da Rocha Vieira que ofereceu uma recepção à delegação do Governo em Santa Sancha.
Gostaria que, se o quisesses, colaborasses na minha Travessa, (como delegado em Macau) onde já vou colocar o Bairro do Oriente nos meus BLOGUES MAIS FIXES Espero resposta afirmativa... :-) :-) :-)
Abç
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