Segunda-feira à noite, 11 horas. Depois de um fim-de-semana em que recebi a visita do sr. rato tanto no Sábado como no Domingo, chegou a hora do grande teste: gostará ele de maçã? Tenho quase a certeza que sim, pois afinal deliciou-se no dia anterior com a sumarenta tangerina. Sou um cozinheiro vaidoso, adoro que elogiem os meus pratos, e uma maçã não custa nada a preparar: basta cortá-la e deixá-la no prato, e se o sr. rato aproveitar o agape que lhe deixarei esta noite, sentir-me-ei realizado. E assim foi, cortei a maçã em lâminas finas, depois em tirinhas, e deixei-a no pratinho no sítio do costume. Pergunto-me se o sr. rato terá reparado que o prato onde lhe deixo a ceia todas as noites tem o desenho do Templo da Barra. É um simples pires que comprei numa loja de “souvenirs” em conjunto com a chávena, que depois de se ter partido a asa, deixei de usar. Bom, só me resta ir dormir e esperar o resultado na manhã seguinte.
Quatro da manhã. Qual criança que espera a vinda do Pai Natal na noite da Consoada, acordo com a chegada do sr. rato. Não entrou pela chaminé, mas sim pela escada, e o facto de não ser dotado de visão nocturna faz com que esbarre constantemente nos obstáculos que encontra a caminho da cozinha. Vou ficando na cama, atento aos seus movimentos, ao ruídos produzidos pela sua roedora senhoria. Passado alguns minutos escuto um som que identifico de imediato: o saco preto que forra o caixote do lixo, a ser remexido. Coisa estranha, será que o sr. rato não gostou da maçã e preferiu o menu alternativo? Mais estranho ainda porque tive o cuidado de despejar o lixo depois do jantar, e o caixote estaria vazio – pelo menos foi o que pensei, não esquecendo que me socorria da memória sempre turva de entre dois sonos. Levantei-me para ir à casa-de-banho, e mal o sr. rato se apercebe da minha presença, enfia-se por detrás das caixas, no seu esconderijo habitual. Depois de trocar a água às azeitonas, volto para cama, na esperança de poder aproveitar ao máximo as três horas de sono que me restam.
Começava a fechar os olhos, acedendo ao convite do João Pestana, e volto a escutar o barulho do saco preto. Desta vez era mais persistente, o sr. rato rebolava-se no interior do caixote do lixo como se ambos estivessem envolvidos no acto físico do amor. Levanto-me, e desta vez acendo a luz da sala. Chego à cozinha, e como seria de esperar, nem sinal do sr. rato, que continua a mostrar-se tímido, especialmente na hora da refeição. Foi com grande satisfação que noto que comeu a metade da maça que lhe deixei, mas então, porque remexia o caixote? E que o procurava? Estaria especialmente faminto? Espreitei lá para dentro, e tudo o que vi foi uma lata de Red Bull e uma garrafa de iogurte líquido, além de uma folha de jornal antigo. O sr. rato teria estado entretido a lamber o docinho da lata e da garrafa com a sua fina língua de rato, fazendo deles a sobremesa depois do prato principal, que foi a maçã. Sempre é melhor que água da sarjeta ou da chuva, ou aquele sumo nauseabundo que pinga dos latões do lixo, cujo sabor o sr. rato deve conhecer melhor que ninguém. Volto a deitar-me, decidido a levantar-me apenas quando tocar o despertador. Ainda não me tinha tapado com o cobertor, e volto a escutar o sr. rato a envolver-se no saco preto. Virei-me para o lado e adormeci. Afinal tinha estado a interferir com a própria falta de higiene pessoal do sr. rato. Enquanto nós humanos nos lavamos quando nos sentimos sujos, ela suja-se quando se sente limpo.
Terça-feira, fim da tarde. Regressado de mais um dia de trabalho, preparo a segunda metade da maçã para o senhor rato, e desta vez procuro no frigorífico mais qualquer coisinha para variar, um mimo, uma coisa doce, como se dá às crianças de prémio por ser terem portado bem e comido a sopa toda. Encontrei na prateleira da porta um resto de chocolate de cozinha, deixado ali há meses depois de uma experiência com gelado de baunilha e chocolate derretido. Parti quatro quadrados, e deixei-os com a maçã, cuidando que desta vez dava um nó no saco do lixo. Na manhã seguinte, encontro ainda alguns restos de maçã, e o chocolate permanecia intacto. Preferi esperar pela hora de almoço para tirar uma conclusão definitiva. De volta pouco antes da 14 horas, eureka! não havia mais chocolate. O sr. rato comeu-o com tanta vontade que até afastou os restos de maçã que ainda se encontravam no prato. O que aconteceu foi que o chocolate estava demasiado duro depois da temporada que passou no frigorífico, e o sr. rato só aguardava que se tornasse mais digerível. Afinal o meu coabitante tem um dentinho doce. Hoje temos cenoura no cardápio.
Não perca amanhã mais um episódio das aventuras do sr. rato e do seu fiel assistente Leocardo!
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