quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Quem somos, realmente? Parte XXIII: são cantigas


“Quem canta os seus males espanta”, diz o povo. Em alguns casos, quem canta simplesmente...espanta. Uma das piores coisas que se pode ouvir da boca de alguém é que cantamos mal, mas pior ainda é ouvir alguém a cantar efectivamente mal. O melhor mesmo é ser humilde, e dizer que se canta mal, mesmo que isso não seja verdade. É de longe preferível levantarem-nos ao céu dizendo que cantamos bem, do que nos fazerem morder o pó, dizendo que cantamos mal. No caso de se cantar mesmo mal, o melhor mesmo é poupar os tímpanos alheios, e se existir mesmo a necessidade de se expressar musicalmente, pode-se sempre assobiar, ou estalar os dedos.

A primeira vez que entrei numa sala de karaoke foi em Macau, em 1993 ou 1994, não sei bem, mas foi poucos meses depois de chegar. Sem saber ainda muito bem onde estava, escutei gemidos atrás de uma porta, gritos de horror vindos de outra direcção, e julguei estar em algum daqueles condomínios onde agiotas e sequestradores mantêm as suas presas encarceradas. Nestas salas de karaoke, onde os amigos de juntam e bebem uns copos, pouco importa cantar bem ou mal, pois estão ali para se divertir, e já agora para cantar. Quanto mais bebem mais tendência têm para cantar, e quanto mais cantam mais desencantam. Às vezes nem é preciso saber cantar para não cantar desafinado; basta colocar a voz no tempo certo, e se possível tentar cantar da forma mais parecida com o artista original. Não chega só ter uma boa voz: é preciso saber cantar, também.

Os mais modestos, quando lhes perguntam se sabem cantar, dizem que “cantam no chuveiro”. E de facto cantar bem ou mal depende muito do ambiente ou do estado de espírito. São muitos os casos em que uma pessoa até não canta mal em casa, ou junto dos amigos, mas se o puserem num palco em frente a uma plateia de desconhecidos acagaça-se toda, e fica mais muda que um pinto. Woody Allen explorou bem este fenómeno no filme “De Roma com amor”, onde um personagem cantava excepcionalmente no chuveiro, mas desafinava no palco. O seu agente resolveu o problema improvisando um chuveiro durante as suas actuações em público, onde cantava as suas partes numa ópera enquanto tomava um duche. Mas comédia é comédia, e na verdade a maioria das pessoas que diz cantar no chuveiro canta mal. O som da água a correr é que ainda disfarça um pouco.

Há pessoas mesmo muito mázinhas, que deitam logo por terra os nossos sonhos de alcançar o estrelato. Antes era mais difícil separar o trigo do joio, mas desde a chegada daqueles “reality shows” do tipo “Idolos”, onde aspirantes a cantores vão dar o seu melhor em busca do seu sonho, muitas ilusões ficaram mais estilhaçadas que o vidro de uma loja por onde acabou de entrar um camião. Aqueles jovens – e na maioria são jovens – alimentam essa ilusão porque os familiares ou amigos lhe dizem que “sabe cantar”, e em alguns casos estão simplesmente a gozar, ou a tentar ser simpáticos. Quem gosta de cantar mas não tem uma voz por aí além fica magoado se lhe dizem que o melhor que tem a fazer é estudar para ser alguém na vida. Aquele painel do júri desses concursos deita completamente por terra qualquer sonhador menos talentoso, dizendo-lhe sem rodeios que “não sabe cantar”. Não sou grande adepto daquele tipo de lixo televisivo que passa por entreter através da humilhação das pessoas, e por vezes nessas audições para candidatos a estrelas dizer-lhes que não servem é seguido de uma grande peixeirada: confrontam o júri, dizem-lhes que “não são ninguém” para lhes dizer que não sabe cantar, batem com a porta, entram os pais, mil e uma cenas tristes. Só que às vezes é melhor levar com um tiro no balão e descer à terra do que passar a vida nas núvens sem rumo certo. Queriam cantar, era? Ser ricos sem precisar de vergar a mola? Olha paciência, melhor sorte numa próxima encarnação.

Para quem gosta mesmo de cantar, o maior tesouro é ter uma voz de ouro. O talento é inato, e depois de algum treino, é possível mesmo fazer carreira como cantor. Uma grande voz é uma daquelas coisas que ou se tem, ou não se tem. Amália terá resumido em duas palavras a razão de ter uma grande voz: “foi Deus”. Amália foi uma diva como poucas; o que ela queria mesmo dizer era “sei lá porque tenho esta voz...que pergunta mais parva”. Há cantores que têm uma voz única, inconfundível, ,as se é ou não uma “grande voz”, depende dos gostos. Assim de repente penso em Elton John, Neil Tennant, do agrupamento britânico Pet Shop Boys, ou no caso português o vocalista dos GNR, Rui Reininho. Tudo vozes inemitáveis. Voz que é grande quer se goste ou não do género musical em que se insere . Os grandes cantores líricos são um bom exemplo, ou qualquer cantor popular que tenha um bom alcance vocal, como era o caso do saudoso Freddie Mercury, ou uma voz que derreta a manteiga mais dura, como Frank Sinatra, ou ainda uma voz áspera e sexy, como Rod Stewart ou o português Olavo Bilac, do grupo Santos e Pecadores. As miúdas adoram e os homens invejam.

Outros casos há em que não se tem uma voz por aí além, mas compensa-se com outras qualidades musicais. São exemplo disso os cantautores, os poetas, os cantores de “hip-hop” e afins. Os que cantam aquilo que escrevem e compõem têm dois talentos em três, e por isso safam-se sem ter voz. Tom Waits tem uma voz pavorosa, mas escreveu alguma da poesia mais linda alguma vez cantada. Os Beatles, por exemplo, não eram tão conhecidos pelos dotes vocais, mas pela música e letra. Valiam mais pelo que faziam, e não como o faziam. Eminem, outro caso curioso, não canta mas “reza”, só que as suas letras valeram-lhe uma respeitável legião de seguidores. A maioria dos cantores “rock” não têm uma grande voz, e um fenómeno que nunca entendi muito bem foi o de Elvis Presley, que murmurava, gemia, sussurava sem se perceber quase nada do que dizia, e chegou a “rei”. Em Portugal temos excelentes cantautores, e outros bons autores que não são grande coisa como cantores. Dos últimos destaca-se Pedro Abrunhosa, ponto final, e entre os primeiros temos José Cid e Jorge Palma, para citar dois entre muitos. No fado, onde se cantam sobretudo os poetas, há um requisito “sine qua non”: ser fadista.

Quem nunca sonhou ser cantor, no fim de contas? Levar as multidões ao delírio, ser adorado por milhares, ou por milhões, viver numa mansão, aparecer na capa das revistas, deixar-se viciar no ópio do sucesso, embriagado pelo uníssono dos aplausos. É melhor do que acordar todos os dias de segunda a sexta, correr para picar o ponto e ter de aturar um sem número de outros anónimos como nós. Para isso só é preciso ter um destes dois talentos: saber cantar, ou saber compôr. Em nos dois casos o ingrediente secreto é o trabalho. Pensar que se chega longe apenas porque “somos nós” é um erro que pode provocar grandes dissabores, como dizerem “não serves, vai-te embora”. E quem gosta de ouvir tal coisa?

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