Em primeiro lugar gostaria de saudar o meu colega de blogosfera João Botas, cujo seu "Macau Antigo" sigo desde a primeira hora, e da minha humilde biblioteca consta o seu "Macau em tempo de Guerra 1937-45". Em comum temos o amor por Macau e a sua história, e o interesse pelas curiosidades sobre esta terra que adoptámos como casa - ou segunda casa, no caso do João, não sei ao certo. Gostava ainda de lhe dar os parabéns pela coluna seminal que assina no Jornal Tribuna de Macau, onde refere algumas dessas curiosidades. É um espaço que fazia falta, e é preciso lembrar sempre que Macau é mais do que a cidade dos casinos e do património classificado; cada rua, cada canto, cada viela contam uma história. Posto isto, deparei hoje com o
seu artigo sobre a toponímia, e com a devida vénia gostaria de lhe apontar algumas imprecisões.
O tema da toponímia de Macau é-me (é-nos) bastante querido, e eu próprio já dediquei vários "posts" ao assunto, o último deles o mês passado, que pode ser revisto
aqui, e que é mais ou menos do mesmo teor deste que o João assina nas páginas de hoje do JTM. Sem querer parecer arrogante, ou ensinar ao padre a missa, pois o João é jornalista e investigador, gostava de lembrar que este tema tão interessante requer mais do que simples consulta do cadastro ou de outra literatura. Requer conhecimentos sobre a língua chinesa, e muita curiosidade, perguntar muito a chineses e macaenses, ser "chatinho", por assim dizer. Como muita gente sabe, trabalho no Registo Predial, e tenho a vantagem de poder aceder ao cadastro dos nomes das ruas em português e em chinês, quer em caracteres, quer romanizado. Mas vamos lá então esmiuçar o artigo em causa.
Começemos pela Av. Almeida Ribeiro, ou "San Ma Lou", como tão bem referiu. De facto a empreitada autorizada pelo ministro das colónias Almeida Ribeiro tem uma história interessante, e apesar da utilidade da ligação entre o Porto da Barra e o Porto Exterior, a população local opunha-se. Para os chineses a península de Macau tinha a forma de um dragão, e fazer ali aquela rua era "cortar o dragão", o que para uma gente tão supersticiosa, constituía uma ousadia enorme. Quanto à tradução deste arruamento para chinês, "San Ma Lou", permita-me que refute a sua tese da "Rua Nova dos Cavalos". De facto "Ma" (馬) é cavalo, mas "ma lou" (馬路) é a via, o caminho, "por onde passam os cavalos", ou seja, a estrada. Aquilo que designamos por rua propriamente dita em chinês diz-se "kai" (街), mas mais no sentido de uma rua situada numa zona habitacional. Portanto "ma lou" traduz-se simplesmente para rua, caminho ou estrada, sendo avenida "tai ma lou" (大馬路), ou "rua grande". Por essa lógica da "rua dos cavalos", a Estrada do Repouso ("Kiang Wu Ma Lou", baptizada com o nome do hospital, sendo que "kiang wu" significa "espelho do lago", um dos nomes antigos de Macau, e não "repouso") seria "Estrada do Repouso dos Cavalos", e o Caminho dos Artilheiros (Pau Peng Ma Lou), seria "Caminho dos Cavalos Artilheiros"? Portanto Sam Ma Lou é apenas "Rua Nova".
Contudo na imagem que ilustra o seu artigo, vemos uma placa toponímica onde se lê Largo do Senado, e ao lado os caracteres chineses que designam esse arruamento. Mais uma vez peço desculpa pelo atrevimento, mas um leigo nesta matéria que leia este artigo vai pensar que estando nós aqui a falar da Av. Almeida Ribeiro, onde fica situado o edifício do Leal Senado, poderá pensar que os caracteres terão alguma coisa a ver com "San Ma Lou". Na realidade o que lá está escrito é "Yí si t'eng chin tei" (議事亭前地). Os três primeiros significam exactamente "senado"; "yí si" (議事) é "discussão", ou "debate", e "t'eng" (亭) é "pavilhão", ou "câmara". Quanto ao "chin tei", significa exactamente Largo, ou Praça. Refere mais à frente que o Largo Luís de Camões é conhecido por "pak kap chau" (白鴿巢), nem mais, mas o nome completo é exactamente "pak kap chau chin tei" (白鴿巢前地).
A questão da Rua Nova à Guia é deveras interessante, mas peca por uma imprecisão no local exacto a que o João se refere. A "Rua dos Turbantes Brancos" fica localizada na área dos Parses, onde se encontra o cemitério da fé parsi, e moravam os parses oriundos de Bombaim (eram zoroastras, e não "sikh"), na sua maioria polícias e guardas do exército, que pelo turbante que ostentavam eram chamados de "cabeças brancas", em chinês "pak tao" (白頭), e não "turbantes brancos". Gostava de o remeter a
este artigo do blogue Existir em Macau, que fala disso mesmo. Existe sim um arruamento ali próximo do Cemitério dos Parses que se chama Calçada Nova, que em chinês se diz "Pak tau che lou". Talvez daí a confusão?
A Guia é conhecida na comunidade chinesa por "tong mong ieong" (東望洋). Portanto este "tong" é o leste, neste caso o nascente, "mong" significa "ver", ou "olhar", e "ieong" é o mar, ou oceano. Portugal, por exemplo, é conhecido também por "sai ieong" (西洋), e a título de curiosidade, refira-se que uma das primeiras peças do grupo Doçi Papiaçam era exactamente "Mano Beto vai saiông", ou seja, o mano Beto vai a Portugal. Mesmo o nosso BNU em chinês diz-se "tai sai ieong", ou "grande oceano". Posto isto, "tong mong ieong" significa "olhar o nascente". Por outro lado a Penha é "sai mong ieong" (西望洋), ou "olhar o poente". Pode-se concluir portanto que em Macau o sol nasce na Guia, e põe-se na Penha.
A Rua Nova à Guia é "tong mong ieong san kai" (東望洋新街), que se pode traduzir à letra por "Rua nova a Nascente", mas se existe uma nova, existirá certamente uma antiga, e de facto a rua que os chineses chamam de "tong mong ieong kai" (東望洋街) nós conhecemos por Rua de Ferreira do Amaral, que vai da Avenida Sidónio Pais até à Calçada da Vitória, passando pelo Jardim Vasco da Gama e terminando no Hotel Royal.
A Rua de Pedro Nolasco da Silva, que os portugueses conhecem por "Mariazinhas", é de facto "Pak Ma Hong" (白馬行), "pak" é branco, "ma" é cavalo, mas já agora este "hong" (行) não quer dizer bem caminho; pode traduzir-se mais no sentido de "fila". Seria ali que os cavalos brancos "passavam em fila". Penso que será preciso uma investigação histórica mais aprofundada para entender bem isto.
Mas isto é apenas um preciosismo perante a parte final do artigo onde se faz referência à Travessa do Abreu como sendo em chinês. "Viela torta do grande edifício". Temos aqui portanto "tai lau ch'e hong" (大樓斜巷). Esta travessa que refere fica perto da Rua da Praia do Manduco, em um pouco mais em cima temos a Rua do Padre António, onde morei mais de dez anos, e que em chinês se chama "kou lau kai" (高樓街), literalmente "rua das casas altas". Portanto para a população local nada têm estes dois arruamentos qualquer coisa a ver com algum Abreu ou com o Padre António. No tempo em que a comunidade chinesa deu os nomes a estas ruas, não se falaria em Macau de "edifícios" ou "prédios", portanto "tai lau" seria "casa(s) grande(s)", e kou lau "casa(s) alta(s). Temos ainda outro exemplo, a Calçada do Embaixador, em chinês "cheong lau ch'e lou" (長樓斜路), sendo "cheong lau" traduzido para "casa(s) comprida(s)" ou "longa(s)".
Portanto quanto a isto estamos conversados, mas e quanto a isto da "viela torta". Bem, "ch'e hong" (斜巷) é uma travessa inclinada, algo que podemos traduzir para "calçada", "hong" é travessa, e "ch'e" quer dizer "inclinada", e não "torta". No máximo poderá querer dizer também "oblíqua". É comum a confusão entre "ch'e hong", "ch'e lou" (斜路) e "ch'e pou" (斜坡), mas tudo significa "plano inclinado", que poderá ser uma calçada, praceta, rampa ou ladeira. "Viela torta", peço desculpa, mas é uma tradução aberrante; seria o mesmo que dizer que a Calçada do Tronco Velho ( 東方斜巷) quer dizer em chinês "Viela torta do leste".
Mais uma vez, não é por arrogância ou despeito que faço estes reparos, mas se como o próprio João diz, "a toponímia é também uma fonte da história e por isso tem vindo a ser aproveitada como forma de promover o turismo cultural", convém que a história seja bem contada para que a água que jorra da sua fonte seja o mais pura possível. Continuação de um bom trabalho, e já agora que prossiga com essa rubrica tão interessante do JTM, mas sempre com mais atenção ao detalhe. Cumprimentos cordiais,
Leocardo
2 comentários:
Estimado amigo Leocardo,
Óptima informação e óptimo esclarecimento sobre estas vielas de Macau da qual estou 99% de acordo.
A Rua Nova à Guia onde morei alguns anos, sempre ouvi dizer aos velhores que o nome de em chinês, se referia às velhotas de cabelos brancos que se sentavam junto às prtas de casa, na sua grande maioria de origem portuguesa e macaense.
Abraço amigo
lindo texto , também concordo que ninguém pode armar de historiador de macau ,se dominar as suas línguas...
Enviar um comentário