Quinta-feira, 7 de Novembro. Depois de um dia sem ter notícias do sr. rato e já sem Mascarpone para lhe oferecer durante as suas esporádicas mas sempre intensas visitas, fiquei a pensar: o que lhe deixar no pratinho junto ao balcão da cozinha durante as suas incursões nocturnas pelo meu domicílio? Consultei uma especialista em nutrição de pequenos mamíferos roedores (a minha irmã), que me sugeriu fruta, especialmente a mais sumarenta. Propôs que lhe deixasse gomos de tangerina cortado em metade, de forma a que mais facilmente pudesse beber o sumo. Nesse dia comprei algumas tangerinas, e reservei uma para a eventualidade da vinda do sr. rato pela noitinha.
Já passavam trinta minutos da meia-noite, e estava ainda em frente ao computador a actualizar esta folha-de-couve virtual, quando começo a escutar pequenos passos na escada. Só podia ser o sr. rato, saído do seu esconderijo, faminto de mais queijo Mascarpone que o ogre humano habitualmente deixa todas as noites, no sítio do costume. A sua teimosia em recusar-se a comunicar não me deixam explicar-lhe que o queijo acabou, e que estou receptivo a que me diga do que gosta, e logo se vê o que posso arranjar. Chegado ao topo das escadas, depara comigo sentado na secretária, de braços cruzados e olhando para ele, como se estivesse à sua espera. Assustado dá meia-volta e desce as escadas a alta velocidade, evitando assim o eternamente adiado frente-a-frente com o representante do género humano que divide com ele a moradia.
Respiro fundo, pois por muito romântica que seja a descrição dos meus encontros com o sr. rato, ainda não consigo habituar-me à ideia de viver com a pestilenta criatura debaixo do mesmo tecto. Acendo a luz da escada e espreito para ver se o bicho está em algum desgrau a ganhar fôlego para mais uma investida. Nem sinal do sr. rato. Volto a sentar-me, e nem um minuto depois volto a escutar a cadência das suas quatro patas a galgar a escadaria. Levanto-me para o receber, e quando dá por mim de pé, precipita-se em fuga na direcção de onde tinha vindo e cai pela escada abaixo. Um humano arriscar-se-ia a partir o pescoço, mas o ágil sr. rato readquire o equilíbrio após o primeiro degrau em que tropeça. O intervalo de tempo entre a segunda e a terceira tentativa foi ainda mais curto; o sr. rato enche-se de brio, e indiferente à minha presença passa por baixo do armário da sala, vira à direita do frigorífico e refugia-se no santuário da cozinha, por entre as caixas e a botija do gás.
Encolho os ombros perante a destreza e a coragem do sr. rato, e continuo a escrever. Dez minutos depois levanto-me e vou à cozinha, e verifico que os gomos de tangerina tinham desaparecido. A nutricionista dos pequenos mamíferos roedores tinha razão. Deixei a outra metade do citrino no prato, fui publicar o artigo do dia, já com o sono no horizonte. Antes de ir para a cama, resolvo verificar pela última vez a cozinha, e é quando apanho o sr. rato em flagrante a devorar a segunda metade da fruta que lhe ia servindo de jantar essa noite. Sobressaltado, pisa no prato, produzindo um leve tilintar, e esconde-se no canto mais obscure da cozinha, deixando a refeição a meio. Talvez o susto tenha sido demais para o pequeno coração do sr. rato pois na manhã seguinte a tangerina estava lá, tal como a tinha deixado quando o surpreendi.
Sexta-feira. Saído do trabalho, deixo ao sr. rato um prato com alguns pedaços de queijo flamengo. Nessa noite fico acordado até mais tarde. Das escadas nenhuma novidade, do sótão muito menos. A certa altura escuto um barulho incaracterístico vindo de trás da máquina de lavar, onde inicialmente vedei uma das suas entradas. O sr. rato esgravatava com as suas unhas de rato, mas a amálgama de papel de alumínio não lhe permitia o atalho mais curto para a cozinha. Foi tudo o que soube do sr. rato nessa noite, e o queijo flamengo ficou por comer. Na noite seguinte, ontem, Sábado, nada de sr. rato até às quatro e pouco da madrugada. Fui dormir perto das cinco, e quando começava a entrar na terra dos sonhos, escutei-o e subir pelas escadas, e percorrer estouvado o caminho até à cozinha, esbarrando nos obstáculos que encontrava pelo caminho - ora nos sapatos, ora no próprio armário que usava como ponte entre a escadaria e a cozinha. Durante a minha segunda tentativa de pegar no sono, oiço um barulho estridente, a queda de algum objecto que o trapalhão não viu e derrubou durante a sua incursão pelo meu domínio. Abri um olho, mais para lá do que para cá, e ainda tive as forças para conjurar um pensamento: "filho de uma grande rata".
Na manhã seguinte, Domingo, acordo por volta das 11:45. Confiro os danos provocados pelo sr. rato, e não encontro nada derrubado ou partido. Quanto ao queijo, estava apenas comido pela metade. Terá achado o flamengo da Mimosa muito seco, e não é para menos - cortei apenas os cantos já queimados pela acção refrigeração, e pouco mais que isso. Hoje deixo-lhe novamente uma tangerina fresquinha, sem a garantia de que virá comê-la. Amanhã talvez uma maçã, e depois uma cenoura, não sei. Não me diz do que gosta, não me garante que aparece para jantar se lhe ponho a mesa, não fala comigo, o sacana. O sr. rato é um agente secreto ao serviço de sua rata majestade: só quando espreita uma oportunidade ele usa a sua licença. A licença para ratar.
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